O desejo por proteção e segurança, aliado à ineficiência do poder público em combater irregularidades e diminuir a taxa de criminalidade, resulta na privatização de ruas públicas do Recife. Moradores da capital pernambucana têm instalado portões, guaritas com vigias diurnos e noturnos, correntes ou até cancelas, principalmente em vias sem saída, transformando-as em espécies de “condomínios residenciais” por conta própria.
Muito embora a iniciativa de bloquear o acesso público a uma rua para segmentar quem entra e quem sai do local agrade muitos moradores, a lei municipal 16.053, de 1995, proíbe a obstrução dos espaços públicos. De acordo com a legislação, é proibida a colocação, ainda que temporária, de veículos, semoventes, reboques, trailers e quaisquer outros bens em locais públicos.
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A reportagem do LeiaJá.com visitou seis ruas do Recife, onde moradores decidiram fechar a entrada da via. Um portão eletrônico pintado de amarelo chama atenção de quem passa nas redondezas da rua Brasilândia, no Cordeiro, Zona Oeste do Recife. Exibindo a placa “Proibida entrada de pessoas estranhas”, o equipamento foi instalado há 12 anos, devido constantes casos de estacionamento irregular na região.
Na época, uma comissão de moradores foi criada para representar as 40 residências do local e administrar os gastos com a limpeza e manutenção do portão. De acordo com os moradores do local, a via, que não possui saída, transformou-se em um condomínio fechado.
A ex-síndica Sueli de Oliveira conta que muitos moradores chegavam em casa e não tinham mais vagas para estacionar porque muitos frequentadores de uma casa de show nas proximidades utilizavam a rua como estacionamento. “Não fechamos por insegurança, mas por conta da desordem dos veículos. Hoje em dia, as pessoas procuram alugar casas aqui justamente pela sensação de segurança”, ironizou Sueli.
No “Residencial Brasilândia”, todos os moradores possuem o controle do portão e podem autorizar ou não a entrada de terceiros no local. O morador Olavo Pascoal afirmou que todo o processo foi autorizado pela gestão municipal. “A gente pensa que é um portão bobo, mas no dia a dia faz diferença”, concluiu Pascoal.
Na Rua Canaã, no bairro da Iputinga, também na Zona Oeste, a guarita e o portão de ferro foram a salvação dos moradores, diz Marcos Seabra, que vive na rua há 30 anos. A via foi fechada no início dos anos 1990 e desperta curiosidade até do próprio vigia. “Trabalho aqui mais por precaução porque se é público não posso impedir ninguém de entrar”, confessa.
De acordo com Seabra, muitos vizinhos já denunciaram o portão da rua, alegando que impede o acesso de terceiros. “Eu não vejo problema, visto que é uma rua sem saída e não há interesse de ninguém de entrar aqui, além dos moradores. Mas, mesmo assim, a gente não proíbe ninguém de entrar, é mais pra termos uma sensação de segurança”, relatou o morador.
A sensação de proteção que a maioria dos moradores busca não é só física, mas também psicológica. “A gente sabe que apesar do portão ser uma fachada, diminuiu a violência e os assaltos em nossa rua”, comentou Seabra. Para ele, as pessoas têm que procurar a própria segurança, já que o Estado não a proporciona.
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Para Cristiano Borba, arquiteto e urbanista da Fundação Joaquim Nabuco, o fechamento das ruas é uma reprodução do hábito do brasileiro de resolver individualmente o que o poder público não dá conta. “A gente se sente desprotegido em nosso espaço público e na primeira oportunidade de solucionar esse problema, pensamos na estratégia mais rápida disponível”, explicou.
Ainda no bairro da Iputinga, a cerca de dois quarteirões, a rua Padre Antônio Lagreca é fechada com uma corrente presa em dois ferros laterais e uma guarita de vigia privado. Há oito anos, após uma família ser sequestrada em um dos apartamentos da via e populares se queixarem de muitos roubos na região, moradores optaram por fazer a própria segurança.
Com olhos atentos quando avistou o carro da reportagem na rua, a moradora Sandra Campos, que vive no local há 24 anos, já se justificou. “Sei que a via é pública, mas estamos fazendo isso para garantir a nossa integridade”, disse. Ela justificou o fechamento da via trouxe tranquilidade. “Agora, as idosas podem sentar nas calçadas no fim da tarde e conversar. Isso nunca poderia acontecer, caso fosse uma rua aberta a todos”, detalhou.
Atualmente, três seguranças trabalham no local e se revezam nos turnos. São 32 moradores e cada um paga uma taxa para o “representante”. Apesar da organização, a Prefeitura do Recife já tentou retirar as correntes devido a muitas denúncias “privatização do espaço público”. Para o sociólogo e arquiteto João Gilberto de Farias, se a rua não tem benefício para terceiros, não há problemas em fechá-la com a devida autorização municipal.
“Eu acho que cada caso deve ser estudado para entender se há impacto ou não na transição de pessoas e no que isso afeta o direito de ir e vir das pessoas e no que traz de malefícios para a sociedade”, afirmou. Gilberto comenta que o fechamento de espaços públicos para privacidade e prevenção não é uma novidade no Brasil. “As favelas já se fechavam há muito tempo, bloqueando acesso de carros e outros pedestres”.
Ruas "privadas" se assemelham a condomínios isolados
Na Zona Norte do Recife, os casarões com muros de quase três metros de altura das ruas Israel Lima de Oliveira Castro e Dr. Anauro Dornelas Câmara, ambas em Apipucos, são “protegidos” com guaritas, correntes e cancelas. Na segunda, o segurança particular preferiu não chamar nenhum morador e disse que as pessoas podem entrar na rua. “Só peço que parem e se identifiquem quando vejo que é alguém estranho e não mora pela redondeza”, informou.
Para o sociólogo João Gilberto de Farias, a situação dessas ruas se assemelha às vividas por pessoas que habitam grandes condomínios. “É algo que está crescendo e requer da prefeitura um código atualizado e específico”, alertou. Já o arquiteto Cristiano Borba não especificou se o fechamento das vias vem aumentando a cada ano, mas disse que a atitude também é reflexo da ineficiência do controle urbano. Para ele, os moradores devem continuar se fechando, enquanto não houver um choque cultural na capacidade de viver coletivamente e coexistir no espaço coletivo.
Procurada para detalhar dados sobre a privatização das ruas, a Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano do Recife (Semoc) se limitou a informar que realiza ações de controle urbano em toda a cidade e, em relação às ruas públicas privatizadas, trabalha para liberar a passagem para todo cidadão. “Tornar privada uma área pública fere o direito constitucional de ir e vir do cidadão e, por esse motivo, a prática é combatida pela pasta”.
Cristiano ressalta que não são ações pontuais que vão mudar essa prática, que também não traz mais segurança à região. “Essa tendência de isolamento só se muda com a prática de gestão pública cultural. Não há educação dos cidadãos para viver melhor na cidade, compartilhando a vida. Desse jeito, parece óbvio que as pessoas devem continuar achando certo se utilizar das falhas do sistema”, complementou.