O relógio mal se aproxima das 12h e começam os preparativos para o almoço coletivo. Duas panelas de alumínio são postas em uma fogueira montada de forma improvisada com tijolos na calçada. Os pratos, talheres e vasilhas são limpos por água potável, coletada de um poço com encanamento para a superfície. De um lado, um grupo cuida da limpeza e com baldes e vassouras retira toda sujeira e mau cheiro do ambiente. Do outro, sentados em um batente de concreto, a conversa se guia pela temática da falta de segurança em morar na rua. De repente, uma discussão se inicia. O grupo de amigos, ou a família, como preferem ser chamados, debatem sobre as pessoas que não ajudam na preparação das refeições, pouco fazem pelo lar, e querem comer em primeiro lugar.
A cena, típica de uma comunidade, se passa em um quiosque construído na Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista, e reformado no ano de 2014 pela Empresa de Urbanização do Recife (URB) para servir de posto de policiamento 24 horas da Guarda Municipal e da Polícia Militar. Se por um lado, o local segue abandonado e em desuso pelo poder público, por outro, moradores em situação de rua fazem dele seu novo lar. Nos quiosques desativados, um grupo de doze pessoas dorme, se alimenta, toma banho e zela pelo local com faxinas diárias para espantar as moscas e o mau cheiro, já que fica a margem do rio. As tarefas são divididas igualmente como acontece em outros locais de moradia privada.
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Instalado no Cais da Aurora, em frente à Secretaria de Planejamento e Gestão do estado (Seplag), o quiosque e suas imediações evidenciam a Rua da Aurora de contrastes, da miséria ao luxo. Idealizada e evocada nos antigos versos de Manuel Bandeira, a Aurora tornou-se um pequeno demonstrativo da desigualdade social da capital pernambucana. De um lado é nostálgica, banhada pelos rios Capibaribe e Beberibe. Do outro, foi alcançada pelo fenômeno da especulação imobiliária no centro do Recife. Empreiteiras e construtoras viram na região um polo de moradia pouco explorado pelo mercado e com boas perspectivas de lucro.
Da pista com ares desertos habitada no passado por residências históricas à apariação de arranha-céus como o "Jardins da Aurora" e o "Aurora Trend", o morador de rua Andreu, de 43 anos, acompanhou as mudanças de perto. Vivendo há 17 anos na Rua da Aurora e ocupante do quiosque, Andreu diz que o local era uma pista cheia de mato e agora os prédios se perdem no horizonte. Para ele, as estruturas verticais trazem mais beleza ao que deveria ser, em sua opinião, o cartão postal do Recife.
"Eu acho que deveriam ser feitos mais prédios porque a gente precisa é de moradia. Mas são muitos com tanto e muitos sem nada", diz Andreu, enquanto observa a fachada do Arcos da Aurora Prince, torre de 36 andares localizada em frente ao quiosque, do outro lado da pista. Enquanto explica como veio morar dentro da estrutura desativada da Prefeitura do Recife, o morador relembra que a rotina é difícil, apesar de parecer seguro dentro da estrutura. "Eles já nos expulsaram mais de dez vezes daqui. O pessoal da Guarda Municipal e da Dircon diz que o quiosque não é lugar de moradia. Mas a rua é?, questiona.
Natural de São Paulo e criado nas ruas da 25 de Março, Andreu demonstra ter o espírito de liderança e é o responsável por organizar tudo e delegar funções na moradia temporária. "Cuidamos do local, impedimos roubos aqui e limpamos todos os dias. A gente também é ser humano. Não é pra chegar aqui e nos colocar pra fora dando choque e paulada, como fazem. Vamos voltar porque não somos animais", diz. Um outro morador do local, Manoel Nascimento, de 58 anos, ouve e concorda com a afirmação.
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Há dez anos morando na rua por conta de uma separação inesperada com a ex-esposa, Manoel viveu anos nas ruas paralelas à Avenida Conde da Boa Vista, mas quando descobriu a Aurora viu uma chance de ter mais sossego pela calmaria da região. "Ninguém quer viver na rua. Mas aqui pelo menos, temos energia, água encanada, um bebedouro com água gelada que nos foi doado, um cadeado para nos trancar quando a gente dorme. É o básico, mas traz paz", relata. Ele diz que o o prefeito do Recife, Geraldo Julio, costuma passar pela Aurora e não os cumprimenta nem com um bom dia.
Única mulher do grupo de doze moradores, Dália, de 35 anos, discorda de Manoel e não acha o local seguro e digno de moradia. Enquanto foge da realidade inalando cola de sapateiro em uma garrafa pet de 250 ml, ela lamenta a situação que se encontra. "Não tem conforto, não tem roupa e nem comida. Eu preferia ir para um lugar mais confortável. Todo mundo se ajuda aqui com um real ou dois, a gente compra comida e divide. Mas eu queria ter um cantinho pra morar porque vivem levando meus pertences que já não são muitos", conta.
"Reformas para quem?"
Em janeiro de 2016, a Prefeitura do Recife, por meio da Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), entregou à população a requalificação do Cais da Aurora, que contemplou a melhoria da iluminação, reposição de guarda-corpo, a recuperação de calçadas e o conserto dos equipamentos dispostos ao longo da via, como mobiliários urbanos e equipamentos de lazer. O investimento foi de R$ 2 milhões.
Já no início de 2017, de acordo com a gestão municipal, a Emlurb concluiu mais uma obra de revitalização em uma área de 900 metros quadrados, no Cais da Aurora, anteriormente ocupado por um posto de gasolina. O local foi transformado em mais uma opção de convivência para os frequentadores. Os serviços incluíram a ampliação do passeio, implantação de grama e plantio de novas mudas. O projeto, que custou R$ 78 mil, foi previamente discutido com os moradores da Rua da Aurora.
Para Andreu, as reformas só contemplam a parte física da Aurora, mas não olha para o lado humano de quem vive realmente nela. "Do que adianta, uma Rua da Aurora tão bonita com um monte de morador de rua dormindo pelas praças, pelas calçadas e pelos quiosques porque não têm onde morar?", questiona. Para ele, que ganha dinheiro cuidando dos carros em um estacionamento da via, a esperança é que todos sejam levados para abrigos ou ganhem um auxílio-moradia para recomeçar.
"Eu daria minha palavra que nenhuma de nós voltaria a ocupar esse local público. Eu queria um auxílio, um pedaço de terra. Cabia nós tudinho. Isso não faria diferença no bolso dele. Quero mostrar que a gente também existe e precisamos de ajuda. A sociedade também pode colaborar com nossa situação. Tem muita gente que nos olha com desprezo. Somos gente, é a mensagem que quero deixar", pontua.
Com medo de uma nova represália pelos funcionários da Guarda Municipal, um dos moradores preferiu não se identificar, mas afirmou que apesar morar em um posto policial desativado, a segurança na Aurora aumentou com a presença dos moradores de rua ocupando a estrutura. "Estamos aqui e ficamos acordados praticamente 24 horas. Nossa presença faz a diferença", diz.
Prefeitura garante ativação do posto para Agosto
Procurada pela reportagem do LeiaJa.com para esclarecer como é feito o mapeamento dos moradores em situação de rua no Recife, a Prefeitura informou que monitora os moradores de rua que vivem na Rua da Aurora através do Serviço Especializado em Abordagem Social de Rua (SEAS). De acordo a gestão municipal, a Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude, Política sobre Drogas e Direitos Humanos "mapeia as pessoas em situação de rua em toda a cidade e trabalha com a sensibilização e orientação, visando o resgate da cidadania e a retirada consensual dessas pessoas das ruas", conforme informações oficiais da nota de resposta.
Apesar da constatação do LeiaJa.com de que mais de doze moradores vivem no quiosque e afirmam não receber propostas de encaminhamentos para abrigos para saírem do local, a Prefeitura do Recife informou que apenas quatro pessoas vivem na Rua da Aurora. Dessas, três solicitaram acolhimento e estão aguardando vaga numa das casas de acolhida da gestão. "A quarta pessoa não teve interesse em acolhimento; apenas solicitou atendimento médico do Consultório na Rua. Uma quinta retornou para a casa da família".
Por meio de nota, a prefeitura também explicou como é feito o processo de abordagem dessas pessoas que vivem nas ruas. "Sempre que há aceitação, as equipes do SEAS fazem os encaminhamentos para acolhimento, retirada de documentos, acesso à rede de saúde, inclusão em programas e benefícios sociais e tentativa de reintegração com a família".
Questionada sobre o abandono do quiosque da Guarda Municipal da Aurora e sobre seu devido uso, a Secretaria de Segurança Urbana do Recife informou que o mesmo passará por uma requalificação para, em agosto, se tornar um posto fixo da corporação. Sobre o futuro dos doze moradores que vivem no local e fazem dele um lar, a gestão não comentou para onde serão encaminhados e qual planejamento para evitar novas ações de retirada violentas.