Alguns lugares parecem ter o poder de atrair as pessoas. E pessoas dispostas a fazer diferença. Assim é o Nascedouro de Peixinhos, certamente um dos mais representativos pontos culturais da Região Metropolitana do Recife. Um complexo arquitetônico gigantesco, que funcionou como abatedouro e depois foi abandonado, virando local fácil para marginais que cometiam crimes, usavam drogas e até abandonavam corpos.
Mas também virou alvo de organizações sociais e artistas como o Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças e o movimento cultural Boca do Lixo, que instalou aqui uma biblioteca popular que tem mais de seis mil títulos. Também participaram da ocupação progressiva do Nascedouro pela arte várias bandas e grupos percussivos, além do Balé Afro Majê Molê, que passaram a realizar ensaios e eventos no local.
Hoje o Nascedouro é um complexo que agrega diversas atividades e interage diretamente com o bairro e sua população. E tem estrutura para receber um evento como o Cena Peixinhos, que aconteceu neste último domingo (12), tendo a banda Nação Zumbi como atração principal.
No início da tarde, a Orquestra de Frevo A Nona, acompanhada de passistas, abriu a programação, seguida pelo Bloco Lírico Cordas e Retalhos, lembrando a proximidade com o carnaval. Na programação que aconteceu no lado externo, ainda se apresentaram o Grupo Ação Peixinhos, o Maracatu Nação Porto Rico, o Balé Afro Raízes, o Afoxé Oya Alaxé e o Balé Afro Majê Molê. Além da sonoridade única e característica das raízes da musicalidade pernambucana, os grupos ofereceram também um belo espetáculo visual.
Às 17h40, abriu-se o portão para o galpão e a banda Soul Raízes começou a programação do palco interno, ao qual só tinha acesso quem havia conseguido pegar uma pulseira de identificação um pouco antes do evento. Em seguida, a Maktub subiu ao palco. O grupo está finalizando seu disco “Algemas de Algodão”, em que gravaram uma versão do poema “Nascedouro”, de Oriosvaldo de Almeida, que “batiza” o local com seus versos: “Esta terra banhada em sangue de animais, suor de homens,/ não será mais matadouro/ posto que doravante será o Nascedouro da Cultura Popular".
Oriosvaldo fez questão de estar no Cena Peixinhos. Ele e a companheira Sônia de Almeida têm uma longa história de ações pelo crescimento cultural e social de Peixinhos: “É uma emoção grande ver o Nascedouro como está. Sinto que o poema está se realizando e sou um poeta realizado por isso hoje”, afirma o poeta e professor.
A terceira a se apresentar foi a banda RDA, veterana dos palcos e a mais pesada da noite, fez um show pra cima e agradou muito. O público ficou querendo mais quando a banda terminou sua apresentação, que foi seguida pela Etnia. Outra veterana dos palcos, a banda ensaia no Nascedouro desde sua “fundação” e tocou no palco em que concebeu seu segundo disco.
Antes de subir no palco, o vocalista Fekinho avisou: “Vamos apresentar muitas coisas novas: músicas novas, caras novas e até um jeito novo da banda tocar.” E realmente quem conhece o grupo pode ter se surpreendido com a nova atuação de Canhoto, que tocava a guitarra (e, antes ainda, caixa) ter surgido ao lado de Fekinho como vocalista, além de tocaro teclado e samplers. “A gente estreou hoje esse novo formato”, diz Canhoto, “E foi em casa”. Ele ressalta a parceria com o Centro Tecnológico de Cultura Digital, que oferece diferentes cursos de capacitação no Nascedouro e dispõe do estúdio Peixe Sonoro para as bandas locais.
Os shows vieram num crescendo, assim como o público. A próxima a se apresentar foi a Combo X, que aproveitou a ocasião para lançar um single com duas músicas: São Benedito e Rua do Condor. O show contou com a participação de Bactéria (ex-Mundo Livre e atualmente com Otto), que produz o disco a ser lançado pelo grupo e pelo guitarrista Djalma, do Casona Estúdio, onde a Combo gravou.
Gilmar Bola 8, mentor da Combo e integrante fundador da Nação Zumbi, tem sua história muito ligada ao Nascedouro e é parte integrante da ocupação que transformou o lugar. “É uma pena boa parte do público só vir nos grandes eventos”, afirma. O produtor Edilton Energia corrobora: “é importante saber que Peixinhos é um projeto de ação permanente”. Agora mais encorpada, a banda incorporou guitarras, baixo, teclado e metais na sua sonoridade, originalmente toda percussiva.
À essa altura, o galpão já estava completamente cheio e foi criada espontaneamente uma roda de B’boys dançando ao som do Dj Gordoxzz, que discotecou entre as bandas. O mestre de cerimônia do evento Roger de Renor no palco, aproveitava para ressaltar a importância do complexo cultural de Peixinhos: “O Nascedouro é muito mais que uma ocupação cultural, é uma ocupação política”, disse.
Logo após a Combo X, subiu ao palco a banda de reggae Capim Santo, que energizou o público que ansiava pela apresentação da atração principal da noite, a Nação Zumbi com sua cadência e letras fortes. Houve quem viesse de longe para o Cena Peixinhos. O analista de informática Pedro Soares e o estudante de arquitetura Daniel Cavalcante saíram de Barra de Jangada, sul da Região Metropolitana e distante cerca de 30 Km do Nascedouro. Eles ainda não tinham vindo ao Nascedouro e afirmaram que o show de Nação Zumbi foi a oportunidade certa.
A expectativa acabou quando Roger subiu ao palco para anunciar a Nação Zumbi, que entrou tocando Mormaço. A música foi cantada em coro pelo público presente no galpão do Nascedouro. O público cantou praticamente todas as músicas, dançou, pulou e respondeu aos chamados do guitarrista Lúcio Maia quando ele interagia ao microfone.
O Nação fez um show mesclando músicas de vários discos e saciou a vontade dos que estavam ali para assistir seu show, com direito a volta para um bis gigante – que começou com Coco Dub (Afrociberdelia) e terminou com Da Lama ao Caos, que foi emendada de improviso com Umbabarauma, versão de Jorge Ben Jor. Sendo um domingo e tendo o show do Nação começado apenas às 23h30, parte do público não ficou até o final, o que não diminuiu a animação de quem aguentou até 1h30 da manhã. “Melhor, impossível”, afirmou Jorge du Peixe, vocalista da Nação Zumbi, ao falar da reação do público presente no Nascedouro.
Todas as bandas que se apresentaram no festival realmente fazem parte da cena musical de Peixinhos e pode-se dizer que a Nação não foge à regra: “Não tem como não associar a banda ao bairro”, afirmou du Peixe, “alguns integrantes são daqui e muito do que aconteceu saiu de Peixinhos”. O convite para a apresentação partiu do próprio integrante Gilmar Bola 8. “A banda toda veio na intenção de chacoalhar Peixinhos e evidenciar a importância que tem o Nascedouro”, resume Jorge du Peixe.
Transcorrido com tranquilidade, o Cena Peixinhos teve poucos problemas durante sua realização e a sensação geral foi de um domingo cultural e divertido. Também se valorização e reconhecimento de artistas e músicos da região que há muito fazem seu trabalho em prol da arte e de melhores condições sociais.
A única decisão pouco acertada da produção foi a distribuição de pulseiras antes do evento para permitir o acesso ao galpão onde ocorreram os shows. A tentativa de controlar uma lotação exagerada acabou gerando um comércio paralelo: apesar de distribuídas gratuitamente pela produção, as pulseiras estavam sendo vendidas na frente do Nascedouro por até dez Reais a quem não pôde ir mais cedo garantir a sua. E, um pouco antes da apresentação da Nação Zumbi, o acesso foi liberado a todos, inutilizando a identificação e evidenciando a não necessidade de se distribuir pulseiras antecipadamente.
Mas não houve nenhum tumulto ou acontecimento que estragasse a festa. O Cena Peixinhos foi um sucesso e deve se firmar como festival. Myrian Brasileiro, da prefeitura do Recife e uma das idealizadoras do Cena Peixinhos, ressalta que, nesta segunda edição “A produção é toda independente, feita pelas pessoas do Nascedouro de Peixinhos”. A prefeitura do Recife patrocinou o evento, que também teve apoio da Prefeitura de Olinda e do Governo do Estado.
O evento contou com uma boa estrutura de palco e som, o que faz muita diferença, ainda que muitos do público não prestem atenção a esses detalhes técnicos. Para a produtora Myriam, “A tendência do Cena Peixinhos é crescer muito mais”.
Participações fizeram a diferença
A noite foi de interações e convidados, repetindo o formato da primeira edição do Cena Peixinhos e que deve virar marca registrada nas próximas edições. O percussionista Marcaxé, acostumado a excursionar pelo país, participou das apresentações de Maktub e Etnia: “Pra mim está sendo maravilhoso participar porque estou em casa, moro ali na rua de trás”, afirmou, entre uma participação e outra.
O forrozeiro Josildo Sá também foi convidado e participou das apresentações da Soul Raízes e RDA. Outro convidado foi Toca Ogan, percussionista da Nação Zumbi, outro “local” de Peixinhos. Ele cantou Ogan di Belê, parceria dele com Bola 8 com a Combo X.
Único “estrangeiro” entre os convidados, o rapper Emicida foi muito aguardado e festejado quando também participou da apresentação da Combo: “Sou fã da música do Recife, então pra mim foi muito bom o convite”, disse o paulista antes de entrar no palco para cantar duas de suas músicas com o acompanhamento diferenciado da banda. O público respondeu, e muitos cantaram junto. Emicida faz também uma participação no disco da Combo, que está em fase de finalização.
Confira as imagens do Cena Peixinhos: