Meus artigos anteriores agora desembocam nesse tema, terrivelmente filosófico, terrível, que nos ameaça a todos e a todos os nossos entes queridos.
Este novíssimo conceito jurídico, o testamento vital, designa a possibilidade de a pessoa, enquanto ainda saudável, nomear um procurador para decidir sobre seu tratamento quando estiver a morrer no futuro e incapaz de manifestar sua vontade, determinando, inclusive, a eutanásia, o eventual desligamento de máquinas de tratamento médico, a abstenção de tratamento ou os procedimentos (chamados “ordens”) de não-reanimar. Em uma palavra: um terceiro, por mais querido e respeitado que hoje seja, decidir sobre a minha, a sua, a nossa morte.
Os juristas aprendemos que o testamento só constitui norma jurídica depois da morte do testador (chamado de cujus), o que significa que o próprio conceito de “testamento vital” seria uma contradictio in terminis, uma contradição em seus próprios termos, tal como “água seca” ou “triângulo quadrado”. Por outro também importante lado, a faculdade de direito nos ensina que o testamento, assim como qualquer outra disposição de vontade, precisa ser de acordo com o sistema legal, ou seja, dentre outros requisitos, precisa se referir a objeto lícito. E dispor sobre a vida não é considerado até hoje lícito, mesmo que seja sobre a própria vida. Aprendemos que, nas democracias modernas, o ser humano pode apenas ser sujeito, jamais objeto de direito... Daí porque a tentativa de suicídio é criminalizada somente em alguns países, mas o auxílio ou a instigação ao suicídio é, em todos, um ato criminoso.
Novo fator agravante no testamento vital, e sobre isso minhas reflexões agora, em comparação com o tradicional tipo penal de auxílio ao suicídio, é a nomeação de um procurador para decidir pela pessoa, pois o testador não apenas diz agora sua vontade sobre seu futuro tratamento, mas entrega também como que uma carta em branco para que outra pessoa decida por ele, se não puder manifestar sua vontade, diante de eventos futuros que não podem no presente ser previstos em toda sua dimensão. Eventos que incluem decidir sobre a vida e a morte. Ou seja, o procurador não apenas auxilia o suicídio, ele manifesta-se pela vontade do outro, decide sobre a vida alheia, é quase como se o matasse mediante consentimento.
Não nos iludamos, isso já existe e cabe ao filósofo expor o fenômeno em público. Tradicionalmente, esse poder de decidir sobre a vida e a morte é exercido pela classe médica, que tende a manter a vida indefinidamente, diante da interpretação habitual do “juramento de Hipócrates” que faz. O debate é filosófico e jurídico e hoje se tem intensificado em virtude de uma série de fatores, dos quais mencionarei os que me parecem mais importantes.
O desenvolvimento de novas tecnologias tem possibilitado a manutenção da vida vegetativa durante períodos antes inimagináveis. Hoje é difícil morrer-se “normalmente”. E as diferentes possibilidades de manutenção da esperança sobre a recuperação de entes queridos, por parte de famílias mais abonadas, mantém uma gigantesca máquina de produção de medicamentos e maquinários eletrônicos no topo de uma indústria que é das mais rentáveis num mundo capitalista dos mais rentáveis.
Pouca filosofia – e daí muita infelicidade – subjaz a esse martírio inexorável para nós, miseráveis seres humanos, os únicos seres que sabemos que morrerão, mas não quando nem como, pobres infelizes a vagar nessa Terra, mãe que estão a destruir. Ouçamos Nietzsche, sobre nossa pobre condição, ouçam-nos os ricos de soberba, mas também os infelizes que nessas palavras encontram redenção:
Em algum recanto remoto do universo cintilante, derramado por incontáveis sistemas solares, houve uma vez um astro em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: foi, porém, apenas um minuto. Depois de uns poucos fôlegos da natureza, o astro congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morre.
E continua:
É notável que o intelecto chegue a isto, logo ele, que foi concedido aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres apenas como meio auxiliar para que possam existir um minuto…
O aumento da preocupação com a saúde e as melhores condições sanitárias para parcelas privilegiadas e cada vez mais numerosas da população tem ampliado a longevidade humana. Apesar do crescimento qualitativo da tecnologia, nada obstante, a limitação quantitativa dos meios para tratamentos paliativos e a manutenção da vida vegetativa, por outro lado, tem exigido escolhas... jovens acidentados...
Em algumas teses dos utilitaristas ingleses, que nesse tema são precursores dos pragmatistas, encontra-se a posição ética contrária ao paternalismo. Com efeito, o célebre filósofo John Stuart Mill, em seu livro On Liberty (Sobre a Liberdade) escreve sobre a liberdade e as relações entre o direito da comunidade e o direito do indivíduo para defender um só princípio, o único móvel que poderia legitimar o direito (obrigatório, coercitivo) a compelir alguém a fazer algo contra sua vontade: a autoproteção. O termo “auto”, a própria proteção, contudo, não se refere ao indivíduo, porém à proteção da comunidade, pois
Que o único objetivo pelo qual o poder pode ser justificadamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar mal aos outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é uma garantia suficiente. Ele não pode ser justificadamente coagido a fazer ou omitir porque será melhor para ele agir assim, porque será mais feliz, porque, na opinião de outros, agir assim seria sábio ou mesmo correto. Essas são boas razões para dissuadi-lo, argumentar com ele ou persuadi-lo, ou suplicar-lhe, mas não para coagi-lo ou trazer-lhe qualquer mal em caso de agir de outra maneira.
Nessa direção podem-se distinguir duas ordens de problemas, usando o vício do cigarro simplesmente como um exemplo que pode ser estendido indutivamente a outros mil casos.
Em primeiro lugar, as regras jurídicas para proteger o próprio fumante de si mesmo, seja proibindo integralmente o fumo, seja restringindo seu uso, e até que ponto. A questão jurídica seria saber se é constitucional uma lei que reduza a liberdade de fumar. Eram outros tempos, quando a lei ordinária criminalizou a cocaína, depois de ser permitido por décadas seu uso médico e sua venda em farmácias, farmácias da tradicional Rua Nova no Recife, ou pode-se fazer o mesmo hoje com o tabaco? Sabemos que Freud, além de usá-la, administrava-a terapeuticamente para seus pacientes... Já viu doideira maior na perspectiva de hoje? Recomendar cocaína para psicóticos? E este é o nosso grande – e digo, com todo respeito pelo desbravador destemido – pai da psicanálise! Discípulo de Schopenhauer e Nietzsche!
Da perspectiva das restrições, em segundo lugar, essas regras jurídicas de proteção ao fumante e drogados em geral implicam, sobretudo, o dever de obrigar o produtor e o vendedor a informar dos malefícios, mas vão mais longe e também restringem a propaganda ou impõem altas taxações. Os Rolling Stones já nos advertiram, em 1966, para a semelhança entre as drogas do establishment, o “pequeno ajudante da mamãe” (no hino Mother´s little helper), a qual reclamava do filho maconheiro e tomava os hoje equivalentes a prozac, rivotril... Afinal, o que são as drogas e como combatê-las?
A resposta é a mesma de Aristóteles: todas são ruins, mas, quem é quem para viver sem elas? Como pode o Estado eliminar algo tão visceralmente ligado ao ser humano? Compreender, tolerar, amar, essas são as únicas soluções, a repressão é a mãe dos traficantes.
Voltando ao nosso exemplo, é nas regras para proteger o não-fumante no convívio com o fumante que o problema jurídico fica mais claro, pois aí existe um espaço comum em que alguns querem poder fazer mal à própria saúde e outros querem distância de fumantes.
As possibilidades de conflitos são infinitas. Por exemplo, para sair do vício do cigarro, se o odor de fumo é em geral mais invasivo do que o de comidas e bebidas, não é difícil imaginar uma situação em que uma iguaria (picanha, buchada, sarapatel, cachorro assado, cérebro de macaco vivo – a criatividade da culinária humana é riquíssima...) pareça a alguns deliciosa e a outros repugnante, por seu cheiro ou aparência, querendo estes proibir aqueles de dividir o espaço comum de um restaurante. O mesmo vale para a música, os perfumes, as roupas, em suma, toda conduta em interferência intersubjetiva, para lembrar a expressão do meu Mestre argentino Carlos Cossio.
Essa forma de colocar a questão guarda estreita relação com o conflito clássico do paternalismo já mencionado; para ficar no exemplo, só considerando os danos que o fumante causa a si mesmo, sem qualquer contato com os não-fumantes, os recursos que ele vai demandar por doenças decorrentes do tabagismo onerarão a saúde pública. Os recursos são limitados e, ao contrário dos cancerosos e outros doentes genéticos, o fumante e o alcoólatra são tidos como culpados por seus problemas. Nada mais inverdadeiro! Doença é doença.
Não é de forma tão direta quanto o fumante passivo, que adquire doenças como se fumasse, mas trata-se do conflito entre o que se diz o bem de todos e o que se diz o bem do indivíduo, sua liberdade de escolha.
Novamente o inglês John Stuart Mill, num contexto difícil de intolerância, em sua época, foi um dos primeiros a combater o paternalismo quanto a esse tema:
Para justificar isso [coagir alguém], a conduta que se quer impedir deve ter como objetivo fazer mal a outrem. A única parte da conduta de qualquer pessoa pela qual ela é responsável perante a sociedade é aquela que concerne aos outros. Na parte que concerne meramente a si mesma, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seus próprios corpo e mente, o indivíduo é soberano.
Uma coisa é a sociedade pressionar as pessoas a um tipo de comportamento padronizado, do que tratamos na coluna da semana passada. Outra, e este é o tema agora, é o Estado, por meio de seu direito, obrigar as pessoas a se conduzirem de determinada maneira. O debate filosófico é o mesmo: se cabe constranger pessoas para seu próprio bem, se a ordem jurídica positiva deve proteger alguém de perigos quando esse alguém, sendo capaz e adulto, rejeita tal proteção.
Isso porque o direito é coercitivo, ou seja, obrigatório, as condutas juridicamente relevantes são coibidas por sanções violentadoras que podem prejudicar grandemente a vida das pessoas. Direito e moral há muito se afastaram. Na sociedade complexa contemporânea ocidental o direito se separou das outras ordens normativas, como também da religião, por exemplo. Se um cidadão não aceita determinadas regras religiosas, como a comunhão e a indissolubilidade do matrimônio pregadas pelos católicos, basta que se afaste daquele ambiente normativo e não precisará segui-las. Já ao descumprir regras jurídicas, a pessoa se arrisca a consequências desagradáveis, a possibilidade de coação pelo Estado e sua ordem jurídica. Aí está está a essência desse fenômeno intrigante e apaixonante, o direito.
O problema é até onde pode ir o direito ao proteger uma pessoa contra si mesma, proibindo atos que ela quer praticar, o que vai desde o consumo de drogas até a recusa a ter uma alimentação balanceada.
O paternalismo é também tema de ordem constitucional, pois diz respeito à competência do Estado para intervir no domínio da autonomia privada. Em termos sistemáticos, a questão traz à tona, inicialmente, o problema da razoabilidade e da proporcionalidade das restrições a uma conduta lícita, garantida constitucionalmente como toda conduta não-ilícita, já que ninguém está obrigado a praticar ou deixar de praticar qualquer ato a não ser em virtude da lei, pelo menos nas democracias modernas (princípio da licitude).
Mais ainda, essa lei precisa ser constitucional, não pode contrariar a Carta Magna. Este é o princípio básico da legalidade, no Brasil positivado no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal; em outras palavras, eventuais restrições legais devem ser sempre proteções e nunca impedimentos. Um direito fundamental não pode ser restringido por lei, por conta da supremacia constitucional, mas apenas adequado ao exercício de outro direito fundamental. Só um direito fundamental pode “restringir” outro direito fundamental.
Tal argumento civilizatório parte da convicção de que a liberdade, enquanto direito fundamental, é corolário da isonomia (“formulação positiva do direito à igualdade”, igualdade perante o ordenamento jurídico) e da “capacidade de o ser humano reger o próprio destino” (autodeterminação). Ora, esses são exatamente os três princípios da razão que fundamentam a dignidade da pessoa humana em Immanuel Kant, o grande arauto do ilumismo da cultura ocidental, o imortal Kant que nos impregna a todos. Segundo Hannah Arendt, também uma kantiana, fumante inveterada que se recusava a “ser escrava da própria saúde”, o ser humano adulto não pode ser educado por outros adultos, como se alguns não tivessem condições de escolher o que é desejável para si. Se as pessoas divergem sobre o bem, que cada um procure o seu e tolere as diferenças. Esta a filosofia retórica da tolerância, antipaternalista.
O outro lado da moeda é o ônus social que pode causar uma pessoa que gosta de “viver perigosamente”, livre e sem restrições. Como os jovens que pulam de abismos, amarrados a precários cordões elásticos, dirigem veículos sob efeito de drogas ou têm relações sexuais sem proteção, a velha audácia da juventude, que se julga imune às vicissitudes da vida, ao malfadado azar de que nos falou Nietzsche. Sim, pois a recusa de usar cinto de segurança pode ser pior do que matar em caso de acidente, uma vez que o morto só custa à sociedade o enterro (pois a dor dos entes queridos pertence à esfera privada), mas causar lesões que vão onerar o sistema social de saúde, público e privado, por anos e anos a fio. Para uma filosofia antipaternalista, contudo, isso pode levar a leis que apliquem multas a quem não caminhar seis quilômetros por dia e se recusar a comer aveia, alface e iogurte desnatado. Até onde pode ir o direito? Esta é a questão.
A filosofia é, por definição, uma atividade inquietadora da razão; por isso o grande jusfilósofo espanhol Ortega y Gasset, amigo de meu Mestre Viehweg, dizia que ela é pantônoma, isto é, questiona como devem ser todos (panta) os setores da vida humana, e autônoma, ou seja, tem que se resolver, sem apoio em nada além de em si mesma. Os filósofos e jusfilósofos hoje discutem acirradamente o problema do paternalismo na ética, ou seja, o debate sobre se cabe constranger pessoas para seu próprio bem, se a ordem jurídica positiva deve proteger alguém de perigos quando esse alguém, sendo capaz e adulto, rejeita tal proteção. Todos nós, pobres mortais, vamos enfrentar nossa própria morte e, antes disso, a de muitos de nossos entes queridos.
Jovens, acordem para a filosofia! Ela, o mais prático dos estudos humanos, que essa sociedade contemporânea maluca condenou a chamar de “coisa de doido”, é nosso maior apoio.
O paternalismo é, por definição, contrário à autonomia da vontade ou à autodeterminação sem restrições e vários exemplos podem ser apontados: proibição de fumar, obrigatoriedade de usar cintos de segurança, cadeiras para crianças nos automóveis e capacetes para motociclistas, além de alimentação regrada e demais prescrições para o bem da saúde, dentre outras medidas de proteção; o médico que não revela ao paciente os resultados de seus exames, para protegê-lo da tristeza que advirá da informação; regras contra a eutanásia a “boa morte” desejada pelo paciente e/ou por seus parentes, em casos de muito má qualidade de final de vida; normas para inibir o suicídio; regras para obrigar um paciente adulto e psicologicamente saudável a tratamento médico, diante do fato de que se houver recusa haverá a morte, como no caso da transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, e outros exemplos, muitos e atuais.
A expressão “paternalismo” tem óbvia origem no poder-dever que têm os pais de proteger seus filhos menores de idade mesmo contra sua vontade, estabelecendo uma relação assimétrica (desigual) de superioridade e inferioridade. No caso do direito, a metáfora do paternalismo é mais séria, pois se refere, sobretudo, a relações coercitivas entre o Estado e o cidadão, indo além do âmbito meramente moral. Quer dizer, pode o Estado nos obrigar a fazer o que considera nosso bem, contra o que nós mesmos, adultos, assim consideramos? Usando a coercitividade do direito?
Possibilitar um máximo de informação sobre a situação, do ponto de vista do conhecimento, e apoiar as consequências por qualquer decisão tomada, do ponto de vista ético, seria um caminho antipaternalista sugerido aqui. No caso médico mencionado acima, em outras palavras, um direito que vise estrategicamente positivar uma ética da tolerância não deve apoiar a falta de informação do médico para o paciente, mas sim criar regras e instituições para apoiar psicologicamente o doente e fazê-lo suportar a informação. Em caso de recusa à transfusão de sangue, por exemplo, o paciente deve ser informado de tratamentos alternativos, mesmo que tudo indique que venha a falecer se persistir na recusa (mas o paciente precisa ser adulto e apto a decidir, repita-se). Para a filosofia da tolerância e da autodeterminação, o aparato coercitivo do Estado precisa garantir seu direito de morrer.
Com relação a outros hábitos, como alimentação pouco saudável e ingestão de outras substâncias, em tese prejudiciais ou mesmo fatais para a saúde física e mental, a estratégia de uma filosofia da tolerância é defender que o direito deve inibir o paternalismo, ainda que o sistema público de saúde precise investir mais recursos para cuidar dessas pessoas. Uma sociedade que alberga quaisquer doentes, ou pessoas desigualmente bem sucedidas, em todas as acepções, tem que zelar por suas incapacidades e impedimentos: mesmo se as escolhas do paciente cooperaram para sua condição, se ele ingeriu drogas maléficas ou comeu gordura saturada (uma droga maléfica), se ele amou as pessoas “erradas” e é infeliz, se ele não se exercitou adequadamente, a sociedade é o meio ambiente responsável. Ele pagou seus impostos, explícitos ou embutidos, como as prejudiciais salsichas que comeu, ele tem seus direitos fundamentais.
Argumento em prol do paternalismo é o prejuízo de caráter público que uma decisão individual pode provocar – ou certamente provocará. Para ficar no campo da saúde, que não é o único, a perspectiva de o sistema previdenciário estatal e mesmo as companhias privadas de saúde se verem prejudicados por fumantes, praticantes de esportes radicais infelizes em uma manobra que os aleija ou apreciadores de guloseimas pouco saudáveis. Mas pense-se também, para exagerar os confrontos éticos, nos consumidores de drogas extremamente nocivas, de um lado, e as pessoas que apenas querem – ou não conseguem deixar de – ser absolutamente sedentárias, de outro. Em ambos os casos, há um risco, que é estatisticamente certeza para um grande número de pessoas, de que essas decisões individuais sobre o próprio bem prejudicarão a coletividade, isto é, os recursos do sistema público de saúde. O direito – escolha imposta coercitivamente e que (justificadamente) proíbe atos mais graves como homicídios e torturas – deve obrigar alguém a fazer “o certo” nesses exemplos? Eis a grande e atual questão do paternalismo, que cabe a cada um de nós responder.
Diz-se sempre que a única certeza da vida é a morte, ainda que não saibamos quando nem como vai tocar a nossa vez. Isso significa que o máximo que os seres humanos podem desejar é que a morte demore a chegar, que alcancem uma vida longa (critério de quantidade), e que tenham uma “boa morte”, com um mínimo de sofrimento (critério de qualidade). A maioria das pessoas evita pensar nisso, sobretudo os jovens, mas refletir desde já sobre o assunto pode ajudar muito a diminuir o sofrimento diante do inevitável. E a filosofia é a grande companheira para tanto.
A cultura ocidental e o domínio da ética cristã nos acostumaram a ver a morte como um mal – o que é um paradoxo para quem, como o cristão, crê no paraíso e numa vida melhor depois de um juízo final sempre justo – e com a ideia de que a vida deve ser mantida a todo custo. Outras culturas, como a muçulmana e a budista, por exemplo, apresentam visões diferentes sobre a inevitabilidade da morte.
Hoje, porém, mesmo em nossa cultura ocidental, esses postulados éticos começam a ser questionados: discute-se se a vida vale a todo custo e, para muitas pessoas, se a lei deve proteger o direito de morrer, quando a qualidade física da vida é tão ruim que a morte aparece como um alívio desejado. Sem contar que a sociedade complexa assiste hoje a fenômenos antes inimagináveis, tal como o desejo de suicídio por parte de pessoas fisicamente saudáveis, mas que se consideram psiquicamente infelizes e decidem que não vale a pena viver, debate presente hoje, por exemplo, na Holanda.
Aí surgem novos conceitos jurídicos no âmbito do direito médico, dos quais são exemplos os “cuidados paliativos”, que consistem na sedação por meio de drogas poderosas que não têm por objetivo a cura, mas apenas evitar a dor; ou os de “abstenção de tratamento” e “ordens de não-reanimar”, quando os médicos simplesmente deixam de prestar assistência a doentes considerados terminais; mais adiante ainda vão os conceitos de “morte medicamente assistida” e “assistência ao suicídio”, quando o papel dos médicos não é apenas passivo, mas sim engajado em apressar a morte diante da péssima qualidade de vida.
Mais “pós-moderno” ainda parece esse debate holandês sobre o direito de uma pessoa saudável demandar a própria morte por conta de um desânimo qualquer diante da vida. Meu cônjuge me deixou, minha filha morreu ou, simplesmente, “essa vida não vale a pena...”
Tal encontro entre direito à vida e direito à morte, temperado pelo direito à saúde e à qualidade de vida, configura claros conflitos de valores, que dificilmente se enquadram em regras gerais como aquelas criadas pelas leis. Tudo isso tem grandes reflexos na filosofia e na filosofia do direito: a conveniência ou não de cuidados médicos, quando não há qualquer esperança de cura ou mesmo melhora, ou seja, o direito de morrer. Existe isso? A importância da filosofia do direito aparece mais claramente quando a lei se mostra inútil diante do conflito.
Fala-se em “encarniçamento terapêutico” quando o sistema médico se recusa a desistir e persiste no tratamento, ainda que na presença do sofrimento, a chamada “distanásia”. O pior é quando esse debate, tão sensível para os entes queridos, envolve motivações de interesses financeiros por parte do sistema médico privado, sem qualquer respaldo ético; ou mesmo, no que diz respeito ao sistema de saúde pública, quando é preciso escolher entre gastar recursos limitados com uma pessoa idosa, sem esperança de cura, e jovens acidentados que precisam imediatamente daquela máquina ou daquela vaga na unidade de terapia intensiva. E que dirá daqueles criminosos considerados irremediáveis, cujo coma chegou antes à maquinaria médica pública, a qual agora precisa da vaga para um jovem “do bem”. E aos pobres médicos, coitados, é deixado esse grave problema filosófico de decidir quem vive e quem morre, dilema que nenhum ser humano deveria carregar.
Sem contar que todos esses problemas se agravam nos casos de impossibilidade de manifestação da vontade por parte do paciente, como em doenças mentais graves ou pacientes comatosos profundos, sobretudo quando a pessoa não tem parentes, amigos ou entes queridos.
No fundo, a solução passa pela prudência da avaliação diante de cada caso. O problema filosófico central é esse, no direito à saúde, pois a “ortotanásia” nada mais é do que o meio termo ponderado entre a eutanásia, que acaba com a vida, e a distanásia, que a prolonga a todo custo.
Diz-se sempre que a única certeza da vida é a morte, ainda que não saibamos quando nem como vai tocar a nossa vez. Isso significa que o máximo que os seres humanos podem desejar é que a morte demore a chegar, que alcancem uma vida longa (critério de quantidade), e que tenham uma “boa morte”, com um mínimo de sofrimento (critério de qualidade). A maioria das pessoas evita pensar nisso, sobretudo os jovens, mas refletir desde já sobre o assunto pode ajudar muito a diminuir o sofrimento diante do inevitável. E a filosofia é a grande companheira para tanto.
A cultura ocidental e o domínio da ética cristã nos acostumaram a ver a morte como um mal – o que é um paradoxo para quem, como o cristão, crê no paraíso e numa vida melhor depois de um juízo final sempre justo – e com a ideia de que a vida deve ser mantida a todo custo. Outras culturas, como a muçulmana e a budista, por exemplo, apresentam visões diferentes sobre a inevitabilidade da morte.
Hoje, porém, mesmo em nossa cultura ocidental, esses postulados éticos começam a ser questionados: discute-se se a vida vale a todo custo e, para muitas pessoas, se a lei deve proteger o direito de morrer, quando a qualidade física da vida é tão ruim que a morte aparece como um alívio desejado. Sem contar que a sociedade complexa assiste hoje a fenômenos antes inimagináveis, tal como o desejo de suicídio por parte de pessoas fisicamente saudáveis, mas que se consideram psiquicamente infelizes e decidem que não vale a pena viver, debate presente hoje, por exemplo, na Holanda.
Aí surgem novos conceitos jurídicos no âmbito do direito médico, dos quais são exemplos os “cuidados paliativos”, que consistem na sedação por meio de drogas poderosas que não têm por objetivo a cura, mas apenas evitar a dor; ou os de “abstenção de tratamento” e “ordens de não-reanimar”, quando os médicos simplesmente deixam de prestar assistência a doentes considerados terminais; mais adiante ainda vão os conceitos de “morte medicamente assistida” e “assistência ao suicídio”, quando o papel dos médicos não é apenas passivo, mas sim engajado em apressar a morte diante da péssima qualidade de vida.
Mais “pós-moderno” ainda parece esse debate holandês sobre o direito de uma pessoa saudável demandar a própria morte por conta de um desânimo qualquer diante da vida. Meu cônjuge me deixou, minha filha morreu ou, simplesmente, “essa vida não vale a pena...”
Tal encontro entre direito à vida e direito à morte, temperado pelo direito à saúde e à qualidade de vida, configura claros conflitos de valores, que dificilmente se enquadram em regras gerais como aquelas criadas pelas leis. Tudo isso tem grandes reflexos na filosofia e na filosofia do direito: a conveniência ou não de cuidados médicos, quando não há qualquer esperança de cura ou mesmo melhora, ou seja, o direito de morrer. Existe isso? A importância da filosofia do direito aparece mais claramente quando a lei se mostra inútil diante do conflito.
Fala-se em “encarniçamento terapêutico” quando o sistema médico se recusa a desistir e persiste no tratamento, ainda que na presença do sofrimento, a chamada “distanásia”. O pior é quando esse debate, tão sensível para os entes queridos, envolve motivações de interesses financeiros por parte do sistema médico privado, sem qualquer respaldo ético; ou mesmo, no que diz respeito ao sistema de saúde pública, quando é preciso escolher entre gastar recursos limitados com uma pessoa idosa, sem esperança de cura, e jovens acidentados que precisam imediatamente daquela máquina ou daquela vaga na unidade de terapia intensiva. E que dirá daqueles criminosos considerados irremediáveis, cujo coma chegou antes à maquinaria médica pública, a qual agora precisa da vaga para um jovem “do bem”. E aos pobres médicos, coitados, é deixado esse grave problema filosófico de decidir quem vive e quem morre, dilema que nenhum ser humano deveria carregar.
Sem contar que todos esses problemas se agravam nos casos de impossibilidade de manifestação da vontade por parte do paciente, como em doenças mentais graves ou pacientes comatosos profundos, sobretudo quando a pessoa não tem parentes, amigos ou entes queridos.
No fundo, a solução passa pela prudência da avaliação diante de cada caso. O problema filosófico central é esse, no direito à saúde, pois a “ortotanásia” nada mais é do que o meio termo ponderado entre a eutanásia, que acaba com a vida, e a distanásia, que a prolonga a todo custo.
Esta coluna virtual aqui no LeiaJá vai ser uma oportunidade para cuidar de temas filosóficos pelos quais a sociedade brasileira vem demonstrando grande interesse. E o primeiro tema é justamente esse: para que serve a filosofia e sua subdivisão que mais nos interessa, a filosofia do direito.
A tarefa da filosofia do direito pode ser resumida em dois grandes campos de investigação.
Por um lado, procura saber o que é o direito, como ele pode ser descoberto, conhecido, consultado. Por exemplo: o direito vem objetivamente da lei, isto é, a lei tem um sentido específico e claro para todos que lêem seu texto? São mesmo os legisladores – senadores, deputados e vereadores – que criam o direito? Ou os textos legais não têm um sentido próprio e o direito é revelado a nós por aquilo que os juízes decidem que a lei quer dizer naquele caso, diante de um conflito concreto? E quando a sociedade, aquelas pessoas a quem as leis se dirigem (por vezes até os órgãos do próprio Estado não seguem a lei), o direito é aquilo que as leis ou as decisões judiciais dizem ou consiste naquilo que seus destinatários – as pessoas, o povo – efetivamente fazem? Este é o problema do conhecimento do direito, o problema de saber o que é uma norma jurídica.
Por outro lado, a filosofia do direito ocupa-se da questão do valor, da ética no direito. Por exemplo: o direito justo é aquilo que os poderes estabelecidos (executivo, legislativo, judiciário) decidem que é justo ou ele está acima da vontade dos governos? Em outras palavras: existe uma regra ética que vale acima das leis, acima da própria Constituição? Digamos, uma regra que afirme que o aborto é crime independentemente do que digam a lei e os juízes, mesmo que a Constituição o permita? Ou que proteja os direitos humanos de todos, mesmo quando os governos nacionais e o seu direito os neguem a determinados grupos, como fizeram os nazistas em relação aos judeus ou os brancos em relação aos negros sul-africanos? Este é o problema do direito subjetivo. As repercussões práticas dessas duas ordens de problemas são imensas e muito importantes, dizem respeito à própria essência do que se entende por “direito”.
Esta coluna vai tentar responder, pouco a pouco, a cada semana, a essas duas ordens de questões, mostrando que a filosofia do direito é uma ferramenta útil, para o caminho profissional e pessoal: o advogado que precisa decidir se aceita ou não a defesa de determinado indivíduo, a delegada de polícia que tem que resolver quais os dados que devem constar do inquérito policial, o promotor de justiça que precisa acusar ou pedir a absolvição de uma pessoa ou a juíza que hesita em condenar aquele jovem a 25 anos em regime fechado numa penitenciária cruel, todos esse profissionais do direito verão sua difícil tarefa ficar menos pesada com o auxílio da filosofia.
Em outras palavras, não apenas os Ministros do Supremo Tribunal Federal que decidem sobre a constitucionalidade do aborto de feto meroencefálico ou da pesquisa em células tronco; as pessoas não precisam da filosofia do direito apenas em momentos de crise e de grandes decisões, mas sim no dia a dia, ajudando a tornar a vida melhor.