"Ser uma pessoa ansiosa é ser agitada”, diz jovem vítima de transtorno de ansiedade. Foto: Chico Peixoto/LeiaJáImagens
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Quem dera que as noites de sono fossem dignas de aliviar angústias assombrosas. Nem no anoitecer, quando corpo e mente padecem por descanso, há calma. Pesadelos parecem tão reais que impulsionam o corpo de volta à realidade e um turbilhão de pensamentos retorna à cabeça de quem vive temendo o futuro. O coração bate de maneira desesperada em um sinal de que um mar de preocupações afoga a mente paulatinamente, ao mesmo tempo em que a respiração ofegante revela que não existem mais sinais de calmaria.
É quase impossível controlar a mente. O futuro, por sua vez, torna-se um “monstro cruel”, envolto por preocupações sistemáticas, muitas vezes sem nenhuma explicação ou justificativa. Todos os dias, persistem medos excessivos do que há por vir, além de um nó na garganta peculiar. Choro, tremores. Dúvidas, mal-estar. Mais dúvidas, mais medo. Corpo e mente vomitam a ansiedade de Isa*.
Isa remexe o olhar. Suas mãos são extremamente inquietas. Os primeiros diálogos com a reportagem quase não têm pontos finais. Ela é intensa nas palavras, expressa como ninguém, por meio da face, cada sentimento descrito em suas frases. Seu corpo fala claramente, balançando de um lado para o outro como se ela estivesse sempre nervosa, talvez angustiada. Respira profundamente antes de organizar suas ideias que remetem à infância, perpassam pela juventude e desembocam em um presente não tão presente assim, já que sua cabeça não esquece o futuro. Como é possível ter tantas preocupações com situações que nem chegaram se concretizar? O que explica ela imaginar os piores cenários possíveis?
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Tais questionamentos são respondidos por Isa, uma jovem de 23 anos. Ela revela ser vítima de transtorno de ansiedade. O que ocasionou? Para ela, existem vários fatores, da infância à vida adulta. Frustrações, conflitos familiares, uma vida profissional marcada por incertezas e relacionamentos amorosos que findaram em lágrimas. Há uma série de situações, segundo ela, que pode explicar seus atritos psicológicos. Um passado que deixa cicatrizes e ainda é capaz de assombrar o futuro.
“Ser uma pessoa ansiosa é ser agitada, é não conseguir parar jamais a cabeça. Ser ansiosa é não conseguir parar onde estou. Não consigo parar no presente! Minha mente é um turbilhão de pensamentos irrefreáveis”, descreve a jovem.
Isa nasceu em uma cidade pacata marcada pelo conservadorismo. Município onde os moradores conhecem uns aos outros. De classe média, a garota teve a oportunidade de estudar em uma escola tradicional, onde construiu sua base de conteúdos estudantis, mas não moral. Ela não compactuava com alguns ideais impostos pelos educadores.
Nesse período, ainda criança, ela acredita que desenvolveu uma estranha atitude oriunda dos primeiros processos ansiosos que enfrenta até então. “Sempre roí muito as unhas, normalmente as pessoas quando estão ansiosas elas roem. Não consigo perceber o que me fazia isso. Depois que eu já tinha roído todas as minhas unhas, eu pedia para roer as dos adultos. Queria continuar repetindo aquele comportamento. Não consigo lembrar o que desencadeava isso”, conta.
Em dado momento, a face de Isa expressa revolta, ao contar detalhes da relação que tinha com o pai. Segundo ela, um homem autoritário, violento, defensor de suas próprias convicções, independente do que pensavam as pessoas ao seu redor. “Meu pai era violento, batia em mim, como uma coisa que ele entendia que era uma ferramenta de educação. Para ele era uma forma de correção. Era autoritário, extremamente rígido. Um homem muito bruto. Apesar de eu gostar dele, quando era mais nova, nunca respeitei meu pai, apenas tive medo. Toda obediência, tudo que sempre fiz para me manter na linha, foi por medo de porrada”, relata.
A jovem aponta a relação conflituosa com o pai como um dos fatores que ocasionaram ansiedade em sua vida. Além disso, revela inquietude na região onde nasceu, afirmando que as pessoas do local a vigiavam por ela pertencer a uma família tradicional. “Comecei a me sentir deslocada e desencontrada no lugar onde vivia. Estava em uma cidade do interior, um local conservador, machista, pequeno, onde as pessoas têm uma mentalidade diferente, todos se conhecem e todos falam a respeito de todo mundo. Todo mundo lá sabia quem eram meus familiares e eu, então qualquer coisa que eu fizesse poderia virar uma fofoca. Não demorei, quase nada, a querer ter liberdade, a ser mais crítica e pensar diferente do povo. Sempre tive o sonho, o plano e a ideia de sair de lá para um lugar mais desenvolvido, com mais horizonte. Me sentia vigiada, tolhida e com medo dos julgamentos”, descreve Isa.
Infeliz na região onde nasceu, Isa conseguiu, por meio da ajuda de familiares, passar alguns dias em uma cidade metropolitana. Foi onde começou a conhecer outras pessoas, desencadeando seu momento de liberdade tão esperado. Alegria à parte, foi nesse período, já na adolescência, que a garota entrou em um ciclo rebelde, quando seus maiores conflitos aconteciam com sua mãe. Elas não eram harmoniosas, muito menos compartilhavam das mesmas ideias. Discussões marcaram essa relação. “Me tornei uma adolescente muito rebelde”, conta.
Um dos conflitos entre mãe e filha aconteceu no momento em que Isa se preparava para prestar vestibular. A jovem optou por uma formação extremamente contestada pelos pais. De acordo com ela, sua mãe nunca aceitou a escolha e, diante da decisão de Isa, proferiu críticas.
Antes da chegada à universidade, no entanto, o momento de preparação para o vestibular também foi marcado por brigas entre mãe e filha, além dos primeiros sinais físicos de que a jovem sofria transtorno de ansiedade. Aos 17 anos, ela mudou-se de vez para a cidade grande, onde ingressou em cursos preparatórios para o processo seletivo. Isa lembra que sentia sérias dificuldades em algumas matérias, uma vez que não tinha familiaridade com essas áreas, porém, sua mãe, não aceitava o desempenho ruim. Dessa forma, as críticas e insatisfação da mãe foram atreladas à pressão pela aprovação no ensino.
“Não passei no vestibular na primeira seleção; me frustrei quando eu vi a nota. Muitas coisas ruins vinham da minha mãe, ele me acusava que minhas dificuldades em certas matérias vinham da vagabundagem. Me sentia desestimulada, descartada, um zero à esquerda. Sinto que minha mãe nunca acreditou e não acredita em mim”, desabafa.
Apesar da reprovação e principalmente das críticas de sua mãe, Isa insistiu no sonho de passar em um curso bastante criticado pelos pais. Consequentemente, sua postura desencadeou uma pressão ainda maior durante os estudos, devido a uma rotina intensa que envolvia aulas e percursos consideráveis entre o curso e sua residência.
Certo dia, no curso onde estudava, enquanto aguardava em uma fila para ter um texto corrigido, Isa passou mal. “O primeiro sintoma da ansiedade que lembro claramente aconteceu quando eu estava em uma fila para correção de redação com uma amiga, quando, de repente, comecei a me sentir com tontura, falta de ar e tremor; meu coração disparou também. Comecei a tremer e a ficar nervosa. Estava ali vivendo a minha rotina e de repente tudo pipocou! Estava respirando, mas meu coração disparava. Meu corpo começou a reagir com tontura e perda gradual de visão. Tentava respirar fundo até passar. Fui parar em um pneumologista e cardiologista, porém acabei encaminhada para um psiquiatra e psicólogo, porque nada foi constatado. Tratava-se, então, de um problema psicológico”, conta a jovem.
Isa novamente prestou vestibular e foi aprovada. No entanto, a felicidade pela aprovação logo daria lugar a um dos momentos mais difíceis da sua vida. Na época, ela namorava um rapaz que, momentos depois do fim da prova, anunciou o fim do relacionamento.
“Logo depois da prova do vestibular, ele terminou o namoro. Foi então que tive a minha primeira crise depressiva. Não conseguia minimamente sobreviver, era um zumbi chorão que não dormia, não comia, não fazia nada além de chorar. Sonhava com a criatura, só pensava nela. Não queria ver ninguém, meu coração acelerava. Quando batia a ansiedade, eu ficava nervosa, os pensamentos normalmente eram sobre ele. Eu tinha lembranças do passado e medo do futuro. Era uma sensação de que as coisas não poderiam melhorar”, relata Isa.
“As pessoas precisam entender que ansiedade e depressão caminham bem juntas. E quando você tem as duas é um verdadeiro inferno. Uma vez ouvi uma frase que descreve bem: ansiedade é quando você se importa com tudo e depressão é quando você se importa com nada”, acrescenta a jovem.
Em crise depressiva e ao mesmo tempo sofrendo ansiedade, Isa passou a fazer terapia psicológica e, posteriormente, recebeu atendimento psiquiátrico. Apesar das dificuldades, teve forças para entrar na universidade, fato que, em certa medida, aliviou parte da tristeza que enfrentava na época.
No período, Isa começou a namorar novamente. Apegou-se bastante ao novo relacionamento, mas, novamente, viu uma os vínculos findarem. Ela revela que os familiares do rapaz não gostavam dela por suas posições políticas e ideológicas, e mesmo cobrando uma imposição energética do companheiro, ele se mantinha submisso às opiniões alheias.
“A família dele nunca gostou de mim. Não era a moça bela, recatada do lar, que eles queriam. Me criticavam e ele não me defendia, por isso ficava ansiosa, nervosa, ficava chateada, brigava para ele ser mais energético. Teve um primeiro término que essa questão familiar”, revela Isa.
“Foi quando bateu, além de uma ansiedade gigantesca, a depressão mais pesada de todos. Na ansiedade, em meio a tudo que eu sentia, começaram sintomas que vieram para o corpo. Passei a mexer o meu corpo. Em outro impulso, simplesmente começava, na hora da agonia, a esfregar as unhas na pele. Se tornava ferida. Isso aconteceu quatro vezes, a ponto de rasgar a pele. Já cheguei a me morder. As mordidas deixaram marcas e dor”, conta, demonstrando tristeza.
De acordo com a jovem, o relacionamento foi restaurado. Porém, as obrigações da universidade também motivaram, segundo ela, a manutenção da ansiedade. “A faculdade, depois de um tempo, começou a ser um fator estressante. Demorar a estagiar, todo mundo começando e eu não, sensação de que as coisas não dariam certo. Só comigo que não acontece. Me questionava sobre a minha capacidade. Isso era desesperador”, relata Isa.
Em um ritmo intenso de estudos e afetada pelos efeitos da ansiedade, Isa atrelou à terapia um tratamento psiquiátrico. Por inúmeras vezes, foi vítima de crises ansiosas, as quais descrevem com detalhes: “Quando eu sentia que ia entrar em crise, o coração acelerava e a respiração começava a falhar. Então eu corria para o banheiro, não queria que ninguém percebesse. Apesar do meu processo terapeuta, a ansiedade parecia que não era contida. Não conseguia responder aos meus trabalhos, não conseguia dar conta”.
Ela revela, ainda, que seus problemas psicológicos foram intensificados após mais um término do namoro, desta vez de maneira definitiva. Isa diz que foi um dos momentos mais difíceis da sua vida. Nesse período, sentiu que sua autoestima foi fortemente abalada. “A minha autoestima sempre foi terrível com tudo. Impactou bastante nas minhas relações amorosas. Me sino indigna de ser amada, porque me esforcei muito para que desse certo. Para mim, fui uma ótima namorada para todo mundo que passou pela minha vida. Nunca me achei bonita”, desabafa. “Tenho a sensação de que há algo de errado comido, porque não dou certo com ninguém. Me sinto como se tivesse dedo podre. Mesmo quando eu tenho alguém que parece ser legal, por mais que eu tente acaba não dando certo”, completa Isa.
Isa é resistência. Sofre, cai, mas levanta-se diante da ansiedade. É uma caminhada rumo à recuperação, mesmo a passos difíceis. Ela encara as suas frustrações e medo. Com a ajuda de amigos e especialistas, luta pela saúde.
Isa confessa, no entanto, que é difícil batalhar contra os efeitos da ansiedade – na mente e no corpo -. “Uma pessoa que tem ansiedade ela nunca se prende apenas no presente. Quando estou muito ansiosa, às vezes me pego andando a esmo sem razão alguma. Mesmo sem ter nada para fazer, fico tão inquieta que saio do quarto para a sala, da sala para cozinha, da cozinha de volta para o quarto. Parece que estou procurando o que fazer, mas eu simplesmente não tenho. Minha mente é um turbilhão de pensamentos irrefreáveis. Tenho dificuldade para dormir, o sono é agitado. Às vezes tenho pesadelos e acordo no meio da noite”, descreve.
“O que descreve melhor o turbilhão da minha mente e do meu corpo: ser ansiosa é não conseguir parar onde estou. Não consigo parar no presente. Quem é ansioso se importa o tempo todo e com tudo. Não consegue parar de ter cobranças, está sempre pensando no que pode acontecer. Você pensa no passado. Você pensa no que deixou de fazer. Você não consegue parar de imaginar mil cenários e hipóteses. Não para de pensar como deveria fazer as coisas da sua vida ou como as pessoas estão interpretando as coisas que acontecem com você. Sua cabeça te joga para frente e para trás”, diz, em um ritmo acelerado.
Antes do ponto do final do relato, uma singela pergunta para Isa: O que você espera do futuro? Ela responde: “Essa pergunta me causa ansiedade”.
*Nome fictício
Reportagem integra o especial “Ansiedade”. Produzido pelo LeiaJá, o trabalho jornalístico detalha como a doença afeta pessoas de todo o mundo, bem como mostra as formas de tratamento. Confira as demais matérias:
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