No Estado Democrático de Direito as normas jurídicas proíbem incondicionalmente o emprego da tortura, largamente utilizada pelos órgãos estatais até muito, muito recentemente. A cultura ocidental, tão orgulhosa de sua civilidade, queimou bruxas até o século XVIII, não se pode esquecer. Mas hoje a simples ameaça de tortura é banida e rigorosamente combatida, pelo menos no plano da legalidade democrática. Muitos argumentos foram usados nessa evolução, desde os horrores históricos das ordálias, os “juízos de Deus” medievais, até o simples argumento pragmático de que a tortura não funciona como meio de prova nem garante informação.
Conceitualmente, tortura não se confunde com pena cruel, que constitui tema de outro debate ético. A tortura é um procedimento que busca informações para esclarecer a verdade no processo, enquanto as penas cruéis têm por objetivo o castigo, pressupondo que aquela verdade já foi encontrada.
A questão da tortura se relaciona com o problema da tolerância em pelo menos dois sentidos básicos: o literal, de tolerar ou não a dor; e o mais amplo, de não ver limites para coagir a vontade alheia, a violência irresistível que chega a ponto de acabar com o discurso, a linguagem que caracteriza o ser humano. Este último é o que mais interessa aqui. Isso significa discutir o assunto desde uma perspectiva ética: a tortura deve ser usada em algum caso? Há alguma possibilidade de justificação da tortura? Ela pode ser legalizada, ou seja, o direito pode prever sua aplicação?
A perspectiva sociológica é importante e deve sempre permanecer no horizonte da discussão. Muitos sabem que a tortura é rotineiramente praticada em países subdesenvolvidos como o Brasil, assim como em países economicamente desenvolvidos como os Estados Unidos, baluartes de uma retórica civilizatória, que se arvoram guardiães de uma nova ordem mundial, o que lhes daria o direito de invadir países para impor sua ética de proteção aos direitos humanos. Mas não apenas na Baía de Guantânamo. Internamente, em todo seu território, estabeleceu-se uma importante indústria da prisão, que encarcera 4 vezes mais pessoas do que qualquer outro país – de acordo com dados de 2011 – e de cuja manutenção vivem e lucram milhares de cidadãos. E essa indústria da prisão não deixa de ser uma espécie de tortura.
Externamente, no que concerne ao terrorismo, a justificativa dos funcionários norte-americanos para o emprego da tortura e de outros métodos contrários a seu próprio direito positivo é a tese da legítima defesa prévia, para evitar um mal maior a mais pessoas. Ora, mas isso se afasta do conceito secular de legítima defesa, que implica perigo real e iminente, incompatível com a tortura, na qual o ser humano já está submetido e não se encontra em condições de atacar ninguém.
Na próxima semana veremos exemplos concretos que não são apenas roteiro de filmes e que mostram a importância cotidiana da filosofia do direito.