Tópicos | intolerância religiosa

Há oito meses, mãe Conceição de Lissá, de 53 anos, vê seu terreiro - o que sobrou dele - com cada vez menos fiéis. Antes de um incêndio destruir o barracão no Jardim Vale do Sol, em Duque de Caxias (cidade na Baixada Fluminense), cerca de 100 pessoas participavam dos rituais. Agora, em média, 20 aparecem. O medo, após o oitavo ataque em oito anos, é um dos motivos para a debandada. Também influi o fato de o barracão ainda estar destruído, o que limita os rituais à área externa do terreiro. Quando chove, as atividades são suspensas.

Episódios de intolerância como esse colocaram o Rio na primeira posição entre os Estados brasileiros no número de denúncias sobre discriminação religiosa em 2014. De acordo com levantamento da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, o Rio teve 39 queixas no último ano e ultrapassou São Paulo como Estado com mais relatos de intolerância ao Disque 100 (número disponibilizado pela Secretaria como canal de denúncias).

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Os registros paulistas caíram entre os dois anos, de 50 para 29, enquanto o índice do Rio se manteve o mesmo. O índice nacional também caiu: de 231 para 149.

Desde o incêndio, mãe Conceição faz terapia e agora tenta reconstruir o terreiro. Ela conta que ainda faltam R$ 150 mil para concluir a reforma. "Tivemos uma perda considerável, ficamos muito fechados para nós mesmos. A gente precisa renascer, a gente precisa retornar as nossas atividades normais, as nossas festividades." Segundo ela, várias vítimas de intolerância contra religiões afro não denunciam "porque as casas ficam desacreditadas". "Vai acontecer o que aconteceu com a minha casa."

Para Janayna Lui, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, a liderança do Rio no ranking se deve à força das instituições que defendem a liberdade religiosa. "De uns dois, três anos para cá, há um movimento no Rio para impulsionar a criação de políticas publicas contra a intolerância religiosa", diz, citando o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap) e a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR).

A segunda razão, diz a pesquisadora, é que o ensino religioso no Estado é controverso e pode ter gerado denúncias ao Disque 100. Lei estadual de 2000 estabelece que o modelo adotado no Rio é o confessional, ou seja, cada aluno deverá ter aulas ministradas conforme seu credo. O problema é que faltam professores de religiões de matrizes africanas, por exemplo. "As escolas afirmam que não há demanda. E aí a criança acaba sendo colocada em uma sala de aula da religião que não é a sua." De acordo com o Censo de 2010, 45,81% da população fluminense é católica e 29,37%, evangélica.

O preconceito é uma das memórias que a cigana Miriam Stanescom, 77, guarda dos tempos de escola. "Eu brigava muito no colégio. Se sumia uma borracha, a culpa era minha. Me formar foi o maior milagre da minha vida", relata. A discriminação acompanhou sua rotina acadêmica.

Vitórias da equipe de vôlei da qual fazia parte, por exemplo, eram fruto de "feitiçaria" para os colegas. "Quando passei no vestibular, muita colega minha que não passou falava: 'ah, mas a cigana é feiticeira'. Dá para fazer um livro com as histórias de preconceito".

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF 2) determinou que o Google Brasil retire 15 vídeos do YouTube que disseminam preconceito, intolerância e discriminação contra religiões de matriz africana. A empresa tem até 72 horas, a partir da notificação do oficial de Justiça, para retirar o conteúdo do ar. Caso a determinação seja descumprida, o Google terá que pagar multa diária de R$ 50 mil.

Na ação civil pública, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC/RJ) alegou que a Constituição brasileira garante a obrigação de o Estado respeitar as liberdades (religiosa, de expressão, etc) e de zelar para que sejam respeitadas pelos cidadãos. A decisão também se baseou no direito internacional e "encontra limites na dignidade da pessoa humana de todos os indivíduos do grupo afetado por manifestações de teor discriminatório e destinadas a incitar o ódio e até a violência".

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Para a PRDC/RJ, "a imediata exclusão dos vídeos da internet restaura a dignidade de tratamento" que, com a veiculação do material, foi negada às religiões de matrizes africanas. Para o TRF 2, "a veiculação de vídeos potencialmente ofensivos e fomentadores do ódio, da discriminação e da intolerância contra religiões de matrizes africanas não corresponde ao legítimo exercício do direito à liberdade de expressão".

Na liminar, o desembargador federal Reis Friede alega que "a liberdade de expressão não pode constituir (e, de fato, não constitui) autorização irrestrita para ofender, injuriar, denegrir, difamar e/ou caluniar outrem". "Vale dizer, liberdade de expressão não pode se traduzir em desrespeito às diferentes manifestações dessa mesma liberdade, sendo correto dizer que a liberdade de expressão encontra limites no próprio exercício de outros direitos fundamentais", acrescentou.

Para Friede, o direito de praticar livremente uma religião não inclui a liberdade para expor indivíduos de outras religiões a ofensas. "O reconhecimento da liberdade religiosa decerto que contribui para prevenir tensões sociais, na medida em que, por ela, o pluralismo se instala e se neutralizam rancores e desavenças decorrentes do veto oficial a crenças quaisquer."

Armazenamento

A Procuradoria Regional da República da 2ª Região (PRR2) entrou com um recurso para o Tribunal ordene que o Google armazene informações sobre data, hora, local e número do IP (Internet Protocol) dos usuários responsáveis pela divulgação dos vídeos. O pedido acompanha o que foi estabelecido pelo Marco Civil da Internet, que começou a valer nessa segunda-feira, 23. O objetivo é usar esse material em ações futuras para responsabilizar as pessoas que divulgaram o conteúdo com cunho de intolerância religiosa.

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