Nas segundas-feiras, a coluna Redor da Prosa traz crônicas, que não devem ser lidas por gente séria demais, sob hipótese alguma.
Eu somente assistia ao bate-boca, coisa repetida, um conhecido médico e um pastor discutindo a existência de Deus. Éramos convidados do programa de rádio de Geraldo Freire, teoricamente escolhidos para o tema “perspectivas 2011”. Não demorou para o mote inicial ser esquecido, e pensei em ficar como coadjuvante do papo. Isso até que, com olhar cúmplice, de quem tinha certeza da parceria, o médico solta:
– Quem não é ateu é ignorante!
A lógica era simples, muito, simplória mesmo: “se alguém tem conhecimento de ciências, estuda a história da Bíblia e das religiões, não acredita em Deus, não segue igreja alguma”. E completou, ainda me reservando aquele sorriso camarada, que nosso “povo precisa é ler”.
– Imaginem, Geraldo e ouvintes, um mundo sem Deus no coração, como seria? – perguntou o religioso, levantando a bola para o Doutor, que se empolgou:
– Ora, mundo bem melhor, sem tanta guerra, sem o povo se matando em nome de um Deus único e verdadeiro, com pessoas mais cultas, mais sofisticadas.
Foi quando me confessei cristão, sujeito que deixou de posar de ateu faz bocado de tempo. O que antes era cumplicidade, tornou-se um balançar de cabeça decepcionado. Para o médico, antes, este jornalista que publica a coluna Redor da Prosa era “um jovem muito inteligente”, que ele acompanhava desde os tempos do programa de debates na TV, quando eu demonstrava “muita cultura e jogo de cintura”. Tais gentilezas, ditas nos bastidores, foram substituídas pela resposta condescendente e menos grosseira que ele achou:
– Cristiano, você é sabido e tenho certeza que lê, mas ainda é muito jovem, moço demais.
Alguém já argumentou que não existe maior fé que a do ateu. Será apenas uma frase de efeito? Nosso respeitado médico afirmara antes que suas convicções foram construídas sobre muitas leituras, incontáveis. Não era por falta de conhecimento, portanto, que ele desconsiderava as civilizações politeístas e as comunidades descrentes, gente que, mesmo permitindo várias divindades ou negando todas, não deixou de se matar. Nem era por desinformada teimosia que ele também esquecia quantos dos intelectuais mais respeitados da história foram, são e continuarão sendo crentes em algum deus (mesmo depois dos cabelos brancos).
São diversos os caminhos que levam alguém como eu a acreditar em Deus. Escola, família, Bíblia, Hollywood... E, contrariamente ao que pensava meu interlocutor naquela manhã, foram os livros que me reconciliaram com o Cristianismo. Não só as obras teóricas, mas também a literatura, a ficção.
Conviver com os livros me levou a assumir a tese de Ricoeur: é somente através das narrativas que nós compreendemos o que nos cerca, elas nos permitem ter visões totalizadoras do mundo. As nossas memórias são histórias que montamos, são os pedaços (vividos ou imaginados) que selecionamos, organizamos e vestimos de credibilidade. As ideias que juntamos sobre o universo não são diferentes. Sejam científicas, metafísicas ou religiosas, as narrativas refiguram o que está em nosso redor, são decisivas para aquilo que entendemos como realidade.
Ou, nas sintéticas frases que Contardo Calligaris repetiu em nosso recente encontro no Festival Recifense de Literatura, a realidade nada mais é do que a ficção em que decidimos acreditar, e as memórias são as narrativas que estamos sempre inventando e reinventando para explicar quem somos.
Podemos crer em Deus, ou que milhões de fenômenos cósmicos ocorreram ao acaso para que a vida humana fosse possível; temos o direito de acreditar que existe liberdade, e que ela reside no insubordinado coração humano, ou que a democracia é chave indispensável para conquista de um mundo livre; é escolha nossa dedicar à família a razão de todas as coisas, ou depositar nossa fé no mercado. Seja lá como for, sempre criamos narrativas, fábulas sem as quais seria inviável levantarmos nossos castelos. E, dependendo de quem vê, tais castelos são de areia ou da argamassa mais sólida.
O médico estava resolvido a simplificar a questão para chamar todos os crentes em Deus de ignorantes, assim como minha Fé exige que eu faça escolhas, tome por minhas Verdades alguns tijolos entre tantos outros disponíveis.
As pessoas se matam não só por causa deste Deus que está comigo, tampouco pela laicidade do Doutor que odeia religiões. Elas sempre se violentaram, por terra, por causa da cor da pele, do gênero, da sexualidade, do idioma, do time de futebol. Final das contas, não sabemos é lidar com as diferenças.
Em A conquista da América, Todorov afirma que “quando dizemos que Colombo tem fé, o objeto é menos importante que a ação: sua fé é cristã, mas tem-se a impressão de que, se fosse muçulmana, ou judaica, ele teria agido do mesmo modo”. A força da crença (e não o tipo) é que movia suas aventuras. E sua ignorância sobre o índio não decorria de seus princípios, mas porque nunca saiu de si mesmo.
Descobrindo um continente, ou debatendo em programa de rádio, somos movidos pelas crenças (mesmo que seja a fé na ausência de fé), e fazemos uso de narrativas para explicar nossas visões do mundo. A ignorância não reside no fato de ser ou não ateu. Empedernida, ela resta é nesta indisposição de sairmos de nós mesmos, de nos colocarmos no lugar do outro e, assim, descobrirmos como somos semelhantes em nossas divergências.
Ou não. Porque isso é uma crônica, apenas. Uma narrativa, onde decidi começar a semana mais sério do que de costume, e bem mais generoso do que tenho sido.