A Moral é um objeto da Ética, normatizando a relação dos cidadãos para que eles guiem suas ações em busca do alcance da virtude. A Ética representa a “verdade” da Moral, dando-lhe os fundamentos para nortear o estabelecimento de seus parâmetros. Ela é formada por preceitos que direcionam a conduta humana, influindo na organização da coletividade. Sua origem advém de convenções que estabilizam valores de determinados grupos sociais, em certo elastério temporal. Para Miguel Reale a Moral consubstancia o universo repleto por condutas naturais, onde o comportamento humano encontra razão nas raízes do subjetivismo. Doravante, o ato moral alude aos costumes que uma comunidade sopesa como indispensáveis ao bem comum e à paz social.[1]
Ontologicamente, há diferenças cruciais entre a Moral e o Direito. Aftalión sustenta que existe diferenciação entre os dois conceitos. Para ele o Direito se refere aos aspectos externos dos atos, enquanto a Moral se refere aos aspectos internos. No primeiro há possibilidade do exercício da coercibilidade estatal, no segundo não, sendo a coercibilidade interna.[2]
Kant fazia uma distinção entre a lei moral e a lei positiva. Para o filósofo de Königsberg esta última é analisada de acordo com as ações praticadas, ou seja, em consonância com seu resultado prático, enquanto aquela tem seu móvel de análise de acordo com as intenções da conduta, valendo-se de seu aspecto positivo.[3]
Depreende-se, então, que há um consenso no sentido de que a Moral difere-se do Direito, seja pela sua essência, seja pelo seu conteúdo, não podendo haver uma justaposição entre eles, sob pena de acarretar antinomias e aprofundar a perda de eficácia desses dois subsistemas sociais.
Uma das garantias mais prementes para a consolidação do fenômeno jurídico é o estabelecimento de um Estado de Direito, baseado na obrigação de seguir as diretrizes jurídicas e proteger os direitos humanos dos cidadãos.[4] Ele é uma situação jurídica onde as atividades do cidadão e do Estado estão subordinadas à lei. Ou seja, nesse sistema institucional há uma observância à hierarquia normativa, à supremacia da Constituição e aos direitos humanos.[5] Dessa forma, podemos entender que este modelo institucional se opõe às monarquias absolutas e às ditaduras, visto que essas estruturas estatais violam frequentemente os direitos humanos e cometem constantemente arbitrariedades.[6]
Assim, partindo-se do pressuposto que Estado de Direito é aquele estruturado em parâmetros normativos, emerge questão interessante referente à ambiguidade da própria expressão “Estado de Direito”. Como referido acima, não se deve atribuir a esta expressão uma necessária correlação com o direito escrito; no entanto, a sua compreensão ficará condicionada, inexoravelmente, àquilo que se entende por Direito. O Estado, entendido como comunidade politicamente organizada, pode assumir diferentes facetas proporcionalmente ao tipo de direito a que está atrelado: Estado de Direito feudal, burguês, nacional, teocrático etc.[7] O essencial para sua caracterização, é que a conduta dos entes estatais e dos cidadãos seja prefixada em bases legais, garantindo a concretização da segurança jurídica e impedindo abuso de poder.
A problemática enfocada é que a utilização exacerbada de padrões morais, voluntaristas, casuísticos e tópicos serve para arrefecer a consolidação do Estado de Direito brasileiro na medida em que atinge os pilares das garantias constitucionais clássicas. Esse processo de moralismo assistemático da seara jurídica precisa ser analisado com parcimônia porque pode atingir elementos basilares do garantismo constitucional. Não se questiona a introdução de padrões morais no sistema constitucional, desde que ele se compatibilize aos mandamentos reitores do sistema jurídico vigente.
Etimologicamente a palavra moralismo pode ser empregada como um desvio da moral, em um claro sentido pejorativo. Miguel Reale critica os juristas que não compreendem a diferença entre ilicitude moral da ilicitude jurídica, tencionando vincular o direito à Moral de maneira absoluta.[8]
A exacerbação do moralismo provoca um arrefecimento da densidade normativa e torna o ordenamento jurídico imprevisível, podendo propiciar que vetores morais de determinados grupos sociais sobreponham-se aos ditames agasalhados pela Carta Magna, inclusive maculando a estabilidade das relações jurídicas. Dessa forma, preceitos morais, mesmo que introduzidos normativamente no sistema jurídico, por intermédio de mandamentos infraconstitucionais, chocando-se frontalmente com garantias constitucionais, devem ser considerados inconstitucionais e expulsos da vida normativa.
Não se pode em nome de moralismos estovar a ordem jurídica estabelecida, fazendo com que supostos preceitos que são considerados como panacéias maculem direitos que secularmente foram concretizados no imaginário coletivo da sociedade. Se houver a retirada de prerrogativas constitucionais de um cidadão que notoriamente é considerado corrupto, nenhum homem de bem da sociedade estará resguardado de tiranias perpetradas em nome da virtude e dos bons costumes.
A exacerbação de moralismos no ordenamento jurídico é imunizar determinadas decisões judiciais, impedindo sua tipificação de inconstitucional ou que se possa discutir sua legitimidade. Busca-se através deste desiderato evitar qualquer tipo de discussão do conteúdo dessas leis agasalhadoras de parâmetros morais. Essas decisões podem até mesmo se chocar contra o ordenamento estabelecido, sem se preocupar com controle jurídico porque estariam amparados em “valores superiores”, que não cabem discussão, como se fossem dogmas auctoritas. Nesse diapasão, tenta-se colocar o Judiciário como guardião da moral, esquecendo-se que quando inexiste o sistema de freios e contrapesos, incentiva-se o arbítrio, não importando qua l seja o poder que exercerá a função de guardião.