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Lar dos Inválidos, Campinas, 1973. Em uma cama, no canto do quarto de um pavilhão no térreo, há um homem negro de cabelos e barbas brancas. Ele amou três mulheres, três cidades, publicou quatro livros, fundou companhias teatrais e movimentos sociais, excursionou pela Europa e ainda assim está deitado na cama de um asilo, a menos de um ano do momento em que morrerá ou, em suas palavras, tornar-se-á “cantiga determinadamente” e nunca terá “tempo para morrer”. Francisco Solano Trindade deixou sua trajetória de sucesso como os personagens de seus escritos: à margem do mercado, em luta permanente. Escritor, pintor, ator, dramaturgo e folclorista, Solano- em todas as linguagens- abordou a luta do povo negro pela igualdade, a partir de uma estética acessível à compreensão popular e, nesse sentido, tornou-se um pioneiro na arte brasileira. No Dia da Consciência Negra, o LeiaJá relembra a vida do homem que se imortalizou como o primeiro poeta brasileiro “assumidamente” negro.
Em seus escritos autobiográficos, Solano Trindade descreve suas memórias de garoto. Filho do sapateiro Manuel Abílio Trindade e da quituteira Emerenciana, o poeta nasceu no Recife, no dia 24 de julho de 1908, em cujo centro urbano recebeu suas primeiras aulas de poesia. Morador do Pátio do Terço, um dos lugares de resistência mais emblemáticos para a memória afro-brasileira em Pernambuco, Solano conviveu desde cedo com a Igreja de Nossa Senhora do Terço, o Bloco de Samba Turma do Saberé e o terreiro da famosa ialorixá Maria de Lourdes da Silva, conhecida como Badia, uma das figuras centrais do xangô pernambucano. Do burburinho do cotidiano urbano, o artista tirou suas primeiras lições de poesia. “É doce, é doce/o abacaxi/ é doce, é doce/ e é barato [...] Eram os pregões que ele ouvia no bairro de São José”, lembra Raquel Trindade, a falecida filha do poeta e espécie de herdeira artística, no documentário “Solano Trindade, 100 Anos", dirigido por Alessandro Guedes e Helder Vieira.
Militante desde os anos 1960, Inaldete Andrade frisa que Solano era uma de suas poucas referências negras no período. (Júlio Gomes/LeiaJáImagens)
“Raquel nasceu no Recife, saiu e voltou, mas não soube identificar a casa em que ele nasceu. Também fomos visitar, Badia, que não tinha maiores informações, mas penso que aquele bairro não é o mesmo em que Solano nasceu, em termos de arquitetura, pois ele veio ao mundo em uma casa muito pobre”, comenta a escritora Inaldete Andrade. Ativista do movimento negro em Pernambuco desde 1969, Inaldete encantou-se pela obra de Solano ainda em sua primeira reunião na militância, por intermédio de um colega, João Batista Ferreira. “Ele chegou dizendo que recitaria uma poesia de uma poeta negro pernambucano que conheceu em São Paulo, Solano Trindade. O Ferreira, como o chamávamos, explicou que Solano havia saído do Recife porque não obteve muita aceitação no Estado. Ele nunca escreveu isso, essas eram nossas deduções”, frisa.
As memórias de Inaldete com o movimento remontam a um período de poucas referências negras no mundo da cultura e das artes. “Essa divulgação dos artistas negros é recente. Inicialmente, éramos considerados ‘racistas ao contrário’, a imprensa pernambucana também não nos recebeu bem, mas pouco a pouco fomos encontrando espaços. Solano dava essa contribuição enquanto poeta, porque a gente tinha a necessidade de divulgar um nome nosso onde íamos”, afirma.
Filha de criação de Badia, Maria Lúcia indica que Solano morou na casa de número 152 da Rua Vidal de Negreiros, atualmente uma loja, no Centro do Recife. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
A reportagem do LeiaJá foi à casa de Badia, oficialmente conhecida como Casa das Tias, na Rua Vidal de Negreiros, Pátio do Terço. Falecida em julho de 1991, a ialorixá deixou o imóvel aos cuidados de sua prima e filha de criação, Maria Lúcia Soares dos Santos. “Não tenho muito o que falar sobre Solano, só sei que eles foram vizinhos e que ele era frequentador daqui, Badia sempre comentava que ele tinha morado nessa casa da frente, mas teve que ir embora. Os dois tinham relação de amizade, mas ela morreu sem revê-lo”, lembra Maria Lúcia. Na casa em que teria morado Solano Trindade, agora funciona uma loja de variedades, sem placas ou quaisquer outras referências ao escritor. Curiosamente, foi o Pátio de São Pedro o local escolhido pela Prefeitura do Recife para receber uma estátua em homenagem a Solano.
No interior de casa, Maria Lúcia, contudo, ainda conserva um boneco gigante de Solano e outro de Badia, entregues pela Prefeitura. “Há três anos eles podem ser vistos desfilando na Noite dos Tambores Silenciosos”, acrescenta.
O ano era 1937 quando cinco rapazes até então desconhecidos fundaram a Frente Negra Pernambucana, co-irmã da Frente Negra Pelotense. Gerson Monteiro de Lima, José Melo de Albuquerque, José Vicente Rodrigues Lima, Miguel Barros Mulato e Solano Trindade, que reunira estatísticas da época, verificando a quase completa ausência de negros nos cursos superiores. “Na década de 1930, o racismo era velado. Os brasileiros nunca admitiram que eram racistas, escravocratas e que ainda são. Depois da abolição, que não foi bem aceita por muita gente, as primeiras frentes negras surgiram para reivindicar inclusão para essa população, que segue sem muitas oportunidades”, explica a professora do departamento de história da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Giselda Brito.
Seduzido pelo ideal de igualdade que permeava sua luta no movimento negro, Solano também aderiu ao comunismo, justamente em uma conjuntura de avanço das teorias fascistas em todo o mundo. “Depois da Revolução Russa, em 1917, o mundo capitalista passou a temer a expansão desse processo. No Brasil, o integralismo ficou conhecido como fascismo brasileiro, embora os membros desse movimento preferissem ser chamados de nacionalistas, devido ao aparecimento dos crimes de guerra de Hitler. Como diria (Eric) Hobsbawm, o século XX é o século do fascismo”, completa Brito. Geralmente homens brancos e de alto poder aquisitivo, os integralistas estavam aglutinados por uma forte orientação anticomunista. “Vestiam um fardamento verde, tinham milícia e um movimento de massa”, descreve a professora.
Aos 29 anos, Solano Trindade participou da fundação da Frente Negra Pernambucana. (Arquivo Nacional/Acervo)
Em nota publicada pelo Diario de Pernambuco no dia 10 de maio de 1944, a respeito da retirada dos clubes e associações de negros do triângulo paulista devido a uma suposta solicitação do Sindicato dos Lojistas da região, Solano reagiu: “Isso é um atentado contra a melhor conquista da civilização brasileira”, acrescentando, segundo o jornal, acreditar que se estava usando “a técnica fascista para dividir os brasileiros”. Na ocasião Solano discursava como presidente do Centro de Cultura Afro-brasileiro, por ele criado.
Trindade já havia morado em Belo Horizonte (MG) e Pelotas (RS), no ano de 1940, e lançado seus dois primeiros livros, Poemas Negros (1936) e Poemas de uma vida simples (1944), quando foi preso pelo Estado Novo, em função de suas crenças comunistas. “Minha mãe procurou por ele em diversas detenções, por dias, e sempre ouvia que ele não estava naquele local. Em um deles, ela insistiu e um militar confirmou a presença dele”, conta Godiva Trindade, filha de Solano. No poema confessional “Rio”, o poeta dá a pista de onde foi encontrado: Rua da Relação, na capital fluminense. “Apreenderam muitos livros dele, mas ele não sofreu maus tratos”, continua Godiva.
Bem relacionado, o pernambucano chegou a ser acobertado pela amiga e atriz Ruth de Souza, primeira dama negra do teatro brasileiro, que o escondeu em sua própria casa. O suplício, segundo Godiva, não se compararia, no entanto, ao trauma familiar sofrido em 1964, durante o governo de Castelo Branco, na ditadura militar. “Ele perdeu um filho e eu meu irmão: Francisco Solano Trindade Filho. À epoca, ele servia ao exército e foi chamado a se apresentar ao exército, ao qual servia, através de uma ligação feita para nossa casa às cinco horas da manhã”, lembra Godiva. Aos 18 anos, Solano Filho se despedia pela última vez de sua família. “O que voltou foi o corpo dele, morto. O exército alegou que ele foi vítima de um acidente”, lamenta.
Corporação Warner-Elektra-Atlantic insistiu pela liberação do poema "Trem Sujo de Leopoldina". (Arquivo Nacional/Acervo)
Abatido, o poeta ainda voltaria a sentir o amargor da censura. Em 1973, seus poemas “Mulher Barriguda” e “Trem sujo da Leopoldina” foram musicados por João Ricardo, um dos membros da banda Secos & Molhados, que contava ainda com o cantor Ney Matogrosso e o músico Gérson Conrad. Ao contrário da primeira, a segunda música teve sua divulgação impedida pela Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) e não pôde integrar o disco Secos & Molhados, um dos mais icônicos da música popular brasileira. Em 1979, a corporação Warner-Elektra-Atlantic voltou a requerer a liberação da letra, conforme consta em documento atualmente armazenado pelo Arquivo Nacional. Desta vez, a música foi liberada e então lançada pelos Secos & Molhados em conjunto com seu videoclipe oficial, com exclusividade no programa Fantástico, da Rede Globo.
O professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Muniz Sodré, uma das maiores referências nacionais em sua área, é um entusiasta da obra de Solano. “‘Trem sujo da Leopoldina’ é uma poesia de ritmo, movimento, que você pode cantar e até dançar. Poesia não é significado, é sentido, porque ela desestabiliza e escandaliza a linguagem. Você não vai confiar na poesia para um mensagem de ordem prática, mas o grande poeta é o que faz da linguagem uma festa, onde ele dança e orquestra”, coloca. Pela junção desta característica a seu engajamento político, Solano é associado por Sodré a Vladimir Maiakovski. “Um grande poeta da revolução russa, ao mesmo tempo propagandista dela. A propaganda visa objetivos de convencimento e persuasão, mexer com a consciência, o coração do outro, então as palavras têm que ser mais diretas”, prossegue. Assim, a poesia, na visão de Sodré, não se faz apenas com a subversão das palavras. “Mas pelo encantamento das aliterações, pela movimentação forte das palavras e pelas inflexões de espírito. Solano era isso. Maiakóvski era isso”, conclui.
Sem a sofisticação de Ferreira Gullar ou Manuel Bandeira, Solano ginga com as palavras para conquistar seu leitor. “A poesia dele é ritmo, aliteração, assonância e impacto, para trazer o que era o coração dele. Um propósito de libertação do homem negro. Ele sabia que a abolição não tinha realmente abolido a forma social onde a escravidão estava instalada, então queria libertar o negro”, acrescenta Sodré.
Solano atuando em cena do filme "A hora e a vez de Augusto Matraga" (1965), do diretor Roberto Santos. (A hora e a vez de Augusto Matraga/Reprodução)
Durante sua estadia no Rio de Janeiro, Solano fundou o Teatro Popular Brasileiro, em parceria com a companheira Margarida Trindade e o sociólogo Edison Carneiro. Em um artigo do Diario de Pernambuco de 1952, o escritor é lembrado como figura cativa do Café Vermelhinho, reduto da intelectualidade carioca da época. “Surge Solano Trindade, sempre de talão de cobrança em punho, lutando com unhas e dentes para pagar a sala do serviço nacional do teatro, onde seu ‘Teatro Folclórico" ensaia números de candomble, xango, ‘pontos’ e ‘macumbas’. Esse negrinho humilde e incansável nunca se humilha quando se trata de ‘implorar quase’ para manter seu teatro de pé, pagar as despesas, deixar tudo em ordem. Por isso não se espantem quando o virem de talão em punho, perguntando com aquela sua voz analasada: ‘você pode pagar hoje?”’, descreve o cronista.
Composto por operários e estudantes, o elenco do Teatro Popular, contudo, adotou uma postura bem diferente da resignada atitude atribuída a Solano pelo jornal. Com muito esforço, o projeto circulou pela Europa, divulgando expressões populares como o côco de umbigada, o jongo, o maracatu e as festas de xangô. “Na verdade, o Teatro Popular Brasileiro era uma ideia. Quando meu avô morreu, o nome mudou para Teatro Popular Solano Trindade. Nos anos 1980, Raquel Trindade conseguiu construir, em Embu das Artes (SP), um espaço para 400 pessoas, com palco de mais de 40m², dois andares de plateia, dois banheiros, dois camarins e uma sala de aula especial”, relata o músico e neto de Solano, Vitor Trindade, atual presidente do Teatro Solano Trindade.
O Teatro Solano Trindade é uma das muitas heranças deixadas por Solano ao município de Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo. “O Sakai do Embu, mestre da terracota, falou para o Assis, que era negro, que tinha conhecido o Solano na capital e que ele era uma grande entendedor de cultura afro-brasileira. Dessa forma, o Solano foi convidado a vir ao Embu e se encantou pelo lugar, passando a morar aqui”, conta a artista plástica Tônia do Embu, discípula de Sakai. Para Tônia, a presença de Trindade transformaria para sempre a cidade. “Nossa cultura era muito jesuítica e indígena, não tínhamos conhecimento das danças, cores e comidas negras. Quando o Solano veio para cá, o Embu virou uma cidade festiva, graças aos eventos que ele organizava no Largo da Matriz. Isso atraía muitos visitantes paulistanos”, conta.
No Embu, Solano mergulhou em uma antiga paixão. Aproveitando o bom fluxo de turistas na cidade, passou a exercitar sua pintura, classificada por alguns artistas como naïf, isto é, a arte produzida por autodidatas, com traços originais. “Em outros momentos, dava a impressão de ser expressionista ou ainda abstrato. Aqui no Embu há um nicho de arte popular enorme e o Solano não escapou disso. Suas temáticas sempre traziam cenas de bumba-meu-boi, maracatu e candomblé”, comenta Tônia. Segundo a escultura, as dificuldades financeiras enfrentadas pelos artistas na cidade, àquela época, eram enormes. “A gente dependia dos turistas, porque a cidade era muito pobre e pequena, mas o Solano sempre foi muito cercado de amor, carinho, as pessoas ajudavam. Além disso, com assinatura dele, seus quadros vendiam muito. No Museu Afro-brasileiro, em São Paulo, há um quadro dele exposto”, afirma.
Após a morte de seu pai, Raquel Trindade inaugurou o Teatro Solano Trindade, no Embu das Artes. (Prefeitura de Embu das Artes/divulgação)
Com bisnetos, netos e filhos vivendo na cidade, o escritor segue sendo bastante declamado no município. “O Teatro Solano Trindade tem muitos problemas na relação com a construção física, mas mantemos as atividades, oferecendo aulas de dança, percussão e capoeira”, informa Vitor Trindade. Com o terreno em comodato e sob administração da família Trindade, o teatro aguarda verbas para reforma. “Temos um projeto de R$ 20 mil para conserto do telhado, com um dinheiro que viria da prefeitura. Vamos ver se isso se torna realidade”, finaliza.
“Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte”. A mais célebre frase de Solano Trindade, tomada como lema pelo Teatro Popular Brasileiro, denota a essência de seu trabalho: mergulhar fundo na história dos afro-brasileiros para transmitir-lhes uma mensagem clara e acessível, capaz de propagandear uma causa comum. Por isso, nada de termos rebuscados ou construções complexas. Com seus versos diretos, rimados e ritmados, Solano talvez tenha sido o primeiro rapper da poesia brasileira. “Ele já usava termos como ‘mano’ e ‘salve’, para ser acessível. Não buscava uma linguagem acadêmica, porque o acesso à literatura sempre foi restrito à elite. Além disso, lançar e comprar livros era muito caro”, opina o bisneto de Solano, Zinho Trindade, que gosta de se definir como “artista multimídia”, trabalhando, dentre outras linguagens, com o rap.
Zinho recita o bisavô, Solano, diante de sua estátua, no Pátio de São Pedro, Centro do Recife. (Marília Parente/LeiaJá Imagens)
Zinho lembra que seu pai, Vitor Trindade, gravou um disco inteiro, o “Ossé” (2015), com poemas de Solano musicados. “São textos vivos até hoje, fáceis de musicar, em diversos ritmos. Não sei se isso foi proposital, mas ele era um cara que pensava muito à frente de seu tempo”, completa.
Com apenas 16 anos, a poeta Bione acaba de iniciar sua carreira no rap, através de sua mixtape “Sai da Frente”, apresentada em novembro deste ano. “Comecei a escrever poesia marginal aos 13 anos de idade, porque comecei a reparar em problemas sociais como o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Só escrevia porque queria desabafar”, lembra. Em 2018, a jovem representou Pernambuco no Slam das Minas Brasil, um dos principais eventos de poesia do país. “A luta de Solano valeu a pena, é um estímulo para a gente. Se tinha gente resistindo naquela época, posso fazer o mesmo hoje; se ele perdeu um filho na ditadura, muitas mães pretas perdem os seus o tempo inteiro para a polícia militar. Então é importante que a gente esteja aqui para reproduzir o que ele fazia, mas de uma maneira mais atualizada, porque o fascismo também está se atualizando. É importante ser essa semente de Solano”, finaliza.