Quando Rogéria Ferreira teve que fazer a carteira de identidade no Rio de Janeiro, ofendeu-se com a foto tirada pelas autoridades. Não por ter sido pouco favorecida, mas porque, ao ser obrigada a posar sem turbante, sentiu-se nua.
Seguidora do candomblé, a estilista negra de 36 anos sempre cobre sua cabeça (o "ori", uma entidade sagrada) com um colorido turbante, seguindo a tradição que herdou de sua tataravó.
Mas, no ano passado, pela primeira vez na vida, agentes do Detran lhe disseram que se não apresentasse um documento dizendo que tinha câncer ou uma carta assinada por sua mãe de santo, não podia tirar a foto com o lenço.
"Para muitos, é simplesmente um pedaço de pano, uma moda, mas, para mim, o turbante tem vida, tem sangue, representa minha ancestralidade. Quando saio sem turbante, é como se saísse sem blusa. Eu me senti humilhada, agredida como ser humano", explica à AFP esta descendente de escravos angolanos.
Como Rogéria acabara de ser assaltada e precisava do documento com urgência para um trabalho, acabou cedendo e tirou a foto com a cabeça descoberta.
Ela não ficou, porém, de braços cruzados.
Sua luta de meses reflete as batalhas que os seguidores de religiões de matriz africana enfrentam no Brasil, onde os ataques aos cultos de candomblé, ou de umbanda, aumentam de maneira preocupante.
Especialmente no Rio de Janeiro, com violentas depredações de terreiros e até agressões físicas, como o episódio de uma idosa de 65 anos que foi agredida a pedradas.
No domingo 17 de setembro, uma grande marcha contra a intolerância repudiou esses atos, que aumentam a preocupação sobre as tensões religiosas em uma cidade governada pelo pastor licenciado da Igreja evangélica Marcelo Crivella.
- Bruxa, macumbeira -
"A discriminação no Rio de Janeiro é tremenda. Eu ando, as pessoas me olham assim: lá vai a macumbeira, pode ter piolho... No ônibus, quando está lotado, e as pessoas não sentam do meu lado... Eu acabo rindo com isso tudo, porque aprendi a levar na brincadeira", relata Rogéria, triste com a ignorância que cerca o candomblé.
Embora o uso do turbante não seja proibido neste país laico e inclusive tenha se tornado acessório fashion sem distinção racial, alguns casos parecidos com o de Rogéria foram registrados.
Em abril de 2016, a adolescente Laís Correia afirmou ter sido discriminada em sua escola em Salvador (Bahia, nordeste) por ser barrada caso usasse turbante e, em abril passado, a ativista negra Dandara Tonantzin denunciou ter sofrido um ataque em uma festa de formatura em Minas Gerais (sudeste), onde uns rapazes arrancaram seu turbante.
"A discriminação é generalizada, mas, com os negros, é exagerada", acrescenta Rogéria.
Depois de bater em várias portas, esta mulher conseguiu que a Defensoria Pública do Rio e a Ordem de Advogados do Brasil (OAB) no estado entrassem no debate, por considerar que seu caso era um exemplo de preconceito racial e religioso.
Em março passado, ela conseguiu o que parecia impossível: o Ministério Público do Rio aprovou uma norma, permitindo que se tire a foto do documento usando chapéus, turbantes, véus, "ou qualquer outra cobertura de cabeça, por motivos de convicção religiosa".
A medida abriu espaço para uma discussão acalorada.
Rogéria conseguiu tirar uma nova carteira de identidade com um vistoso turbante amarelo com flores rosas e, hoje, exibe seu documento como uma medalha.
"Para mim, esse RG significa um troféu, o troféu para a coletividade", comemorou.
Uma pequena vitória que agora deseja ver disseminada por todos os cantos do Brasil.
O país com mais católicos do mundo está em profunda mutação. Em 1970, o catolicismo representava quase 92% da população, mas caiu para menos de 65% em 2010, segundo o último censo do IBGE.
No mesmo período, os cultos evangélicos pularam de 5,2% para 22,2%, e os adeptos de cultos de origem africana representam apenas 0,3% da população. Segundo analistas, é uma prova de que muitos sequer se atrevem a confessar essa religião em voz alta por medo do preconceito.