Estrela precisa correr. São dois policiais com armas apontadas para ela, que só queria passar um final de semana em família na Praia de Gaibu, no Cabo de Santo Agostinho. A esposa e a sobrinha divertem-se na cozinha, invadida pelos oficiais. Uma rápida busca acontece e 17 papelotes de maconha são encontrados. “Quer dizer que você não sabia o que sua tia fazia? Pois eu vou levar você”, afirma um dos policiais, que acaba algemando as duas mulheres. A cena é interpretada no Pátio da Colônia Penal Feminina Bom Pastor, no Bairro da Iputinga, Zona Oeste do Recife, pelas próprias reeducandas. No elenco, Danila Patrícia, Junior Marlley e a própria Geisiane Galdino, conhecida pelas colegas de detenção como Estrela.
##RECOMENDA##Estrela escolheu interpretar a cena da detenção de sua esposa e da sobrinha. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
O teatro foi uma das oficinas artísticas oferecidas pela Rede Madalenas, através do 5º Festival de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero (Recifest), às reeducandas do Bom Pastor. Apesar de bom desempenho, as alunas não surpreenderam a professora e atriz Isabel Freitas. “O resultado foi muito positivo, mas as atuações não me impressionam, pois elas estão falando do lugar que vivenciam, que é a situação opressora de privação de liberdade. Isso traz solidão, abandono e tristeza, mas ao mesmo tempo elas estão resistindo”, comenta.
Estrela, localizada pela polícia um dia após a prisão da sobrinha e de sua esposa, explica como surgiu a ideia da peça. “A gente estava combinando como seria o teatro, aí surgiu a ideia de mostrar a história da prisão da minha sobrinha, porque aqui tem muita gente inocente. Ela acreditava tanto na polícia que vivia dizendo que quem fazia as coisas certas não pagava, mas paga”. Para a reeducanda, o teatro foi uma oportunidade de dividir suas angústias com as companheiras de detenção. “O que passa no dia dia dia é isso, vejo muito. Fico chateada, porque não tem como resolver, a justiça da terra é cega”, completa.
Para Junior Marlley, arte proporciona maior integração entre reeducandas. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Se tivesse oportunidade, a Estrela do Bom Pastor gostaria de brilhar nos palcos ou na cozinha. “Queria atividades assim todos os dias. Gosto de teatro, mas também seria cozinheira. Vou parar, porque se eu retornar ao crime, não volto mais para um presídio, mas para dentro de um caixão. Chega uma hora que Deus se cansa”, finaliza. Em cena com a amiga, o reeducando Junior Marlley, que prefere se identificar com seu nome social, acredita que as dinâmicas artísticas são capazes de abrandar a dureza dos dias na cadeia. “Achei muito divertido. A gente acabou falando mais uns com os outros. Tinham pessoas que a gente nem conhecia e agora passam pelo corredor e cumprimentam”, coloca.
“O marrom, minha cor”
Cravada na perna esquerda, Danila Patrícia, de apenas 22 anos, carrega a ferida que determinou seu destino. Nascida em Benguela, na Angola, ela precisou viajar para Portugal com apenas cinco anos de idade, acompanhada pela mãe. “Muito cedo, tive um problema na perna e acabei por ser operada. Um primeiro médico disse que estava tudo bem e me mandou ir para casa. Passada uma semana, em outro plantão, um segundo profissional disse que eu tinha que ser imediatamente operada, pois meu joelho tinha acumulado líquido”, lembra. A segunda operação, contudo, estaria longe de solucionar os problemas da jovem. “Dentro do bloco cirúrgico, peguei uma infecção bacteriana no fêmur, pois a ferida não tinha fechado. Desde então, já fiz 28 cirurgias na região, mas ainda tenho ferros e parafusos dentro do osso que precisam ser retirados”, lamenta.
Danila cantou para as colegas sua versão de canção portuguesa. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
O entra e sai de placas, ferros, dentre outros aparelhos, causaram um encurtamento de dez centímetros na perna direita de Danila, devido ao qual a jovem passou a sofrer de escoliose. Quando soube da existência de dois quilos de haxixe em sua mala, no Aeroporto de Lisboa, a angolana viu uma possibilidade de se livrar do sofrimento que a acompanhou por toda vida. “Uma amiga aproveitou que eu vinha para cá (Recife) e me pediu para trazer uma mala. Eu não sabia que tinha droga, ela só me avisou quando a mala já estava no avião e eu já tinha feito check-in. Eu passei um ano juntando dinheiro para a viagem e achei que o dinheiro poderia me ajudar com uma cirurgia muito cara”, lembra.
Reeducandas compatilham experiências através da arte. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Técnica em turismo e apaixonada por viagens, Danila não conseguiu concretizar seus planos. No fundo da mala, que carregava itens eletrônicos para serem vendidos em solo brasileiro, a polícia encontrou a droga. Danila foi, então, detida no Aeroporto dos Guararapes, encaminhada para o Bom Pastor e separada, pela primeira vez, de sua mãe. “Ela veio para o Recife e me visita todo domingo”, afirma.
Na Colônia Penal Feminina, a técnica em turismo virou cantora e compositora. “Eu gosto de cantar, mas nunca fiz aulas de canto. Mudei a letra da música ‘Dama’, do grupo português ‘Os Dama’. Era romântica, mas minha letra fala de minha mãe, pois não sei o que vou dar a ela. Quem canta seus males espanta”, afirma.
[@#video#@]
Letra da versão composta por Danila Patrícia da música "Dama":
“Eu nao sei o que te hei de dar
Ne te sei inventar frases bonitas
Mas aprendi uma ontem
Só que já me esqueci
Entao olha só te quero a ti
Eu sei de alguém
por demais envergonhada
Que por ser desajeitada
nunca foi capaz de falar
Mas logo hoje vi
o tempo que perdi
Sabes que esse alguém sou eu
E agora vou te contar”
Na plateia, Maiara Daine Gomes conhece bem a dor da ausência materna. Em reclusão há um ano e um mês, a reeducanda se emocionou ao lembrar da família enquanto pintava. “Me lembrei de um quadro que tinha na casa da minha mãe e tentei fazer parecido. Ganhei ele num sorteio de um teatro de Campina Grande, aos 12 anos de idade”, conta.
Daiane exibe sua pintura feita durante oficinas na penitenciária. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Sem estudo em artes plásticas, sua única experiência com arte até então havia sido a de confeccionar quadros e porta-trecos. “Vim de Campina Grande aos 12 anos de idade e comecei a vender o que fazia nos sinais. Depois me juntei com quem não presta e fui fazer coisa ruim, mas estou aqui arrependida, para pagar pelos meus atos. Eu gosto de trabalhar”, comenta.
Com aparência de pintura abstrata, o trabalho de Daine chamou a atenção de funcionários e colegas de detenção da penitenciária. “Melei os dedos, cada um de uma cor e fui pintando. Eu pintei o preto para falar sobre luto. O verde, esperança. Azul, o céu. Vermelho, amor. O marrom, minha cor”, conclui.