“Era uma vez...”. Assim começam os contos de fada ou as histórias de Trancoso (Gonçalo Fernandes Trancoso, escritor português e autor de “Contos e Histórias de Exemplo”, 1575), transmitidas pela tradição oral como uma espécie de distração ou cantigas de ninar em prosa para embalar as crianças.
“Era uma vez...”. Revela também o exercício da imaginação ou um apelo da memória a uma lembrança que nos é tirada pela ação evanescente do passar do tempo.
Cedinho, manhã do dia 28 do corrente mês, ia para a Uninassau participar do V Seminário de Ciência Política, pela Av. Rui Barbosa e, como ocorre habitualmente, me preparei para lançar o olhar enamorado para Estação Ponte D’Uchoa. Isso mesmo, olhar enamorado; olhar carregado de carinho e afeto; olhar com uma ponta de amor carnal entre seres de natureza distinta.
É virtuoso amar a Deus sobre todas as coisas, amar o próximo como a si mesmo e “as coisas” que complementam o primeiro dos Dez Mandamentos. Eu tinha e tenho uma relação amorosa com a Estação Ponte D’Uchoa. Simples explicar: as coisas ganham vida pelo que representam, pelo que significam e pelo que simbolizam. Ali estava o abrigo antigo dos passageiros da maxambomba, o primeiro trem urbano da América do Sul, inaugurado em 5 de janeiro de 1867.
A Estação me contava: “era uma vez, uma cidade que exalava cheiro de frutas tropicais; que relembrava a bravura de heróis libertários em batalhas cruentas ou que recordava foliões libertinos em batalhas de confetes, serpentinas e lança-perfume; que, como dizia Gilberto Freyre, saia das águas como uma Yara; que dava sonoridade ao sincretismo religioso com o repique dos sinos e a batida dos atabaques; que permitia o cidadão arruar, ou seja, “Sentir a cidade. Evocar o seu passado, partilhar o seu presente, sonhar com seu futuro [...] Regalo dos olhos e entendimento dos espíritos”, como escreveu Mário Sette.
No entanto, o meu olhar chocou-se com o vazio. A Estação desapareceu. Emudeceu. Por acaso fora sequestrada pelas assombrações do Recife? Não. Foi esquartejada pelos motores que diariamente rugem em fúria permanente, anunciando a iminência do desastre e que a duração das vidas se mede pelo velocímetro.
Cabe, agora, remediar. Rejuntar com cuidados especiais a vítima de politraumatismo devastador. É possível fazê-la emergir das cinzas? É. As autoridades sabem disso. É obrigação cívica, histórica e legal.
A propósito, a lei municipal 13.957/79, ao implementar, no Recife, o Plano de Preservação dos Sítios Históricos da Região Metropolitana, incorporou os conceitos ampliados de preservação dos bens culturais constantes da Carta de Veneza de 29 de maio de 1964, consolidados pela OEA, na cidade de Quito em 1967, e delegou poderes ao chefe do Executivo municipal para estabelecer Zonas de Preservação (ZP) nelas contidas Zonas de Preservação Rigorosa e Zonas de Preservação Ambiental.
Por outro lado, definiu (Art. 3º) como obras de amparo e proteção preservadora a sítios, conjuntos antigos, ruínas e edifício isolados com real significado para o patrimônio cultural da Cidade do Recife, as obras de conservação, reparação e restauração, sendo esta última, aplicável aos danos sofridos pela Estação Ponte D’Uchoa.
Para fins de registro, a mencionada lei respaldou 31 decretos entre 1980/81 que protegeram como sítios, conjuntos antigos, ruínas e edifícios isolados: Sítio da Trindade, Apipucos, Benfica, Capunga, Poço da Panela, Ponte D’Uchoa, Praça da Várzea, Bairro da Boa Vista, Bairro do Recife, Bairros de Santo Antonio/São José, Arquitetura Cubista da Visconde de Suassuna, Capela dos Aflitos, Casa de Brennand, Casa da Cultura/Estação Central, Casa Grande do Engenho Barbalho, Escola Rural Alberto Torres, Faculdade de Direito, Hospital Dom Pedro II, Hospital de Santo Amaro, Igreja das Fronteiras, Igreja N. S. de Boa Viagem, Igreja N. S. da Conceição – João de Barros, Igreja de Santo Amaro das Salinas/Cemitério dos Ingleses, Mercado de Casa Amarela, Palácio da Soledade, Pavilhão de Óbitos, Sobrado da Madalena, Vila do Hipódromo, Fábrica da Tacaruna, Matadouro de Peixinhos, Arraial Novo do Bom Jesus.
Por fim, devo dizer que confio nas providências das autoridades. Que se restaure a Estação o mais depressa e da melhor forma possível. Não desejo, e sei que nenhum recifense deseja, passar por ali e dizer aos filhos e netos: era uma vez, uma linda Estação Ponte D’Uchoa.