Tópicos | Antonieta Cruz

“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, diz a frase de Carlos Drumonnd de Andrade utilizada pelo ex-governador Miguel Arraes de Alencar no discurso de posse em 1962, quando assumiu pela primeira vez o comando da gestão estadual, e que até hoje é identificada como a marca da passagem do sertanejo pela política em Pernambuco. Nascido em 15 de dezembro de 1916, apesar de cearense, o filho de Maria Benigna e José Almino fez carreira política no estado, cumprindo mandatos deputado estadual, federal, prefeito do Recife e governador. 

Esquerdista nato, Arraes conquistou seu primeiro cargo eletivo em 1954, quando foi eleito para a Assembleia Legislativa. Cinco anos depois, assumia o comando da Prefeitura do Recife, sucedendo o então prefeito Pelópidas da Silveira. Na gestão municipal, a ação mais emblemática dele foi a criação do Movimento de Cultura Popular (MPC) utilizado inicialmente como meio de alfabetização e construção de escolas na capital pernambucana e, depois, na conscientização política e elevação do nível cultural das camadas mais populares. 

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O MCP abriu as portas para nomes como Paulo Freire, que hoje inspira métodos de ensino por todo o mundo. Na época, como descreve a jornalista Tereza Rozowykwiat no livro Arraes, publicado em 2007, o Recife tinha apenas três escolas e o movimento conseguiu criar 201 novas unidades de ensino com 626 turmas. Em 1964, entretanto, a sede do MCP – considerado um movimento comunista pelo regime ditatorial – foi invadida por militares, seus integrantes presos e todos os arquivos queimados. 

Naquele mesmo ano, Arraes que já era governador de Pernambuco, cumprindo o primeiro de três mandatos no Palácio do Campo das Princesas, foi deposto do cargo, por resistir a uma aliança com o novo regime, e preso. Antes de início da ditadura, durante pouco mais de um ano e meio, o então chefe do Executivo estadual ganhou espaço entre os agricultores rurais por, naquele momento, ser o primeiro gestor a sentar à mesa com trabalhadores e empresários usineiros para firmar um pacto que garantiria, entre outros benefícios, o pagamento do salário mínimo aos canavieiros. A ação ficou conhecida como Acordo do Campo.

Com o golpe militar de 1964, Arraes ficou preso por pouco mais de um ano passando por Fernando de Noronha e o Rio de Janeiro. Libertado após um habeas corpus e respondendo a oito processos, entre eles a acusação de comunismo, Arraes decidiu sair do país em exílio. “Não era possível ficar no Brasil, disse ao meu advogado, mas as embaixadas estavam todas cercadas de militares. Consultei um amigo e tinha apenas dois países disponíveis: Iuguslávia e Argélia. Escolhi a Argélia porque um artigo da Constituição de lá dizia que a Argélia vai acolher todos aqueles que lutam pela liberdade ou estejam sendo perseguidos”, contou o ex-governador em uma das suas últimas entrevistas antes de morrer, em agosto de 2005.  

Quatorze anos depois, beneficiado pela Lei da Anistia, Arraes voltou ao Brasil e a atuar na política, sendo eleito governador de Pernambuco por mais duas vezes. A primeira foi em 1986, pelo PMDB, quando lançou o Chapéu de Palha, destinado a beneficiar os canavieiros na entressafra da cana-de-açúcar. Já a segunda foi em 1994, quando investiu em eletrificação rural. Neste ano, Arraes já havia fundado o PSB. 

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Dois mandatos para refazer a história interrompida pela ditadura

Aos 70 anos, Miguel Arraes voltou ao comando estadual e, apesar do semblante sério, das marcas de alguém que viveu exilado por 14 anos e da voz forte que amedrontava a muitos, era considerado “um homem do povo”. Suas ações, durante os dois mandatos pós-ditadura, são considerados pelos que conviviam diretamente com ele como “voltadas para o social”. 

“Ele achava que se a pessoa, na época, tivesse energia e água era rica e, por isso, todos os seus programas estavam voltados para os mais pobres”, frisa Antonieta Cruz, coordenadora do Grupo de Ação Municipal (GAM) implantado a partir de 1987. Segundo ela, o GAM era um deles, já que atuava nos municípios independente do alinhamento político dos prefeitos. 

“Trabalhávamos diretamente com a população, fazendo pequenas obras. Levando água, alimento, incentivando a construção de poços e cisternas. A gente se reunia com as comunidades, eles discutiam, viam as prioridades e doutor Arraes fazia questão de executar aquele trabalho”, emendou, durante uma conversa com o LeiaJá no Palácio, onde trabalha até hoje.

Um retrato positivo da prioridade que Arraes dava as camadas mais populares podia ser visto, de acordo com ela, nas visitas que fazia as cidades pernambucanas. Entre um município e outro, um dos destinos certos eram as feiras municipais que, além dos agricultores, reunia, normalmente, a maior parcela da população menos favorecida. Nos locais, muitos comerciantes deixavam os seus postos para beijar a mão de “pai Arraiá”, como era carinhosamente referido pelos agricultores. O fato deixou Miguel Arraes conhecido entre os políticos como o “acaba feira”. 

“Doutor Arraes era dono de uma energia admirável. Nas feiras, por exemplo, muitas vezes eu puxava ele, quando alguém queria pegar ou insistia muito nas conversas longas, mas ele me reprimia. Quem vendia parava para falar com ele, quem comprava também. As feiras paralisavam sempre. Nas campanhas [de 1994 e 1998] mesmo, muitas vezes ele subia no caminhão sozinho, sem querer ajuda. Já estava na idade avançada, mas não queria ajuda de ninguém”, revela. 

Campanhas estas que, de acordo com o motorista Carlos Gilberto, mais conhecido como Carlinhos de Arraes, ele era capaz de ir a 10 cidades por dia. “Apesar da idade avançada, Miguel Arraes era capaz de visitar até dez municípios por dia. Eram muitas viagens. Passamos de morrer diversas vezes, porque tudo é hora não é? Eu voava nas estradas. Tudo muito puxado. Mas ele, estava lá sempre firme, mantinha o ritmo”, conta, após ter acompanhado o ex-governador nas estradas por 18 anos. 

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A derrota que abriria espaço para Eduardo Campos

Das dez vezes em que disputou uma eleição, Arraes perdeu três. A mais lembrada é a última delas, em 1998, quando foi derrotado por Jarbas Vasconcelos (PMDB), seu então ex-aliado, na disputa pela reeleição ao cargo de governador. A perda do mandato, entretanto, foi na ótica de Arraes o que garantiria a vitória do neto, Eduardo Campos, oito anos depois.  

“Doutor Arraes via muito na frente. Se ele não tivesse disputado esta eleição, na visão dele, Eduardo Campos nunca seria governador. Ele convidou outras pessoas, mas entre uma conversa e outra ele dizia, ‘eu tenho que disputar’. Já pensando no futuro da política do PSB”, contou Carlos, ao descrever conversas que chegou a ouvir entre Arraes e aliados. 

Apesar de derrotado e se negar a estar presente na transmissão de cargo, Arraes encarou a situação com tranqüilidade. “Quando a gente perdeu a eleição para Jarbas eu fiquei muito preocupado. Saí chorando do Palácio, uma lapada daquela era um negócio estrondoso. Nós saímos um dia antes, não passamos o poder para Jarbas. Quando ele me viu chorando perguntou o porquê, eu respondi: de raiva doutor. Ele disse ‘Carlinhos, você não deve ter raiva. Antes de chorar você tem que lembrar o que eu passei em 1964. Foi pior que isso’”, recordou o motorista, desta vez sorrindo.

A ausência do amigo

Funcionários de Arraes por anos, Antonieta e Carlos contaram ao Portal LeiaJá que também criaram laços com o ex-governador e desde 2005 sentem falta de alguém que era mais do que um chefe.

“Ele era uma pessoa fora de série, sempre disponível para ouvir e atender as pessoas, dar conselhos. Aprendi a fazer política com um homem muito correto e de excelente qualidade. A falta é muito grande. Ele deixa uma grande lição para nós, afinal muitos conhecem o mito, mas não conhecem o Arraes, homem preocupado com a pobreza. Esta história de vida dele”, observa Antonieta. 

Já Carlos, revela ter ouvido várias vezes que era o 11º filho. Miguel Arraes teve dez filhos, oito com a primeira esposa, Célia Leão, falecida em 1961, e dois com a viúva Magdalena Arraes. 

“Ele me considerava como o 11º filho, porque eu estava com ele durante todo o dia e a vida. Ele era uma pessoa séria, durona, mas comigo nunca foi assim. Sempre foi aberto, risonho, brincalhão. Dizia que eu era o que mais dava trabalho. Quando ele foi internado, lembro que além da família, fui a única pessoa que o visitou na UTI. É duro, passei 18 anos ao lado dele mesmo e não tinha tratamento diferente em nada”, destaca. 

Miguel Arraes faleceu em 13 de agosto de 2005, após sofrer de infecção respiratória, agravada por insuficiência renal. 

 

 

 

 

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