Gustavo Krause

Gustavo Krause

Livre Pensar

Perfil: Professor Titular da Cadeira de Legislação Tributaria, é ex-ministro de Estado do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, no Governo Fernando Henrique, e da fazenda no Governo Itamar Franco, além de já ter ocupado diversos cargos públicos em Pernambuco, onde já foi prefeito da Capital e Governador do Estado.

Os Blogs Parceiros e Colunistas do Portal LeiaJá.com são formados por autores convidados pelo domínio notável das mais diversas áreas de conhecimento. Todos as publicações são de inteira responsabilidade de seus autores, da mesma forma que os comentários feitos pelos internautas.

A Noite do Meu Bem (Parte I)

Gustavo Krause, | seg, 18/01/2016 - 08:47
Compartilhar:

Quem não gosta de samba, bom sujeito não é [...]. Trata-se de um hino de amor ao samba escrito pelo gênio de Caymmi. Mais precisamente ao samba-canção. Eaí entra outro cara genial: Ruy Castro com a monumental obra A noite do meu bem A história e as histórias do samba-canção.

Ruy éum garimpeiro bem-sucedido de tesouros musicais e esplêndidas biografias. Pudera, ele éum ser musical, nasceu escutando os acordes do violão paterno com os sucessos da época (Chico Alves, Haroldo Barbosa, Ary Barroso, Herivelto Martins e tantos outros) e amamentado pelas modernas e ecléticas preferências maternas. Seus ouvidos, muito cedo, se deram conta das valsas, boleros, tangos, foxes e de um gênero que marcaria a história musical brasileira: o samba-canção.

Com efeito, A noite do meu beméuma fascinante narrativa do escritor que transpõe para a prosa, distintas partituras de realidades entrelaçadas: cultura, política, economia, sociedade e personagens marcantes numa sinfonia que diverte e emociona.

O meu encantamento pelo escritor vem de longe. Deu-se num domingo modorrento e entediante quando morava em Brasília. Embarquei e viajei na biografia de Garrincha. Sem pausas. No fim do dia, olhos avermelhados. Chorei e muito. Acabara de jogar uma pelada com ManéGarrincha num campo de várzea de Pau Grande.

Sonho ou delírio? O importante éque fui transportado para uma vida real marcada porcimos e vales, dores e amores, o símbolo de um futebol mágico que não volta mais. Manéentrou e jamais saiu do campo da minha imaginação. Assim foi em O Anjo Pornográfico, Carmen Miranda, Chega de Saudadee a A Noite do Meu Bem.

Com autoridade de quem sabe o que diz, Ruy define o samba-canção como um gênero autônomo e não uma costela do samba; composto por uma linha melódica não-sincopada; gênero que permite o canto suave e inspira a intimidade de rostos e corpos colados. Uma ode ao amor saudou o fim da brutalidade da Segunda Guerra. Assim, viventes e sobreviventes se entregaram ao gozo da paz universal.

No Brasil, a política retomava a democracia depois de oito anos de ditadura estadonovista. Respirava-se um clima de liberdade com Dutra,presidente eleito que somente as peculiaridades brasileiras explicam: ex-Ministro da Guerra e algoz de Getúlio; um candidato pesado que contou com o apoio próprio Getúlio; um presidente sem sabor, de cintilante mediocridade cuja graça era o defeito de dicção que trocava o c e o "s" peloxis(voxê xabia que no xeará...).

Por sua vez, o Rio de Janeiro continuava lindo e cheio de graça. Uma nova e variada fauna iria lustrar a Cidade Maravilhosa sob o manto protetor e estimulante da noite. A noite! Isto mesmo, a noiteéa mãe da boemia e a lua, o sol da noite. Sem noite não háboemia. Não hámistérios. Paixões implícitas, amores explícitos. Porres homéricos. Recantos charmosos e a Lapa de sempre. Ricos bestas; pobretões espertos; mulheres elegantérrimas; homens charmosos; luxo, glamour e cafonice, intrigas e negociatas, milionários e vagabundos, milionários vagabundos (rico, dizia Jorginho Guinle não é quem tem dinheiro; équem não vai ao escritório), políticos, diplomatas, intelectuais, jornalistas, e os artistas, tudo, enfim, convergindo para um espaço comum onde era impossível distinguir o começo e o fimda vida e da arte.

Aliás, este mundo das mil e uma noites jáfervilhava nos famosos cassinos cariocas. Eis que no dia 30 de abril de 1946, Dutra, em nome da tradição moral e dos bons costumes, decretou o fechamento dos cassinos em todo território nacional. O magnata Joaquim Rollaproprietário dos cassinos da Urca, Icaraí, Quitandinha e Pampulha viu desabar o seu império, certamente, arrependido do apoio que dera a Dutra na eleição presidencial. Injustamente, a beata esposa do presidente, Dona Santinha paga, atéhoje, o preço do ódio que o marido devotava aos jogos de azar.

A noite carioca seria reinventada. E voltaria com toda força. Seu habitat: boate,caixa, francesismo usado pelo austríaco Max Stuckart para descrever o ambiente intimista da casa noturna. Seu ritmo: o samba-canção. Sua proposta existencial: a opção pela vida intensa versus a vida extensa. Ali tudo acontecia. Éo que contarei na segunda parte do artigo.

Leianas redes sociaisAcompanhe-nos!

LeiaJá é um parceiro do Portal iG - Copyright. 2024. Todos os direitos reservados.

Carregando