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No Nordeste, o 'dono' da festa junina, São João, costuma receber homenagens durante os 30 dias do calendário. Porém, uma delas, o Acorda Povo, transcende a devoção dos fiéis e se transforma em uma grande celebração de fé e alegria. A 'procissão dançante' percorre algumas comunidades da Região Metropolitana do Recife e, em 2018, uma em especial, o Acorda Povo da Vila das Lavadeiras, o mais antigo da capital pernambucana, é um dos grandes homenageados deste São João. 

Tudo começou em 1941, quando Dona Dida e o marido, Seu Antônio Marques de Almeida, chegaram à comunidade, localizada no bairro de Areias, e acharam tudo muito quieto. O casal iniciou em sua casa o movimento que rapidamente, ganhou a simpatia dos vizinhos. Até hoje, com 77 anos de história, a manifestação fortemente ligada às tradições da religião Católica e, ao mesmo tempo, do Candomblé, não deixou de ir às ruas nem uma vez. 

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Naquela época, a pequena Aurelina Marques de Almeida, filha de Dona Dida, acompanhava a mãe em tudo que ela fazia, sobretudo no dia da festa: "Eu acompanhava o Acorda Povo e fui aprendendo com ela", relembra Aurelina, a Dona Nenzinha, que hoje, aos 85 anos, dá continuidade à tradição. Ela até tentou deixar a comunidade durante um tempo e, morando no bairro da Mustardinha, fez o cortejo lá, mas não vingou e o "homem", seu orixá de cabeça, Xangô, pediu para retornar ao lugar de origem: "O recado dele era pra eu voltar aqui pra Vila. Até agora não me arrependi não. O pessoal tem muita consideração com a gente", diz. 

Nenzinha fez como sua mãe e manteve toda a família na celebração em homenagem ao santo católico, sincretizado como o orixá Xangô no Candomblé. Além de seus quatro filhos, netos e bisnetos estão envolvidos no costume e a ajudam a colocar o cortejo na rua todos os anos. Clésiton José Genésio de Almeida, de 55 anos, o Késinho, filho de Nenzinha, tinha cerca de 10 anos quando a avó faleceu e partiu dele a vontade de que a tradição continuasse sob o comando de sua mãe.

Késinho ainda lembra do Acorda Povo comandado por Dona Dida: "O que eu achava mais bonito era o pessoal acordar de madrugada, abrir as portas, e o pessoal chegar na porta da minha avó pra participar, o rapaz que tocava chegava primeiro que todo mundo, pegava um bombo e já começava a bater, chamando o pessoal; e o meu avô soltando fogos". A relação afetiva da família falou mais forte e Dona Nenzinha decidiu tomar as rédeas do Acorda Povo. Ela garante que o cortejo continua fiel à suas tradições, tendo mudado quase nada desde o seu início. 

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O Acorda Povo da Vila das Lavadeiras sai da casa de Dona Nenzinha, após uma queima de fogos, pontualmente às 4h do dia 23 de junho, e vai percorrendo as ruas da comunidade. São feitas algumas paradas, nas casas de pessoas devotas do santo, para que sejam hasteadas as bandeiras. Nesse percurso, vão se juntando moradores, crianças e visitantes que, segundo Késinho, vêm de todos os lugares da cidade. Eles cantam ladainhas em homenagem a São João durante todo o trajeto. Na volta, cerca de duas horas depois, a chegada no mesmo ponto de partida se transforma em uma grande festa com muito samba de coco e mungunzá para todos.

E, apesar de ser dado como uma manifestação em extinção, a família Marques de Almeida garante que o Acorda Povo está mais vivo do que nunca: "A gente está mais próximo dele, todo ano a gente sabe que vai acontecer", diz Késinho. Dona Nenzinha concorda e com sua fala mansa e tranquila, explica o motivo da permanência do costume: "O compromisso é grande. E tem muito amor e fé, na verdade". 

 

Tradição viva

O pesquisador Mário Ribeiro concorda com Dona Nenzinha de Xangô. Ele coordena uma pesquisa sobre as Bandeiras de São João, como também são chamados os Acorda Povo, e garante que os grupos estão cada vez mais ativos em seus costumes: "Até o início da minha pesquisa eu também tinha essa ideia (de extinção do movimento), mas o que eu percebi agora é que o que existe mesmo é falta de visibilidade porque a manifestação acontece fortemente nas comunidades ainda hoje", diz. 

Ele conta que esta é uma "prática religiosa" trazida pelos colonizadores e que no "processo de contato com outras culturas, aconteceu uma hibridização". A manifestação foi se transformando à medida que ganhou a adesão de negros escravizados que seguiam o cortejo tocando instrumentos percussivos: "A procissão tomou um caráter dançante e isso a igreja passa a condenar com o processo de romanização. (Atualmente) Essas práticas são salvaguardadas com as pessoas do segmento do Candomblé e hoje, alguns grupos passam o cortejo pela frente da igreja mas a igreja está de porta fechada (para eles)". 

Mario lista alguns bairros no Recife que mantém a tradição: Ibura, Várzea, Amaro Branco, Santo Amaro e Areias; e revela que contabilizou, agora em 2018, cerca de 16 grupos atuantes. O pesquisador também explica alguns dos motivos que levam o senso comum a pensar que a manifestação está em vias de acabar: "A invisibilidade e o silenciamento dessa prática têm muito a ver com a sua ligação religiosa com as práticas culturais afro brasileiras, por todo aquele processo histórico de perseguição do Estado, discriminação, racismo. Você tem muitos vestígios dessa perseguição, desde a época da Colônia, passando pelo Estado Novo, pela ditadura militar, isso ecoa até hoje".

Fotos: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

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