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O tópico líder entre as mídias mundiais durante esta semana foi, sem dúvida, a ofensiva da Rússia contra a Ucrânia, autorizada pelo presidente Vladimir Putin na madrugada dessa quinta-feira (24). O conflito histórico já era esperado de despontar desta forma, apesar da comunidade internacional ter vocalizado estar contra a invasão russa em território ucraniano há bastante tempo. 

Muitos são os aspectos que inflaram a tensão Rússia versus Ucrânia, tendo como episódios mais recentes a ocupação da Crimeia — território antes ucraniano e anexado pela Rússia em 2014 — e o reconhecimento feito pela Rússia de duas regiões separatistas na Ucrânia, as províncias de Luhansk e Donetsk, que logo após a invasão da Crimeia, se autoproclamaram repúblicas populares pró-Rússia e contra a “ocidentalização” da Ucrânia. Putin, que é acusado de financiar as regiões separatistas há oito anos, reconheceu publicamente a independência dessas províncias nesta semana, o que difere do posicionamento internacional. 

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No entanto, não é possível apontar um motivo mais forte; o conflito entre Rússia e Ucrânia “pode ser comparado a um jogo de xadrez pela complexidade de elementos que estão envolvidos e pelas várias dimensões que ele traz consigo”, é o que explica o doutor Relações Internacionais e professor da Universidade da Amazônia, Mário Tito, entrevistado pelo LeiaJá.  

“Na verdade, nós podemos falar de um conflito que é bélico, do ponto de vista da segurança. Ele é um conflito que tem a ver com a disputa de hegemonia na Ásia. Envolve fatores econômicos e também fatores culturais identitários”, continua o internacionalista. 

Na Rússia, explica o professor, existe uma forte oposição ao ocidentalismo e um culto ao pensamento oriental da nação. Por esta razão, a Rússia defende a “Mãe Rússia”, que se constitui do envolvimento desses países eslavos, que não compartilham do “pensar ocidental”. Por isso, a entrada da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) poderia ser vista como uma “traição”. 

“Não se pode falar exatamente em uma Terceira Guerra Mundial, mas em uma mudança radical nas relações de poder no mundo, a partir desta manifestação de poder da Rússia. Os países ocidentais têm receio de que a Rússia avance mais para a Europa, alcançando, por exemplo, Hungria e Polônia, o que o Putin já negou. Mas o interesse da Rússia não é se tornar uma hegemonia mundial como os Estados Unidos é, ou como a China quer ser. O interesse dela é manter sua influência naquela região”, esclarece. 

Território 

Até esta sexta-feira (25), segundo dia de invasão russa, a Ucrânia havia sido invadida em pelo menos dez regiões através de todo o país, sem que ao menos uma região estratégica esteja livre de tropas russas. A invasão ocorre de fora para dentro e chegou, também nesta sexta-feira, à capital ucraniana, Kiev. 

As tropas de Putin estão presentes em Kiev, Lviv, Lutsk, Chernobyl, Kharkiv, Odessa (fronteira com a Moldávia), Mariupol (vizinha à Crimeia e região portuária do Mar Negro), além de Dnipro e Kherson, próximas da região separatista pró-Rússia. 

Nos seus limites, a Ucrânia tem saída para o Mar Negro e uma fronteira de mais de dois quilômetros com a Rússia. Há também fronteiras com a Bielorrúsia, aliada de Putin e onde há tropas russas e reservas. Os demais países que fazem fronteira com a Ucrânia são todos membros da Otan: Polônia, onde há tropas estadunidenses; Eslováquia, Hungria e Romênia. 

“O conflito é histórico, já existia nos antepassados. Para se ter uma ideia, Kiev é mais antiga que Moscou. Ou seja, temos uma situação onde dois povos cresceram e nem sempre se deram bem. Na história, se percebeu que a doutrina russa, da mãe Rússia, sempre foi de anexar os seus territórios para tornar-se grande. Isso ficou claro durante o aparecimento da União Soviética, que foi anexando os países do seu entorno, em especial Geórgia, Lituânia, Letônia e a própria Ucrânia. De certa forma, a Ucrânia tinha autonomia da União Soviética, mas ainda estava sob seu poder”, comenta o professor Tito. 

O especialista explica ainda que 2014 foi um ponto histórico chave em todo esse conjunto de eventos. Isso porque a Rússia, que tinha a Ucrânia já independente depois do final da Guerra Fria em 1991, percebeu que poderia perder um território estratégico da Ucrânia e que serve muito a Rússia: a Crimeia. Então, em 2014, a Rússia invade a Crimeia, sob a alegação de que a Crimeia possuía uma maioria populacional de russos e que este grupo seria protegido. 

“Na verdade, a Crimeia se tornou estratégica porque tem uma saída para o Mar Negro, isso para a marinha russa é muito importante. O conflito atual se dá nesse contexto, em especial porque a Ucrânia tem a intenção de fazer parte da Otan e a Rússia não quer que a Ucrânia faça parte da Otan, porque assim, ela perderia um território que é neutro e que faz com que a Otan não chegue na sua fronteira. Se a Ucrânia passar a integrar a Otan, as armas e todo o aparato de segurança e defesa ficará na fronteira da Rússia e isso não é interessante para o governo de Vladimir Putin”, completa o professor. 

Economia 

O eixo econômico funciona quase como um neutralizador das principais nações europeias e ao redor do mundo, se tratando de um posicionamento diante do conflito. Como a Rússia é uma fonte de energia para mais de metade da Europa, além de exportar e importar muitas commodities, as sanções que podem ser a ela aplicadas pela sua invasão na Ucrânia poderão ser devolvidas com a mesma intensidade ou uma ainda maior. 

  Isso impede grandes nações como a China, aliada à Rússia, ou os Estados Unidos, Alemanha e França, da Otan, de tomarem decisões mais radicais de contenção às tropas russas; ao menos por enquanto.  

“Justamente porque a Rússia provê muitos recursos para a Europa, ela tem uma posição privilegiada para manter os países da Europa sem atacá-la. Porém a Otan vem fazendo gestões junto aos países membros para engrossar as fileiras de um confronto com a Rússia. Deve-se entender também que os Estados Unidos, que lideram a Otan, têm interesses econômicos na União Europeia, em especial também no fornecimento de alimentos e combustível. Por isso, o enfraquecimento da Rússia como fornecedora de combustível, alimentação, e gás em especial, favoreceria a abertura de mercado para os Estados Unidos”, elucida o professor universitário que, por outro lado, não acredita que o eixo econômico seja central no conflito. 

O LeiaJá entrevistou também o doutor em Ciência Política Antônio Henrique Lucena, que é professor do curso de Relações Internacionais da Faculdade Damas, no Recife. O especialista buscou elucidar questões no sentido prático do contexto atual, ou seja, o que motivou a tomada de decisões com alusão ofensiva, e o que isso poderá desencadear para os demais países, incluindo o Brasil. Confira: 

Quatro perguntas para contextualizar o sentido prático do conflito 

LeiaJá: O que explica o estopim do conflito atual? 

Especialista: A gente pode colocar que a dimensão estratégica desse conflito é o estopim dele. A Rússia, na década de 90 pós União Soviética, estava fragilizada e houve a expansão da Otan, entre outros eventos. O presidente Vladimir Putin desenhou uma linha vermelha, o que já vem de um bom tempo, de que não há interesse russo para que os países ex-integrantes da antiga União Soviética passem a aderir à Otan. Alguns já aderiram, como os Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), mas a Ucrânia é importante demais para a Rússia. 

Quem tentou aderir a esse movimento foi a Geórgia, no ano de 2008, e mais ou menos o que aconteceu com a Ucrânia de ontem para hoje, se repetiu com a Geórgia: houve um ataque russo, declaração de repúblicas populares reconhecendo a soberania russa, e a destruição de boa parte da estrutura do exército georgiano daquela época. Ou seja, esse processo de não dar ao presidente Putin uma vitória estratégica. 

LeiaJá: Qual o peso do quesito econômico no desenrolar da invasão? 

Especialista: O eixo econômico é o mais importante do conflito? Nem tanto. O Nord Stream 2 foi suspenso, por hora, e isso vai representar um baque nas contas da Rússia, que tinha investido muito na construção desse gasoduto, e a própria Rússia sabia que sanções econômicas viriam, então eles se prepararam para isso. Esse é um movimento relevante, para ser considerado e observado, mas não é o mais importante. O que dá para apontar é essa preocupação de evitar tomar um lado e outro, o que o caso do Brasil, para evitar retaliações; tanto da Rússia, como dos Estados Unidos. 

A Rússia, de fato, provê alimentação e recursos, como o petróleo, e haverá, sim, a limitação do envio desses recursos, o que já era previsto. Acredito que isso vai acelerar o processo da Rússia perder mercados, ela conseguiu um mercado importante com a China, na importação do seu gás - o que é extremamente vantajoso para os chineses -, mas obviamente a Europa está fazendo uma transição energética para uma economia mais verde, que provavelmente será acelerado, para evitar essa dependência da Rússia. 

LeiaJá: A Otan é inimiga da Rússia? 

Especialista: A Otan hoje é uma instituição de gerenciamento de segurança, antes um bloco militar, surgido em 1948 com o intuito de antagonizar a União Soviética; tanto que a URSS posteriormente criou o Pacto de Varsóvia para rivalizar com a Otan, evitar um ataque europeu e coordenar melhor essas ações. Com o fim da União Soviética, a Otan permaneceu e se alargou; houve uma promessa verbalizada de que não haveria a expansão da Otan, o que fez a Rússia se sentir “traída” de certa forma. Para alguns países que antes formavam a URSS, foi interessante entrar para a Otan, porque eles passam a receber material bélico, apoio e segurança. Há uma cláusula da Otan que versa sobre isso, na questão dos ataques: se há ataque a um membro, o bloco todo precisa reagir. 

Só nos resta esperar como os países irão reagir. Eles irão aguardar o desenrolar do conflito, pois ainda não é possível identificar as variáveis, e se isso será uma ocupação da Ucrânia ou um enfraquecimento das suas forças militares, uma demonstração de poder. 

LeiaJá: O brasileiro poderá sentir no bolso as implicações da invasão russa? 

Especialista: Deve ocorrer sim um aumento no combustível nos países ocidentais, principalmente no caso do Brasil, que terá impacto direto na inflação. O barril do petróleo já superou os US$ 100. A grande preocupação é exatamente qual posição o Brasil vai tomar, porque o país depende em certa medida da exportação de commodities, e também importa fertilizantes. Geralmente o Brasil, por tradição, não se envolve em grandes conflitos internacionais e se mantém neutro. Só que a política brasileira costuma condenar esses atos, mas o Brasil vai condenar a Rússia e tomar uma postura mais dura? Teremos que observar. 

 

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