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Abby abandonou a Guarda Municipal de Jaboatão em razão de transfobia praticada por chefe e colegas. (Júlio Gomes/LeiaJáImagens) 

Todos os clientes foram embora depois que Abby Silva Moreira, agora com 45 anos de idade, decidiu iniciar o processo de transição de gênero.Sua pequena gráfica, localizada no bairro de Boa Viagem, no Recife, fechou há 10 anos. “A única coisa que existe para trans no Brasil é se prostituir ou ser cabeleireira", constata. O tempo dedicado aos estudos para concurso público, aparente solução para seus problemas financeiros, passou a ser disputado pelo curso profissionalizante da Embelleze. “Eu não queria me prostituir de forma compulsória. Foram três anos de penúria entre fechar a gráfica e ser chamada para o concurso em Jaboatão dos Guararapes”, conta. Em julho de 2017, Abby tornou-se a primeira mulher transgênero do Brasil a ser admitida para uma Guarda Municipal. O feito, contudo, não a impediu de sofrer com a transfobia na corporação.

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“Meu primeiro dia de trabalho foi terrível. Me senti uma verdadeira macaca de circo em um picadeiro. As pessoas saíam de seus postos para me ver. A Guarda Municipal de Jaboatão passou 20 anos sem concurso, então me deparei com uma guarda velha, de maioria evangélica e conservadora, que nunca conviveu com uma pessoa trans na vida. Não houve renovação ou capacitação desse pessoal. Ninguém me aceitava, as pessoas me olhavam com olhos de reprovação”, relata Abby.

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De acordo com a servidora, foi a proteção dos primeiros comandantes a quem respondeu que garantiu que o ambiente de trabalho se mantivesse suportável. “Os primeiros comandantes tinham muito cuidado com os locais onde me colocavam para trabalhar. Atuei na Patrulha Maria da Penha, que era formada por jovens, por exemplo, e um posto onde ficava sozinha com outra mulher. Até aí, sempre com todas as gratificações”, coloca. Apesar do acolhimento da chefia, Abby precisava lidar com a pressão dos colegas. “Meu chefe recebia telefonemas de pessoas antigas revoltadas porque eu recebia gratificação e eles não. Eu integrava um grupamento e isso incomodava muita gente. Sempre houve perseguição”, acrescenta.

A servidora já convivia com depressão e transtorno bipolar quando Admilson de Freitas foi nomeado para o comando da corporação. “A Guarda foi inevitavelmente um gatilho, mas eu conseguia trabalhar, manter meu tratamento e as medicações. O meu inferno verdadeiro começou há um ano, quando Admilson assumiu a Guarda, tendo como primeiro ato o corte de todas as minhas gratificações”, lamenta. O salário que passava dos R$ 3 mil logo caiu pela metade. “Ele não deu justificativa e ainda disse que ninguém que trabalhava de segunda a sexta recebia gratificação, o que é mentira, pois temos centenas de casos que provam o contrário. Por que apenas a minha gratificação foi cortada? Não consegui mais arcar com minhas medicações, que eram muito caras, e tive que recorrer à farmácia do estado”, lamenta Abby.

Corte repentino das gratificações diminuiu o salário de Abby pela metade. (Júlio Gomes/LeiaJáImagens)

Com a posse de Admilson, as grosserias e os deboches cotidianos passaram a partir da chefia. “Ele me tratava mal sempre que podia, nunca teve educação comigo. Fazia questão de não respeitar meu gênero e sempre me tratava com pronomes masculinos. Tudo pelo fato de eu ser quem sou”, desabafa. Em junho de 2021, a servidora foi internada pela primeira vez na ala psiquiátrica do Hospital das Clínicas (HC). “Ao invés de o comandante se preocupar com meu estado de saúde via junta médica, conseguiu o telefone da minha ex-companheira e disse que eu seria exonerada. Claro que isso não poderia acontecer, ele fez pela satisfação de me ameaçar”, lembra.

“Evangélico radical”

Fontes ouvidas pela reportagem descrevem Admilson de Freitas como um “evangélico radical”, que assumiu o comando da corporação graças à indicação do vereador Pastor Ginaldo (PSC), grande aliado político do prefeito Anderson Ferreira (PL). O LeiaJá teve acesso ao ofício 01/Fevereiro/2022 expedido pela Associação dos Guardas Municipais de Jaboatão dos Guararapes (ASGUAJG) para o Ministério Público. No documento, Admilson é acusado de utilizar-se do efetivo para oferecer segurança particular a igrejas evangélicas.

Comandante Admilson veste farda da Guarda Municipal em culto da Assembleia de Deus. (Reprodução/Whatsapp)

"Fica, portanto, evidente que o Sr. Ademilson Freiras utilizou-se do efetivo da Guarda Municipal de Jaboatão dos Guararapes como meio de segurança privada, tendo, inclusive, colocado guardas para ficar de segurança dentro da Igreja. Tal atitude caracteriza claro desvio de finalidade [...] A utilização da Guarda Municipal para fins de segurança privada é inconstitucional e fere o Estatuto dos Guardas Municipais ( Lei Federal 13.022/2014)”, diz trecho da denúncia.

Ademilson é acusado ainda de coagir guardas municipais a frequentar cultos religiosos da Assembleia de Deus. A CI Circular Nº 017/2021, expedida por ele em 27 de outubro de 2021, convoca todo o efetivo para participar do ato de entrega do documento de Identificação Funcional da Guarda, a ser realizado às 20h do dia 27 do mesmo mês, no pátio da Escola Municipal Nossa Senhora do Loreto, localizada na Rua Arão Lins de Andrade, 380, Piedade. “De frente para essa escola, há uma Assembleia de Deus. O pessoal teve que assistir ao culto para depois pegar o documento de identificação na escola. Foi um evento para fazer palanque para o vereador que ele apoia. Ele se utilizou do poder que tinha para ferir o estado laico”, comenta Erick Dayvson de Freitas, presidente do Sindicato dos Guardas Municipais de Jaboatão.

Guardas municipais em culto anterior à entrega do documento de identificação. (Reprodução/Whatsapp)

Fotos dos guardas fardados dentro da Igreja foram divulgadas pelo próprio vereador Pastor Ginaldo. Quando soube que a entrega da identificação ocorreria na Assembleia de Deus, Abby abriu mão do documento. “Eu já estava muito fragilizada, muito deprimida”, resume.

Intensificação do processo depressivo

Preocupado com o estado de saúde de Abby, um dos psiquiatras do HC, então, pediu a readaptação da trabalhadora na área administrativa da Guarda Municipal. “A solicitação aconteceu para me deixar mais tranquila para continuar o tratamento. Eu nunca imaginei que isso viraria o maior inferno da minha vida, que sofreria tanta humilhação e tanta transfobia em cima dessa portaria”, relata a servidora.

Ao ser comunicado da recomendação médica, Admilson alegou que não havia nenhuma vaga administrativa disponível na corporação e despachou a demanda para o setor de trânsito do município. “Até dá vontade de chorar. Todo servidor é readaptado na sua própria secretaria. São concursos diferentes, servidores diferentes. Ele simplesmente me expulsou da Guarda e disse que eu ‘me resolvesse’ com o trânsito”, lamenta. Seguindo a ordem de Admilson, Abby se apresentou no novo setor assim que recebeu alta. “O comandante do trânsito leu a portaria e disse: ‘só quem pode estar no administrativo do trânsito é quem é do trânsito, quem te mandou pra cá não procurou nem saber se tinha vaga pra você’. Volto para a Guarda e o comandante se recusa a me receber. Voltei para casa chorando, porque fui impedida de trabalhar”, acrescenta.

Em meio ao vaivém entre as pastas da prefeitura e a ameaças de exoneração praticadas por Admilson, Abby conta que a superintendência de Ordem Pública mandou que ela permanecesse em casa até que “uma solução” fosse encontrada. Com o agravamento do quadro psicológico, em novembro, Abby volta à Guarda em busca de uma resposta. “Disseram que estavam pensando em me colocar na secretaria de Direitos Humanos, mas não fizeram nada. Eu mesma tomei a iniciativa de procurar a secretária de Direitos Humanos [Cláudia Freire], que ficou horrorizada com a situação e escreveu um ofício me solicitando para a equipe dela. Mesmo assim, nada mudou”, prossegue.

Sem retorno, Abby tentou tirar a própria vida em dezembro. “Fui novamente internada, depois de quatro meses de humilhação e idas e vindas. Me pergunto de onde vem tanto ódio, se nunca fiz mal a ninguém. Por que fazem isso comigo? Porque eu sou trans. Eu não sou gente, eu deixei de ser gente. Eu não sangro, eu não sofro, eu não sinto nada. Me senti uma merda, uma coisa indesejada. Acabaram com a minha existência”, afirma.

Denúncia

"Acabaram com minha existência", diz Abby. (Júlio Gomes/LeiaJáImagens)

No dia 8 de fevereiro deste ano, a servidora denunciou o comandante Admilson de Freitas ao Ministério Público de Jaboatão dos Guararapes, por transfobia. No documento, endereçado à promotora de Direitos Humanos Isabela Bandeira, Abby solicita que órgão promova uma audiência pública com a presença do acusado, da presidência do Conselho LGBT Municipal, de um representante do Centro Estadual de Combate à Homofobia, de um representante da Comissão de Diversidade Sexual da OAB e da presidência do Sindicato dos Guardas Municipais de Jaboatão (Sindguardas).

No dia 11 de fevereiro, o Diário Oficial de Jaboatão dos Guararapes registrou a exoneração de Admilson de Freitas. Um dia depois, a prefeitura divulgou a realocação de Abby da Secretaria Executiva de Ordem Pública e de Mobilidade para a Secretaria Executiva de Direitos Humanos. “Eu tinha orgulho de vestir a farda da Guarda. Eu saía na rua e as pessoas me respeitavam, me tratavam por ‘ela’, por ‘senhora’. Quando eu tiro a farda, viro escória. Agora, se eu puder ficar em Direitos Humanos, prefiro. Essa ferida que fizeram em mim não vai fechar. Destruíram minha auto estima emeu único orgulho, que era minha farda”, lamenta.

Por meio de nota, o MP confirmou o recebimento da manifestação por meio da 6ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania de Jaboatão dos Guararapes (Direitos Humanos).  “Segundo a Promotoria, já foi instaurado o respectivo procedimento e, como medida preliminar, foi marcada uma audiência, para a primeira semana de março, com a vítima, o suposto agressor, o Conselho LGBTQI+, a Secretaria de Direitos Humanos e com o Sindicato dos Guardas Municipais de Jaboatão dos Guararapes”, diz o posicionamento.

No Brasil, a transfobia é crime desde 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a enquadrar a prática no crime de racismo. A pena prevista para tais condutas discriminatórias é de um a três de detenção, além de multa. Assim, embora o comandante tenha sido exonerado, Abby frisa que sua luta está longe de acabar. “Esse é só o começo. Quero ir até o fim para que o Ministério Público realize a denúncia e ele seja condenado por transfobia. Isso não pode ficar impune. O respeito pra mim é algo tão difícil que se tornou um sonho”, ressalta.

O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que precisam conversar, de forma totalmente sigilosa. Para obter informações sobre o atendimento, basta ligar para o número 188.

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