Membro fundador de uma das mais importantes bandas brasileiras, ele tem uma longa história de agitação cultural no seu bairro, que ajudou a transformar em uma referência cultural de Pernambuco. De fala tranquila, Gilmar Bolla 8 é um dos responsáveis pela química sonora que explodiu no cenário pop dos anos 90 com a Nação Zumbi, capitaneada pelo icônico Chico Science. É dele a responsabilidade da percussão que, mesclada com elementos do rock e do hip hop, transformou o cenário musical do Brasil.
Sua história inclui a criação e participação em grupos como Lamento Negro e Daruê Malungo, mas Gilmar ainda tem mais a oferecer à cena musical: há quatro anos, criou a banda Combo Percussivo, renomeada de Combo X em homenagem a um integrante morto. Com apoio do Funcultura, conseguiu gravar um disco com o grupo,m que já se apresentou em festivais locais e no projeto Prata da casa, realizado pelo Sesc de São Paulo.
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Em conversa com o Leiajá, Gilmar Bolla 8 fala sobre a criação do seu novo projeto musical, os desafios de viabilizá-lo, o novo disco da Nação Zumbi, o abandono do Nascedouro de Peixinhos e a atual situação da gestão pública da cultura no Estado.
Quando você sentiu a necessidade de tocar outro projeto e cria o Combo X?
Quando os shows da Nação Zumbi começaram a diminuir, porque alguns integrantes começaram a dar mais atenção a outros projetos, como o projeto com Seu Jorge com Lúcio e Pupillo, o Almaz. Aí eu tive mais tempo em Peixinhos pra fazer um trabalho de percussão com a garotada. Eu sempre fiz isso com o Lamento Negro, com o Daruê Malungo. Em 2009, formei o grupo de percussão Combo Percussivo com a garotada do bairro de Peixinhos. Era uma coisa de propagação, eles aprendiam percussão para ensinar em outros lugares. A gente passava o ano todo ensaiando e eu já tinha umas demos que eu fazia de música eletrônica com as letras que hoje estão no disco do Combo. Nesta época uma amiga, Altamiza Melo, nos inscreveu no festival Pré-Amp, nem me falou nada. Então eu tive que adequar o grupo a minha demo, com baixo, guitarra e selecionei os que estavam mais aptos a tocar na banda e também chamei André Negão, que é baixista, mas não consegui arrumar guitarrista na ocasião. A gente ficou em terceiro lugar no Pré-Amp, mas a turma gostou muito, ganhamos no voto popular. O próximo passo era gravar um disco.
E como foi a gravação do disco?
Encontrei Bactéria (ex-Mundo Livre S/A, toca atualmente com Otto), falei que queria gravar um disco e estava mesmo precisando de alguém que entenda de harmonia, e ele é tecladista, e é um cara que já conheço já mais de 20 anos na música, então fique bem à vontade pra fazer o disco com ele. Fizemos uma pré-produção que durou mais de um mês no Nascedouro de Peixinhos com ensaios abertos, quando ele viu que a gente estava pronto para entrar em estúdio ele me levou no Casona e gravamos durante uns dois meses. Quando terminamos a gravação, achei o resultado muito bom e eu quis mixar o disco em São Paulo. Então falei com Eduardo BiD, co-produtor do Afrociberdelia e do CSNZ – que é um disco em homenagem a Chico Science. Ele topou na hora. Encontrei Kassin e perguntei se ele toparia mixar uma música também. Como ele é do Rio e o pessoal lá faz muito TV, é mais pop, decidi dar a ele a música Rei Urbano, que foi feita em homenagem a Chico. É uma música que a gente já ia fazer o clipe e que é mais radiofônica. E ficou bem legal, do jeito que a gente queria. Já acabaram as mil cópias do disco, precisamos fazer mais.
É muito difícil viabilizar um projeto musical novo, autoral, mas você já tem uma história longa na música e um peso, uma importância pela sua participação na Nação Zumbi. Fazer parte da Nação é algo que abre portas para o Combo?
Minha experiência com a Nação Zumbi abre portas para estúdios, para saber o que quero na minha música e chegar a um produto final de um disco com um resultado bom. Quando eu falava quem era, as pessoas que trabalham gravando, mixando, abriram as portas para que eu fizesse um trabalho bom. Chamei Kassin, BiD, Buguinha pra mixar o disco, fui ao Casona, que para mim é o melhor estúdio de Pernambuco, com equipamentos de ponta. Mas para a questão de shows é outra história. Nestes 20 anos de Nação Zumbi eu só chegava nos lugares para tocar, então eu não conheço o empresário que compra o show, produtores, então é muito difícil vender o show de uma banda que está começando agora e está no primeiro disco, ainda que a imprensa nacional e até internacional fale bem, as pessoas querem bandas que sejam conhecidas, tenham a música na novela, um clipe bombando. Tipo a Nação quando começou. A gente foi logo para uma gravadora grande que se encarregou de colocar a música no Fantástico, que é um programa nacional, em trilha de novela, e deu um 'bum' com a banda. Com o Combo a gente teve um projeto aprovado pelo Funcultura que já deu um grande empurrão porque permitiu gravar o disco, mas a coisa de fazer shows a gente ainda está engatinhando.
E qual a expectativa para 2014?
A gente não tem uma pessoa que venda o nosso show. Eu conversei com Fabinho Trummer (da banda Eddie), que me falou que ele é quem faz isso. Eles têm 25 anos de banda e ele está à frente. Estou engatinhando ainda neste processo e a gente vai se organizando aos poucos. Agora, para o carnaval, lançamos propostas para o Governo do Estado, as prefeituras do Recife e de Olinda, vamos ver o que vai acontecer. Estamos mandando também propostas para o Sesc de São Paulo, que seguram muito a onda do artista brasileiro.
Muita gente nas redes sociais e na imprensa tem associado o som do Combo como uma ‘verdadeira sonoridade Mangue’, falando até em uma retomada da ‘estética Mangue’, associando este trabalho diretamente ao movimento. Você concorda com isso, o Mangue ainda existe?
O Mangue está muito forte agora na cidade. Quando a gente começou, a vegetação era bem escassa, tinha mais lama que verde no mangue (risos). Hoje a gente vê que o Mangue está bombando. E tudo aquilo que aconteceu naquela época com a música, as artes plásticas, o cinema, a gente chamava de Mangue. Era uma parada de cooperativa. O Manguebit foi a imprensa criou. Chico e Fred falavam de mangue pelo fato da cidade ser um estuário, que deságua no mar e que foi criada no aterro. Era uma coisa mais de protesto mesmo, e batizaram de Mangue. O maracatu já existia, o que a gente foi juntar o pop com o regional. E essa é a música que eu sei fazer, não adianta eu juntar uma garotada e dizer: ‘vamos fazer punk agora’. É melhor pegar uma pitada disso e colocar em cima de uma batida de maracatu, de uma ciranda e transformar essa música regional numa música universal, que se a gente for tocar na Inglaterra as pessoas vão se identificar. Se o povo acha que é Mangue então é Mangue. E a gente é bem mais tropical do que a Tropicália, porque eles copiavam muito o rock’n’roll, aquele rock ‘paz e amor’, os Beatles, os hippies daquela época, e a gente tenta ser bem mais regional, traz os tambores, os batuques, a macumba, o coco. E as pessoas que sempre têm um destaque com arte são as que têm uma pitada regional. Vou citar (o grafiteiro) Derlon, que tem um grafite regional. A gente cresceu vendo aquela textura que ele pegou e passou para as paredes com as latas. A gente tem mais futuro aqui fazendo uma coisa regional com umas pitadas bem modernas.
Você é um fundador de uma das bandas citadas quase unanimemente como das mais importantes das últimas décadas na música brasileira. De dentro, como participante desta movimentação, você pessoalmente também acha que a Nação Zumbi é realmente tão importante na história musical do Brasil?
Eu sinto que sim, porque um artista como Caetano Veloso já chegou pra mim e disse que o Afrociberdelia era o disco de cabeceira dele. Gilberto Gil passou uma tarde com a gente no estúdio falando muito bem da música, do jeito que Chico cantava, que ele já conhecia esses tambores, mas que nunca pensou que alguém poderia dar uma pitada que transformasse isso numa coisa nova, porque o maracatu já existia há 300 anos, e a banda não é uma banda de maracatu, é uma banda que tem influência de maracatu, coco e ciranda. Na época em que a gente começou, eu não tinha uma oficina com o mestre Luiz de França, eu só o via com o maracatu nas festas que eu ia, no pátio de Santa Cruz, quando os cortejos se reuniam para adentrar o Recife. O que eu conhecia era de ver e ouvir, nem eu nem ninguém da percussão do Nação Zumbi participou de nenhuma oficina, a gente cresceu ouvindo. A cooperativa Mangue deu um 'bum' muito grande na nossa cultura de dizer ‘isso aqui é uma sambada, um cavalo-marinho, um maracatu rural, maracatu de nação’, ajudou muito a cultura do Recife.
Você chegou a entrar em contato com produtores mais conhecidos como Gutie (do festival Rec-Beat) e Paulo André (do Abril pro Rock, que foi empresário da Nação Zumbi)? Eles estão sabendo do seu novo trabalho?
Paulo André levou o disco da gente para essas feiras que ele sempre vai na Europa, distribuiu para grandes empresários e produtores. Gutie convidou a gente logo que lançou o disco para fazer o Rec-Beat. Em uma conversa com Paulo André, ele disse que não ia chamar a gente pra tocar no Abril pro Rock porque a gente já tinha tocado no Rec-Beat... A gente fica assim, porque é um disco bom, todo mundo tá elogiando... Em Bruxelas a gente é o primeiro lugar numa rádio de lá – e acho que isso deve ser fruto da distribuição de nosso material que Paulo André fez –, mas tem que parar com essa coisa de ‘tocou em um festival não vai tocar no outro’. Acho que se o produto é bom, as pessoas têm que abrir a porta pra gente tocar aqui mesmo. Como a gente vai se tornar grande nacionalmente se a gente não consegue ser grande na nossa cidade? Os produtores locais têm que abrir mais a cabeça. Jornais de Belo Horizonte falaram bem do nosso disco, O Globo falou bem, a Folha (de São Paulo), a Rolling Stone falou bem. Eu acho que tá na hora de algum produtor pegar a gente também.
Você citou jornais do Sudeste e já morou em São Paulo com a Nação Zumbi, mas hoje mora aqui. É daqui que você está trabalhando com o Combo. Existe um plano de ir ao Sudeste com a banda? Você acha que se o Combo estivesse em São Paulo agora teria menos dificuldade para se infiltrar no mercado?
Se a gente estivesse morando em São Paulo estaria sim tocando mais. Mas eu não tenho vontade de morar em São Paulo, a gente tem que fazer essa ponte São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Recife, Belém, porque os artistas de Salvador moram em Salvador e conseguem ir com as bandas e blocos deles para todos estes lugares do país. A mesma coisa tem que acontecer com o Recife, a gente não tem que ser um retirante. Hoje tem internet, dá pra subir a música e mandar pro mundo todo. Aqui é que a gente tem que fazer, com os produtores daqui, com as rádios daqui, com os governos daqui, com o Sesc daqui... Quando a música da gente ficar grande aqui, o Brasil todo vai aceitar.
E como anda Peixinhos? Você tem uma longa história de agitação cultural no bairro e o Combo é uma continuação disso. A quantas anda o Nascedouro?
Quem tem banda e gosta de música continua fazendo sua música. O nascedouro, na última gestão, ficou deixando a desejar, porque não teve manutenção. Então o cupim tá comendo o palco, o alambrado caiu no meio do campo de futebol, tá largado ali. Mas a vontade de trabalhar com arte e cultura existe com as ONGs que estão lá e dão suporte à meninada. O Nascedouro é uma coisa fantástica, é um lugar que tem um palco imenso, uma sala massa na qual dá pra trabalhar com dança, teatro, música, mas está parado. A gente esbarra até na coisa geográfica de estar na divisa entre Recife e Olinda. A prefeitura de Olinda diz que não tem dinheiro para manter o lugar e a do Recife diz que não tem voto, então não vai gastar dinheiro ali. Enquanto isso, é cupim comendo o palco e ferrugem comendo o alambrado. Teve um retrocesso por causa da política.
Sobre este retrocesso nas políticas públicas de cultura. Como você vê as atuais gestões locais no que diz respeito à cultura?
Parou. Até o SIC municipal do Recife parou. Parou no final da última gestão e foi cancelado agora. Temos uma secretária que não é atual no Recife – e o que funciona é a capital, que tem verba. Temos um diretor de música que não é da cidade (Gilmar se refere a Patrick Torquato, Gerente de Música da Fundação de Cultura Cidade do Recife)... Essas coisas só acontecem no Recife! O cara não é daqui, não gosta da música pernambucana e declara isso em qualquer lugar, que a música daqui não é boa, não é vendável, mas é o diretor de música daqui. Como é que a gente vai viver? A gestão está deixando a desejar. O Recife, nestes anos, cresceu muito por causa da música daqui, com Chico Science, Fred 04, Cannibal (da Devotos), Zé Brown (do Faces do Subúrbio), todas essas pessoas mostrando sua música. Eu conheço muita gente que vem aqui pra ver o que acontece na Zona da Mata, no subúrbio, mas as secretarias de cultura investem muito nessa coisa das bandas do Sul e do Sudeste que já tocam o ano todo e o pessoal de lá está cansado de ver por lá. Aí se paga uma fortuna pra esse povo vir tocar aqui enquanto a gente não consegue passar nos editais de lá. Então não tem nem um intercâmbio, esse povo que toma conta do carnaval pensa nisso. De negociar coisas do tipo ‘a gente vai trazer Carlinhos Brown, mas vai mandar Zé Brown pra Salvador, vamos trazer Marcelo D2, mas vamos mandar o Eddie pro Rio', coisas assim. E a gente sempre pagando uma fortuna pra esse povo vir do Sudeste pra cá, para os melhores palcos, e quando chega a quarta-feira de cinzas a gente vê que nada mudou.
A Nação Zumbi está há sete anos sem lançar disco e foi aprovado em um grande edital para lançá-lo. Como está a produção do novo disco? É verdade que Marisa monte fará uma participação especial?
O disco está sendo finalizado agora, Jorge (Du Peixe) está gravando as vozes. Fomos contemplados neste edital da Natura. A Marisa Monte acho que vai gravar com a gente, ela sempre fala que é uma das melhores bandas do país e que ficou muito feliz de fazer essa turnê com alguns membros da Nação Zumbi. Eu acho que ela tem vontade de sentir a percussão, os tambores tocando, a música dela é mais baixinha, mais conceitual.
Você está envolvido em outros projetos musicais?
Estou com uma paquera com o maestro Ademir Araújo, a gente está no maior sarro (risos). A gente fez uma música homenageando o Maracatu Leão Coroado, que fez 150 anos em dezembro. Talvez a gente participe da abertura do carnaval com ele. Vou recitar a letra:
Vermelho e branco é Leão
Vermelho e branco é Xangô
Vermelho e branco é meu amor
Seu mestre se consagrou
Sua rainha se coroou
Seu baque é ancestral
Sua calunga de cera é tradição do carnaval
Luiz de França perpetuou
Pelas ruas do Recife encantou
Segunda-feira dos Eguns
A cidade fica encantada
Maracatu é religião
Nosso maracatu nação é Leão Coroado