“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é [...]”. Trata-se de um hino de amor ao samba escrito pelo gênio de Caymmi. Mais precisamente ao samba-canção. Eaí entra outro cara genial: Ruy Castro com a monumental obra “A noite do meu bem –A história e as histórias do samba-canção”.
Ruy éum garimpeiro bem-sucedido de tesouros musicais e esplêndidas biografias. Pudera, ele éum ser musical, nasceu escutando os acordes do violão paterno com os sucessos da época (Chico Alves, Haroldo Barbosa, Ary Barroso, Herivelto Martins e tantos outros) e amamentado pelas modernas e ecléticas preferências maternas. Seus ouvidos, muito cedo, se deram conta das valsas, boleros, tangos, foxes e de um gênero que marcaria a história musical brasileira: o samba-canção.
Com efeito, “A noite do meu bem”éuma fascinante narrativa do escritor que transpõe para a prosa, distintas partituras de realidades entrelaçadas: cultura, política, economia, sociedade e personagens marcantes numa sinfonia que diverte e emociona.
O meu encantamento pelo escritor vem de longe. Deu-se num domingo modorrento e entediante quando morava em Brasília. Embarquei e viajei na biografia de Garrincha. Sem pausas. No fim do dia, olhos avermelhados. Chorei e muito. Acabara de jogar uma pelada com ManéGarrincha num campo de várzea de Pau Grande.
Sonho ou delírio? O importante éque fui transportado para uma vida real marcada porcimos e vales, dores e amores, o símbolo de um futebol mágico que não volta mais. Manéentrou e jamais saiu do campo da minha imaginação. Assim foi em “O Anjo Pornográfico”, “Carmen Miranda”, “Chega de Saudade”e a “A Noite do Meu Bem”.
Com autoridade de quem sabe o que diz, Ruy define o samba-canção como um gênero autônomo e não uma costela do samba; composto por uma linha melódica não-sincopada; gênero que permite o canto suave e inspira a intimidade de rostos e corpos colados. Uma ode ao amor saudou o fim da brutalidade da Segunda Guerra. Assim, viventes e sobreviventes se entregaram ao gozo da paz universal.
No Brasil, a política retomava a democracia depois de oito anos de ditadura estadonovista. Respirava-se um clima de liberdade com Dutra,presidente eleito que somente as peculiaridades brasileiras explicam: ex-Ministro da Guerra e algoz de Getúlio; um candidato pesado que contou com o apoio próprio Getúlio; um presidente sem sabor, de cintilante mediocridade cuja graça era o defeito de dicção que trocava o “c” e o "s" pelo“xis”(voxê xabia que no xeará...).
Por sua vez, o Rio de Janeiro continuava lindo e cheio de graça. Uma nova e variada fauna iria lustrar a Cidade Maravilhosa sob o manto protetor e estimulante da noite. A noite! Isto mesmo, a noiteéa mãe da boemia e a lua, o sol da noite. Sem noite não háboemia. Não hámistérios. Paixões implícitas, amores explícitos. Porres homéricos. Recantos charmosos e a Lapa de sempre. Ricos bestas; pobretões espertos; mulheres elegantérrimas; homens charmosos; luxo, glamour e cafonice, intrigas e negociatas, milionários e vagabundos, milionários vagabundos (rico, dizia Jorginho Guinle não é quem tem dinheiro; équem não vai ao escritório), políticos, diplomatas, intelectuais, jornalistas, e os artistas, tudo, enfim, convergindo para um espaço comum onde era impossível distinguir o começo e o fimda vida e da arte.
Aliás, este mundo das mil e uma noites jáfervilhava nos famosos cassinos cariocas. Eis que no dia 30 de abril de 1946, Dutra, em nome da tradição moral e dos bons costumes, decretou o fechamento dos cassinos em todo território nacional. O magnata Joaquim Rolla–proprietário dos cassinos da Urca, Icaraí, Quitandinha e Pampulha –viu desabar o seu império, certamente, arrependido do apoio que dera a Dutra na eleição presidencial. Injustamente, a beata esposa do presidente, Dona Santinha paga, atéhoje, o preço do ódio que o marido devotava aos jogos de azar.
A noite carioca seria reinventada. E voltaria com toda força. Seu habitat: boate,caixa, francesismo usado pelo austríaco Max Stuckart para descrever o ambiente intimista da casa noturna. Seu ritmo: o samba-canção. Sua proposta existencial: a opção pela vida intensa versus a vida extensa. Ali tudo acontecia. Éo que contarei na segunda parte do artigo.