Tópicos | maracatu estrela brilhante de igarassu

Contam os mais antigos, e alguns pesquisadores que se debruçaram sob o tema, que no início do século 20, quando a prática do candomblé era proibida no Brasil, diversos terreiros se refugiavam dentro de nações de maracatu de baque virado para se livrarem da repressão e continuarem existindo. Mesmo antes disso, os maracatus já serviam como instrumento para que a população negra pudesse louvar seus deuses sob a desculpa de estarem celebrando uma festa ao toque dos tambores.

A ligação do maracatu de baque virado com a religião de matriz africana existe desde a origem do brinquedo e se estreitou ao longo dos séculos. A manifestação cultural, reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil, nascida em Pernambuco, atravessou gerações e, apesar de ter se moldado aos tempos modernos e se adaptado a inúmeras circunstâncias, mantém firmes seus fundamentos e tradições, sobretudo os religiosas. 

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Sendo assim, tocar maracatu pode significar algo muito maior do que apenas bater tambor. É o que garante Jobson José, de 22 anos. Ele toca há 10 anos e, há três, tornou-se integrante da Nação Aurora Africana, sediada em Jaboatão. Foi aí que tudo mudou. O jovem que havia conhecido o batuque através da igreja evangélica que frequentava aprendeu os fundamentos da nova casa e acabou se rendendo ao candomblé. "Saí da igreja e fui para a religião de matriz africana", diz ele. 

Jobson conta que no grupo percussivo que integrou na igreja, ele ouvia muitas críticas em relação à religiosidade nos maracatus nação e que quando chegou ao Aurora Africana um novo mundo se abriu para ele: "Foi um choque de realidade, eles me ensinaram lá que essas coisas eram malignas, quando cheguei aqui era totalmente diferente. O meio espiritual era outro, não tinha nada a ver com o que eles pregavam lá. Eu me identifiquei com isso, foi quando eu entrei pra religião, eu senti essa necessidade, quis agregar as duas coisas e abracei de coração os dois", conta. 

Hoje, Jobson ocupa um lugar importante dentro da nação. Ele é um dos responsáveis pelo 'bombo mestre', tambores maiores que têm o objetivo de guiar todo o batuque. Pelo tamanho de sua responsabilidade, esse batuqueiro precisa estar atento a alguns fundamentos religiosos que envolvem obrigações, tudo seguido à risca. "Faço resguardo total (antes de tocar), peço força ao meu Orixá primeiramente, e às calungas (bonecas que detém a ancestralidade da nação). Essas são minhas duas forças, além de Deus", garante.

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Depois de conhecer e entrar para a religião de matriz africana, o batuqueiro garante: sua relação com o maracatu mudou. Tocar tambor e levar o baque de sua nação adiante ganhou novo significado e isso repercutiu, inclusive, em sua vida pessoal: "A sensação é outra, a vibração é outra. A espiritualidade é mais forte, na hora de tocar, a concentração muda. Parece que você entra em um estado inexplicável. Lá (na igreja) eu tocava como se fosse por esporte, só por tocar. Agora o envolvimento é maior. Sinto que o meu espírito está mais próximo do tambor. Sinto que estou tocando para o orixá, não pra qualquer pessoa. É para alguém do outro lado, não só pra mim". 

Outro batuqueiro que passou por essa experiência é Josivaldo Romão, de 32 anos. Participando do maracatu nação há 15 anos, hoje ele integra a centenária Estrela Brilhante de Igarassu, Patrimônio Vivo do Estado. O jovem conta que após começar a tocar, sentiu a necessidade de buscar mais conhecimento e essa busca o levou às religiões de matriz africana e indígena, a Jurema: "(Foi) para aprender mais e mais sobre a grandeza dos elementos e a força contida dentro da ciência sagrada, para ser completo e conhecer todo o fundamento", explica.

Romão afirma nutrir grande respeito às "crenças que o rodeiam", e que a religiosidade mudou seu modo de ver o brinquedo e a própria vida: "a religião me abriu os olhos para o sagrado que o maracatu leva consigo, por ser um culto de egun (espíritos) que por muito tempo eu desconheci".

Já Ricardo Rocha, de 40 anos e batuqueiro desde os 15, entrar para a religião de matriz africana lhe deu o entendimento de coisas que aconteciam dentro da tradição que antes ele não tinha. Ele se descobriu no candomblé quando tocou na Nação do Maracatu Porto Rico. Lá, ele foi "suspenso", ou seja, designado como ogã (aquele que toca para os orixás) da casa, por Mãe Lêu, Oxum Pandá do terreiro, e desde então vem professando sua fé. 

Para o batuqueiro, hoje integrante da Nação Estrela Brilhante de Igarassu, além de entender melhor os fundamentos do maracatu de baque virado, ele tem em seu batuque um meio de comunicação com o sagrado: "Quando a gente toca, a gente faz um elo entre o profano e o religioso, o presente e o passado, quando a gente bate uma alfaia de maracatu a gente acorda quem tá dormindo, porque maracatu é uma música tocada para os eguns. Então, pra mim é uma coisa muito mágica, não é todo mundo que entende, tem gente que acha que tudo é ‘macumba’ mas não, cada coisa tem seu significado". 

Fundamentos

Fábio Sotero, presidente da Nação Aurora Africana, explica a ligação dos maracatus nação com a religião de matriz africana: "É devido aos antepassados. Quem fazia o maracatu eram as lideranças dos negros, que eram os babalorixás. Eles eram coroados como rei do Congo, depois passou a se evidenciar mais as rainhas, por isso que hoje temos tantas em destaque, começando a partir de Dona Santa (da Nação Elefante). Hoje temos outras figuras de extrema importância, como Mãe Nadja, do Leão da Campina, Marivalda do Estrela Brilhante do Recife, Elda, da Nação Porto Rico, são todas yalorixás e lideranças em seus maracatus".

O presidente afirma que as rainhas, bem como os reis, as damas de Paço (mulheres que carregam as calungas) e alguns batuqueiros, como os que levam o bombo mestre, são os responsáveis pelo bom andamento do cortejo e do batuque e, sendo assim, precisam estar atentos à sua religiosidade. "Essa é a pilastra que todo maracatu nação precisa ter para ser identificado como tal. Porque o maracatu em si é dos orixás. Quem rege isso é Dona Iansã e Xangô que é o dono de todos os maracatus. Mas cada um tem o seu orixá patrono. O Aurora é de Oxaguiã e de Xangô". 

Essas 'pilastras' precisam fazer algumas obrigações, como oferendas e resguardos de relações sexuais e bebida alcoólica antes de ‘ir pra rua’ e tocar. "A gente joga os búzios, eles (orixás) dizem o que precisa ser feito, e a gente dá esse conforto, faz essas oferendas pra essas lideranças. Graças a Deus a gente tem a compreensão deles e eles veem o que a gente pode fazer", explica Fábio.

Ele também deixa claro, que não é obrigatório ser da religião de matriz africana para integrar o maracatu nação. Aqueles que desejam fazer parte da brincadeira apenas para tocar e dançar, sem laços de fé e religiosidade, podem fazê-lo tranquilamente: "Não tem problema mesmo. No Aurora a gente abraça todo mundo, independente de religião, de gênero e de classe. Aqui todo mundo é tratado como igual, com ou sem religião. Mas a gente tem nossas pilastras, as pessoas ‘cabeça’ que colaboram para o maracatu ir pra rua". 

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Preconceito e intolerância

Hoje, em pleno 2019, as religiões de matriz africana já não enfrentam mais as proibições mencionadas no início desta matéria. No entanto, seus fiéis e adeptos continuam enfrentando a intolerância e o preconceito arraigados na sociedade em relação a essas tradições ancestrais. Os batuqueiros entrevistados pelo LeiaJá falaram a respeito do assunto. Josivaldo Romão conta que a vigilância precisa ser constante: “Estamos o tempo todo em luta contra a intolerância, sempre que vejo alguém que não tem a humanidade de buscar o conhecimento. Todos temos o sagrado”, afirma.

Jobson, que trocou a religião evangélica pelo candomblé, conta que precisa lidar com o preconceito dentro da própria casa, e que já chegou a ser chamado de "ovelha perdida". No entanto, o jovem não se abala e defende suas escolhas de cabeça firme: "Eu acredito que se você saiu de um canto que não estava se sentindo bem e agora está em um em que se sente bem, esse é o bom da vida. Se meu espírito está bem, então é porque estou bem com Deus e com os orixás. Depois que conheci os orixás a minha vida mudou. Meu espírito evoluiu, na minha cabeça houve uma evolução". 

Situação parecida enfrentou Ricardo, filho de mãe extremamente católica, ele precisou travar alguns embates com ela após entrar para o candomblé e o maracatu. Mas, o batuqueiro também não se intimida e procura entender a origem do preconceito: “É assim mesmo, quando a gente não conhece uma coisa, a gente sempre tem medo, fica receoso, porque o desconhecido faz com que você fique com medo. Mas quando você conhece, você percebe que não tem nada a ver”. 

Imagens

Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Reprodução/Facebook Josivaldo Romão

Chico Peixoto/LeiaJáImagens/Arquivo

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Ao entrar no Rosário, sede do Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu, o que se vê são rapazes, de todas as idades, encourando e afinando tambores. Eles estão preparando a casa para a festa desta sexta-feira (8), que vai comemorar os 193 anos da nação. Com quase dois séculos de história, o Estrela de Igarassu é a nação de baque virado mais antiga em atividade no estado de Pernambuco. Sua tradição e longevidade lhe garantiram reconhecimentos importantes como o título de Patrimônio Vivo de PE, ponto de cultura e o Prêmio de Culturas Populares do Ministério Da Cultura, conferido neste mês de dezembro. Mas, sobretudo, a nação de Igarassu detém o reconhecimento do público, maracatuzeiros ou não, que veem nela autoridade e o brilho que só uma grande estrela pode ter.

O Estrela Brilhante de Igarassu é mantido pela família Santana, que segue os ensinamentos deixados pelas duas últimas rainhas da nação, D. Mariú e D. Olga, esta falecida em 2013, aos 74 anos. Hoje, quem preside o maracatu é Gilmar Santana de Batista, filho de Olga, neto de Mariú, e mestre de apito no Estrela há mais de 20 anos. 'Tio Má', como é chamado, se orgulha de dar continuidade ao trabalho da avó e da mãe e faz questão de manter as tradições aprendidas com elas. “Ela (a mãe) dizia ‘é assim’ e era assim mesmo. E eu tento fazer do mesmo jeito. Tentando fazer o melhor e não deixar cair a nossa tradição.”, diz.  

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Esta tradição é defendida com força em Igarassu, ao passar das gerações. A nação tem seu próprio jeito de dançar, de vestir os integrantes e de tocar: “A diferença é o ritmo, a gente toca com uma baqueta e um bacalhau, o suingue é completamente diferente.”, diz o mestre. Outra característica que diferencia o Estrela da quase total maioria dos maracatus é a proibição de mulheres tocando em seu batuque. A regra costuma chamar bastante atenção, mas Gilmar explica o porquê: “Toda hora a turma faz essa pergunta. Os batuqueiros do maracatu representam os ogãs de dentro do terreiro e não existe mulher ogã. Do mesmo jeito que a gente faz a religião, a gente traz para o folguedo, com a sinceridade que vem lá de dentro do terreiro.” O maracatu de baque virado tem ligação estreita com a religião de matriz africana, o Candomblé. Para resolver este ‘problema’, foi criado o Bloco Aláfia, que sai no Carnaval de Olinda, aos domingos, com todos que queiram tocar o baque da nação, inclusive, as meninas.

Mantendo as raízes, o Estrela conseguiu extrapolar os limites geográficos de Igarassu. Apesar da maioria dos batuqueiros e baianas serem da região, muitos são aqueles que vêm de fora para brincar. Todos os anos, pessoas do Recife, São Paulo, Curitiba, Minas Gerais e até do Japão, vêm para a cidade para sair no carnaval dançando e tocando. Os batuqueiros mais experientes, e o próprio Gilmar, também viajam pelo mundo dando oficinas que ensinam os fundamentos do seu maracatu e vários são os grupos, espalhados pelo Brasil e fora dele, que desenvolvem trabalhos inspirados na nação de Igarassu. “Com a nossa simplicidade, a gente vai pra avenida e vê gente se arrepiando, chorando e querendo brincar com a gente.”, diz Gilmar.

Continuidade

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Na família Santana, quem vai nascendo vai entrando no maracatu num movimento quase orgânico. As crianças aprendem o baque e a dança instintivamente, como comprova o pequeno Josuel Paulino Barbosa, de 11 anos, bisneto de Dona Olga e batuqueiro “desde novinho”: “Ninguém me ensinou, não. Aprendi só.”, diz orgulhoso.

Os mais velhos, já trabalham efetivamente na manutenção da tradição familiar. Como Rogério de Souza, neto de Olga e sobrinho do mestre Gilmar, que hoje, assume a função de contra-mestre da nação. Rogério também viaja dando oficinas que ensinam o baque do Estrela de Igarassu e a confecção de instrumentos de maracatu: “É responsabilidade e é muita emoção, um orgulho enorme. Tem nem palavras para falar.”, resume o batuqueiro.  

Manutenção

Para manter uma nação de “grande porte”, como classifica Gilmar, é preciso muita dedicação. A receita vem de apresentações, oficinas, venda de instrumentos e subsídios governamentais como o recebido pelo título de Patrimônio Vivo. Tudo é investido na própria nação: “Financeiramente, é trabalhar para o maracatu. Prova tanto que é o primeiro maracatu que tem seu ônibus, tem uma sede boa, um som bom. Tudo com dinheiro do maracatu, sem pedir nada para o poder público. A gente trabalha com as nossas pernas. Passa por dificuldade porque todo mundo passa, querendo ou não. Mas a gente segura a onda, se agarra com Deus e Dona Emília (a calunga da nação), e deixa o barco andar”, fala Gilmar.

Ao lado dele, trabalha também o irmão Gilberto Santana, o Tio Bel, e o sobrinho Rogério. Para Tio Bel, continuar o trabalho deixado pela família é missão: “Cultura só faz quem gosta. É uma coisa que veio dos meus avós, da minha mãe, agora está comigo, meu irmão e Rogério, pra gente manter a tradição da nossa família. A gente tem que levar até... Aí é Jesus quem vai dizer.”

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Celebração

Nesta sexta-eira (8), dia em que completa 193 anos de atividades, o Estrela Brilhante de Igarassu abre sua sede, no Sìtio Histórico de Igarassu, para uma grande festa. À partir das 15h, os integrantes da nação recebem os amigos para uma tarde de batuque e shows com os convidados, Dinda Salú e Trio Paraíba, Murilo Silva e Coco de Dona Olga. A comemoração é aberta ao público. 

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