'Ninguém solta a mão de ninguém'. A frase que virou grito de guerra entre internautas de diferentes localidades, gêneros e classes sociais, ao redor do Brasil, recentemente, há muito já era conhecida em Pernambuco. O Estado é berço da ciranda, dança circular em que os participantes dançam de mãos dadas e que pode ser classificada como uma das mais democráticas manifestações culturais brasileiras.
Na roda de ciranda brincam crianças, adultos e velhos, independente de sua cor de pele, crenças e contas bancárias, lado a lado. Organizando a brincadeira, estão os mestres e mestras, detentores da ciência tradicional e de um senso de resistência que só pode ser explicado por eles mesmos.
##RECOMENDA##Mestre Santino Cirandeiro tem 78 anos de vida e 62 de ciranda. Ele lembra com saudade dos tempos de menino em que ia brincar a ciranda na "casa de um e de outro", depois do trabalho pesado nos engenhos de cana de Nazaré da Mata, cidade onde mora até hoje. O cirenadeiro conta que os trabalhadores rurais e moradores do entorno se juntavam - entre eles, muitas mulheres que ajudavam a cantar, uma vez que não havia músicos para tocar qualquer instrumento. A 'apresentação' se dava a troco de bolo e cachaça e prosseguia até o raiar do dia.
Foi nessas festas, nas casas dos vizinhos e conhecidos, que Santino teve vontade de cantar também. Na escola, ele escrevia cirandas quando a professora pedia trabalhos e esperou a reticência do pai - preocupado pela pouca idade do menino - acabar para entrar de vez na brincadeira. Isso aconteceu quando o jovem chegou aos 15 anos. "Eu chegava numa ciranda pedia pra cantar, o mestre deixava... Naquilo eu fui e cheguei a ser o dono da minha própria ciranda, até hoje", conta o mestre da Ciranda Popular, grupo criado em 1989.
Daquele tempo para cá, algumas coisas mudaram para o mestre cirandeiro. Mas nem todas. Ele hoje se orgulha de poder registrar sua música gravando discos. "Agora tem uma coisa melhor do que antes, era que quando a gente brincava ninguém falava em gravar nada. Ninguém sabia de nada, tudo matuto dos engenhos. Hoje, por outro lado, você vai cantar e o pessoal vai gostando e você vai achando bom e daí a pouco você grava um CD", conta Santino, que já tem três trabalhos gravados.
O que não mudou muito é a invisibilidade dos artistas populares. Mesmo sendo ele o mestre mais antigo em atividade no segmento da ciranda, com viagens internacionais no currículo e o trabalho de 30 anos da Ciranda Popular, Santino é mais um expoente da cultura pernambucana a lamentar a falta de apoio e reconhecimento. "Eu até agora não ganhei nada. A não ser, o dinheiro de quando a gente brinca, eu recebo. Mas, de bondade, de homenagem, nada. A cultura, não sei porque ela é tão sem ajuda. Os mestres, os artistas, merecem, a cultura merece ajuda, a pessoa vai ficando velha, não pode mais cantar, devia ter uma ajuda, mas até hoje, nada".
O mestre Santino pensa às vezes em calar sua ciranda e parar. Diabético e próximo de completar 80 anos, ele se diz cansado e preso a um dilema. "É complicado mas o interessante é que a gente gosta dela. Às vezes, eu não vou brincar, dia de sábado, quando a gente vai dormir, que eu tô deitado e ouço o bombo, a bateria, aquilo me dá uma agonia uma vontade, eu digo: 'eu vou pra ciranda', a mulher diz: 'pra onde tu vai essa hora?'; é porque a gente se acostumou com aquilo, acha que vai morrer com aquilo".
Lia de Itamaracá, outra grande mestra cirandeira, apontada como a "diva da música negra", pelo jornal americano The New York Times, também se vê fazendo ciranda para sempre. "Eu não desisto, não; eu vou lutar até ‘Mané’ chegar. Enquanto ‘Mané’ não chegar eu não paro. Quero chegar aos 100 anos", diz a cirandeira de 75, Patrimônio Vivo de Pernambuco. Ela tem lugar de destaque na cultura popular pernambucana, sendo a responsável por levar o nome do Estado e as tradições que aprendeu nas areias da praia de Jaguaribe a todo o mundo.
Mesmo sendo muito festejada em outros lugares do país e de fora dele, a mestra se ressente da pouca ou quase nenhuma assistência que recebe em seu próprio lugar. "Eu me sinto acorrentada, sem poder fazer nada. Todo dinheiro que a gente pega, a gente joga aqui (em seu centro cultural). Se for esperar os mestres morrerem, é o que tá acontecendo. Assinou a lei da ciranda, tá certo, e os mestres que estão parados"?
Ela se refere à Lei nº 77/2019, de autoria do deputado estadual Waldemar Borges, que institui o dia 10 de maio como o Dia Estadual da Ciranda. A data faz referência ao nascimento do Mestre Baracho, considerado um dos maiores cirandeiros pernambucanos, mas não foi recebida com tanto entusiasmo nem por Lia, nem pelo Mestre Santino: ambos acreditam que pouco ou nada irá mudar após a instituição do dia comemorativo. Uma das filhas de Baracho, Dona Severina, a Biu, canta com Lia, além de manter seu próprio grupo com a irmã, As Filhas de Baracho.
Lia luta pela retomada do funcionamento de seu espaço cultural, o Estrela de Lia, localizado na praia de Jaguaribe, em Itamaracá. Desativado desde 2015, quando fortes chuvas derrubaram toda sua estrutura, o espaço aguarda a liberação de uma verba de aproximadamente R$ 250 mil, segundo a cirandeira, presa na prefeitura local, para a construção de banheiros, camarins, palco e salas de aula, para que o lugar possa retomar suas atividades educativas e artísticas.
Enquanto esperam que a iniciativa pública local, e até mesmo a privada, deem as mãos para fortalecer suas cirandas, os mestres continuam em seu movimento de resistência, motivados pelo amor que sentem por sua cultura. Eles vão se alimentando do prestígio que conquistaram fora de casa, motivo de orgulho e de manutenção do seu trabalho. "A gente praticamente é mais divulgado lá fora do que no próprio lugar que mora", diz Lia; “Somos muito bem recebidas (lá fora), nunca vi gente pra gostar tanto de ciranda como lá no Rio”, comenta Dona Severina; ao que o Mestre Santino completa: “Eu já andei um bocado, já conheci quatro países de fora, Portugal, França, Inglaterra e Itália. Me tratam como se eu fosse de lá mesmo”.
Independentemente da pouca assistência e reconhecimento, esses mestres continuam de mãos dadas com sua cultura. Segurando com força a ciranda à qual tanto se dedicam para que nunca se deixe de cirandar.
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Fotos: Júlio Gomes/Rafael Bandeira/LeiaJáImagens