Tópicos | Plano de atendimento educacional

Era início da tarde quando a comitiva da Gerência de Políticas Educacionais do Campo (GEPEC) chegou na casa da família Ferraz. Em poucos minutos, parte da família já estava reunida no terraço da residência, localizada no município de Feira Nova, Agreste de Pernambuco, para ouvir a proposta do grupo. Em meio à conversa, Onedino José Ferraz, 62 anos, foi puxado para um passado não muito distante. Ele nunca negou ou nega as origens ciganas, fala com orgulho, mas também, com a dor de quem conviveu com o preconceito. “A gente se esconde da sociedade”, diz.

O “porta-voz” da família Ferraz não concluiu os estudos, tampouco chegou a frequentar uma sala de aula. A esposa Maria Severina de Siqueira Ferraz, de mesma idade, também não estudou. Todo conhecimento do casal é reflexo das vivências do mundo. Antes de estabelecerem residência em Feira Nova e, anteriormente, em Igarassu, na Região Metropolitana do Recife, Onedino, Maria Severina e os quatro filhos viviam de maneira nômade. “A gente já morou em tantos lugares”, relembra a matriarca.

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Onedino Ferraz recebe a comitiva da GEPEC. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Sem residência fixa e sob o julgamento alheio, os filhos do casal se mantiveram longe da escola até a década de 1990, época em que os Ferraz fizeram morada na cidade de Igarassu. Os irmãos Onedino José Ferraz Júnior e Vanessa de Siqueira Ferraz começaram a frequentar o ambiente escolar já na adolescência. Ele por volta dos 13 anos, ela com 18. Ambos não finalizaram o ensino fundamental. Vanessa parou na quarta série, já o irmão foi até a quinta.

Para a reportagem do LeiaJá, ela explicou os motivos do afastamento da sala de aula. “Existia muito preconceito. O pessoal vivia brigando com a gente e dizendo coisas, porque sabiam que a gente era cigano. Meu pai não parava em um lugar só, ele andava muito. Não tinha como a gente estudar”, recorda. Ela relata que o irmão caçula, que não estava no momento da entrevista, não iniciou os estudos. “Meu irmão, mesmo, não sabe nem assinar o nome. Ele morre de vergonha, porque na identidade dele tem marcado lá não alfabetizado”, conta.

Onedino e Maria Severina Ferraz. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Futuro melhor

Onedino Júnior e Vanessa seguem os passos profissionais dos pais. Casados e com filhos, os irmãos se dedicam, respectivamente, à construção civil e costura. No entanto, não negam o desejo de concluir os estudos e reforçam a importância da educação. “Estudar faz muita falta. Até para arrumar um emprego a pessoa precisa mostrar estudo”, observa Vanessa. “Se a gente estivesse terminado, a gente estava em outro lugar”, complementa Onedino.

Com os filhos matriculados em uma instituição privada do município, os irmãos almejam um futuro melhor para as crianças. “Eu não quero que minha filha tenha a vida que eu tive. Assim, eu quero que ela estude, que ela seja alguém na vida, que termine os estudos. Ela é muito inteligente, pega as coisas muito rápido”, afirma Vanessa, sem esconder o orgulho. Com três filhos, sendo dois em idade escolar, Júnior compartilha do mesmo sentimento da irmã. Homem de poucas palavras, mas de olhar expressivo, ele não nega esforços para proporcionar o melhor às crianças. “Tudo que eu trabalho, construo para eles”, frisa.

Onedino Júnio e Vanessa Ferraz com os filhos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Engana-se quem pensa que a entrada das crianças na escola foi uma decisão sem receio dos pais. Eles contam que precisaram se desfazer dos medos, reflexo de um estigma imposto por uma sociedade que desconhece a cultura cigana. “A gente tinha receio que eles passassem pela mesma coisa que a gente passou. Minha filha até chegou a passar por uma situação, mas, a professora conversou com o restante dos alunos e, agora, está tudo bem”, conta Vanessa.

Declarar-se cigano, para os irmão, não é sinônimo de problema. “Em todo canto que a gente vai, nunca se nega a origem. Isso não é problema”, ressalta Júnior. No entanto, relatam que, mesmo sendo de conhecimento de todos, os episódios de preconceito ainda persistem. “Tem gente que coloca as crianças para dentro quando a gente passa. Dizem que a gente vai roubar”, alega Vanessa. Entretanto, os irmãos se mantêm firmes.

Identidade cigana

Com mais de mil anos de existência, de tradição oral, costumes e língua peculiares, os povos ciganos têm sua origem atribuída à Índia. De acordo com o último Censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasilleiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há 800 mil ciganos, distribuídos em 291 cidades brasileiras.

No entanto, o presidente da Associação de Ciganos de Pernambuco (ACIPE), Enildo Soares, fala que o quantitativo, atualmente, é superior ao divulgado pelo censo. A ausência de números mais precisos dificulta o acesso da comunidade a serviços como saúde e educação, além da inexistência de políticas públicas direcionadas a este público. Em um recorte mais regional, segundo dados do Instituto Cigano Brasil (ICB), o Estado de Pernambuco contabiliza cerca de 20 mil ciganos.

A chegada da comunidade cigana em Pernambuco se cruza com a vinda da Família Real ao país. No Estado, há presença cigana nas cidades pertencentes à Região Metropolitana do Recife, Zona da Mata, Sertão e Agreste. “Muitos ciganos chegaram aqui, vindos de Portugal, através dos Navios Negreiros quando Pernambuco ainda era uma Capitania Hereditária. O Estado tem uma quantidade grande de ciganos”, explica Enildo.

Atualmente, muitos povos ciganos são sedentários, ou seja, não nômades. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Divididos em três etnias - rom, calon e sinti -, sendo a segunda de presença mais expressiva no Estado, os povos ciganos estão longe daqueles retratados em novelas, filmes e séries. "Cigano não é como nas novelas. Nem todo cigano é rico, vive de maneira nômade. Já tem cigano na universidade, livros sobre a cultura cigana", aponta. Logo, muitas comunidades já vivem de forma sedentária e nem sempre moram em acampamentos. O catolicismo e evangelismo são doutrinas presentes nas comunidades. "Agora, cada um pode escolher a sua religião. Já tem igreja evangélica cigana, a maior é em Campinas, São Paulo", fala o presidente da ACIPE.

 Um sopro de mudança

O trabalho da GEPEC é intinerante e feito em parceria com a Secretaria de Educação de Pernambuco, ACIPE, ICB e instituições educacionais. Ao lado de Enildo Soares, o grupo chega a mais uma casa. Da janela, Joyse Ferraz, com o filho de três anos a tiracolo, ouve a proposta do Plano de Atendimento Educacional, que pretente levar para as comunidades ciganas professores para atuar na educação de jovens e adultos que não concluiram ou iniciaram os estudos.

A princípio, voltar a estudar nas condições atuais, para Joyce, não parece uma boa ideia. No entanto, as explicações de Viviane Alves, coordenadora de Políticas Educacionais para os Povos Ciganos, da GEPEC, aos poucos, começam a modificar o semblante da jovem, que parou de estudar ainda no fundamental e, atualmente, dedica-se à criação do filho, juntamente com a madrinha, e afazeres domésticos. 

Equipe da gerência chega à casa de Joyce Ferraz para apresentar a proposta do Plano de Atendimento Educacional para povos ciganos. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

O Plano de Atendimento Educacional vem sendo construído desde de 2018. A primeira etapa consiste no mapeamento das comunidades ciganas, que nem sempre é uma tarefa fácil, como explica Jailson Santos, gerente da GEPEC. "Além da questão do nomadismo, há também a ausência de autodeclaração", aponta.

Questionado sobre o porquê da elaboração e funcionamento do plano, Jailson é categórico. "Há um déficit educacional entre jovens e adultos ciganos. O mesmo cenário não ocorre com as crianças, pois, estão devidamente matriculadas em instituições de ensino. Muitos (jovens e adultos) alegam que as escolas estão longe das localidades onde vivem. O plano pretende levar para dentro das comunidades professores para viabilizar a escolarização e continuidade dos estudos", explica. Ainda não se tem previsão para os início das aulas, espera-se ter quantitativo necessário para abri-las.

A possibilidade de conciliar as demandas domésticas, um futuro trabalho e os estudo à noite, na Educação de Jovens e Adultos (EJA), desperta o interesse de Joyce pelo projeto. Ao finalizar a conversa, a equipe da gerência sai do local com alguns dados, o telefone de contato e mais uma aluna para a ação.

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