Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí, São Paulo, no dia 06 de novembro de 1910, e faleceu na cidade de São Paulo em 14 de abril de 2006. Tornou-se bacharel em direito aos 24 anos e, aos 30, catedrático de filosofia do direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Com essa tese de cátedra, Fundamentos do Direito, de 1940, lançou as bases de sua teoria tridimensional do direito, denominação pela qual ficou conhecida sua filosofia do direito. Eu prestei exame de seleção para ser seu orientando de mestrado em janeiro de 1979 e, no dia de seu aniversário de 70 anos defendi minha dissertação, tornando-me seu último orientando, posto que atingira a idade da aposentadoria compulsória. Pretendo agora, em dois artigos aqui no LeiaJá, fornecer um resumo de sua obra jurídica.
Pode-se tentar detectar uma evolução na história do pensamento jurídico ocidental que desemboca no tridimensionalismo jurídico colocado por Reale. Essas três dimensões, fato, valor e norma, já foram respectivamente consideradas pelas diversas escolas como objeto privilegiado da pesquisa em direito: o culto à norma pelas teorias normativistas, cuja precursora foi a Escola da Exegese, que chega a reduzir o direito à lei escrita; em uma reação a esse apego à idéia de norma, a Escola do Direito Livre toma sobretudo o fato social como fonte da realidade jurídica; e a filosofia dos valores, com sua concepção de cultura, tem o valor como sentido do direito e ressalta sua importância em detrimento das demais dimensões.
A influência de Kant é nítida e confessa no pensamento de Reale, sobretudo na tentativa de rigor metodológico e na procura de unidade concreta para sua interpretação de fatos, valores e normas. O método assume o papel de “condição de possibilidade” na compreensão do fenômeno jurídico. Por isso revestem-se de fundamental importância os pressupostos metodológicos adotados por Reale, funcionando quase que como princípios transcendentais da estrutura tridimensional.
Miguel Reale afasta-se do criticismo transcendental na medida em que não admite uma estrutura predominantemente lógico-formal no ato de conhecer, considerando o elemento estimativo ou axiológico como responsável pela dinâmica do conhecimento enquanto historicidade, ou seja, durante seu processo. A crítica deve exigir o elemento axiológico de modo necessário, pois que implica uma distinção e uma escolha entre os elementos logicamente válidos e aqueles que não o são; o valor não seria então meramente transcendente mas sim imanente à estrutura mesma do ato gnoseológico.
Os valores, para Reale, não existem em si mesmos, de forma absoluta, independentemente da existência e da história do ser humano, do ser que os percebe. Os valores são produto da consciência e da ação e são realizados historicamente. Isso não implica, porém, relativismo: uma vez criados, realizados e estabelecidos pela cultura, os valores permanecem para sempre no horizonte daquela comunidade e a conformam e individualizam. São as “invariantes axiológicas”.
Mas o único valor absoluto é a própria pessoa humana, pois ela é a condição necessária para a existência de qualquer valor. Os demais valores, não fundantes, mas derivados, são históricos, resultantes do reflexo do quadro cultural na consciência das pessoas e, portanto, variáveis no tempo e no espaço. A história submete os valores a um processo, pois, ao serem captados e racionalizados como fins, eles precisam ser considerados “em relação aos meios idôneos para sua realização”.
Reale constrói uma terceira dimensão, ao lado do ser (real) e do dever ser (ideal), para encaixar sua axiologia, posto que os valores “são enquanto devem ser”, ao mesmo tempo em que seu dever ser tende à realização no mundo específico da cultura. Reale busca assim superar, por meio de uma “integração normativa de fatos segundo valores”, as posturas de ênfase exclusiva sobre o fato (realismo jurídico), a norma (normativismo) e o valor (jusnaturalismo).
Reale observa o direito por meio da descrição fenomenológica e procura atingir a essência eliminando o contingente e atendo-se aos dados imediatos da consciência, mas acrescentando uma valoração crítica e histórica. Reale conclui pelo caráter teleológico da conduta humana, essencial e necessariamente eivada das três dimensões que compõem sua realidade.
O valor apresenta, assim, três funções em relação a sua atuação sobre a experiência jurídica; como fator constitutivo da realidade (função ôntica), como prisma para compreender tal realidade (função gnoseológica) e como razão determinante da conduta, já que só se age em direção a fins (função deontológica).
A conduta humana assume, na fenomenologia da ação observada por Reale, cinco modalidades diferentes: religiosa, quando o móvel de agir é um valor transcendente; moral, quando o agente se prende à conduta por si mesmo, seja tal conduta autônoma – a norma de conduta é fixada pelo próprio agente –, seja ela heterônoma – o agente reconhece em outrem o poder de ditar-lhe normas de conduta moral; convencional, quando o sujeito obedece a determinadas normas por conveniência própria; econômica, quando os participantes se inter-relacionam em função de bens materiais; e jurídica, quando os agentes estabelecem entre si uma bilateralidade atributiva, pela qual se obrigam e são obrigados a determinados comportamentos. De qualquer modo, em todas as condutas humanas há sempre uma energia espiritual, captada por um valor objetivo predominante na comunidade, o qual tende a normatizar-se.
Na perspectiva de Reale, o único direito observado é o positivo, o que permite classificá-lo entre os positivistas, numa visão quase que uniformemente generalizada nos juristas posteriores a Savigny, em que pesem suas numerosas divergências internas. E esse direito positivo de Reale é composto de três fatores ontognoseologicamente distintos, se bem que inseparáveis, quais sejam: fato, valor e norma (Teoria Tridimensional do Direito, 1968).
Não somente o direito mas também a ordem moral é tridimensional, diferindo da jurídica por dirigir-se à subjetividade consciente e livre do ser humano. A ordem jurídica visa principalmente o respeito a uma ordem objetiva nas relações entre pessoas. As duas ordens normativas diferem, porém interagem de tal modo que uma não se realiza sem a outra.
As três dimensões do direito são vistas indissociadamente: são valores que se concretizam historicamente nos fatos e relações intersubjetivas que se ordenam normativamente. Utilizando apenas um critério de prevalência, evitando conferir juridicidade a qualquer uma dessas dimensões em separado, Reale estabelece os seguintes campos de estudo: o direito como valor, estudado teoricamente pela deontologia jurídica e, no plano empírico, pela política jurídica; o direito como norma, objeto da jurisprudência (no sentido clássico) ou ciência do direito, no aspecto dogmático, e pela epistemologia jurídica, sob a perspectiva do conhecimento; e o direito como fato, estudado pela história, sociologia e etnologia do direito e pela culturologia jurídica.
Assim não há qualquer separação ou predominância absoluta de um fator sobre o outro, mas Reale admite a norma como momento culminante da experiência jurídica, para o jurista propriamente dito, embora sempre a norma implique um equilíbrio entre fatos (dados empíricos de um determinado momento histórico-social) e valores exigidos (ideais políticos, pressões de todos os tipos, ideais morais, religiosos etc.). As normas jurídicas, ao contrário das leis físicas, não são simples captação descritiva do que constitui o fato, mas sim tomada de posição constitutiva frente a um fato. Por sua própria natureza, as normas estão sempre em estado de tensão: referem-se a fatos e valores passados, tendendo à conservação, e a fatos e valores novos, na medida em que aparecem, tendendo à renovação.
No mesmo sentido, quando um valor é dominante, tende a realizar-se por intermédio de uma norma, dirigida ao ser humano, o qual é fundamentalmente liberdade, na medida em que opta. O fato e o valor vivem também em constante estado de tensão, pois os valores penetram no mundo real, tendem a realizar-se; a norma, por seu turno, reúne o fato e o valor dentro de si e projeta-se para o futuro como parâmetro de conduta.
Esse fenômeno que se denomina o direito só existe porque o ser humano se propõe fins; todo e qualquer ato jurídico possui um móvel de conduta, o qual lhe fornece o sentido. Esses fins são exatamente os valores que a conduta visa realizar.
Se é verdade que nem tudo no valor pode ser explicado racionalmente, não se pode esquecer de seus parâmetros racionais, pois o valor só se transforma em fim na medida em que é representado racionalmente. Isso significa que o valor é compatível com a razão humana, muito embora não se reduza a ela.
Uma vez que a axiologia constitui a base da teleologia, no pensamento de Miguel Reale, e os fins se baseiam nos valores, estes assumem o papel de fins últimos, ou seja, são fins em si mesmos, nunca meios para outros fins. Os valores são possibilidades para que o sujeito possa atuar, na medida em que ele os haja elegido como fins para sua conduta. Um problema central é a verificação de que os valores variam, ou seja, sua objetividade é relativa. Tal objetividade está garantida, porém, pela própria estrutura da consciência humana, valor básico e fonte primeira de todos os demais valores. O conteúdo valorativo modifica-se, explica Reale, porque variam as possibilidades da consciência ao longo da história, quer dizer, se a fonte – a consciência – varia e é influenciada pela história, os valores – seu produto – também o são. É aqui um dos pontos da diferença entre realidade física e realidade espiritual: a realidade espiritual é da consciência, isto é, projeta valores, pois as relações entre as consciências dos indivíduos são relações de valores.
O direito é uma parte importante na integração entre ser e dever ser que se realiza no ser humano que apreende valores, daí o direito se colocar em função de fins. A conduta escolhe maneiras de agir em detrimento de outras e essas preferências têm em vista realizar valores, daí a normatividade implicar tomada de posição, vontade, ou seja, opção de valor, meio e fim. Reale procura então unificar em uma totalidade sua concepção da realidade jurídica, entendendo fato, valor e norma como postura metodológica, dirigida a possibilitar o conhecimento. O direito é (onticamente) uno e (ontognoseologicamente) aparece como tridimensional. É o tridimensionalismo dinâmico (Fundamentos do Direito, 1940).
Duas das principais características dos valores, a realizabilidade e a inexauribilidade, são fundamentais para uma devida compreensão filosófica dos problemas referentes à validade, à eficácia e ao fundamento do direito. Isso ocorre porque tanto o processo histórico é desprovido de sentido sem o valor, quanto este permanece inválido se não fornece sentido a um determinado momento histórico, realizando-se. Por outro lado, o valor está na totalidade do processo histórico e é, em relação a tal processo, inexaurível. Ele é assim imanente ao homem e à sua história. Os elementos constitutivos da realidade jurídica são pois o fato, o valor e a norma, enquanto suas notas dominantes são, respectivamente, a eficácia, o fundamento e a validade. Isso leva ao paradigma da concreção no pensamento de Reale.