Os 65 anos vividos por Raquel Dalzy foram em Vila Esperança, localizada na Zona Norte do Recife. Da casa onde morava com o marido e uma neta, só restam as lembranças e resquícios de demolição. A mesa que sempre esteve presente nos encontros da família, agora, está coberta por um lençol e ocupa um pequeno espaço no terraço da casa alugada de forma emergencial no mesmo local por R$ 700.
Ela e a família precisaram desapropriar a antiga residência. “Todos os dias, tinham oficiais de Justiça na porta da minha casa. Sempre tinha gente lembrando que a gente tinha que sair. Fiquei mal, tive ansiedade. Não conseguia escutar uma sirene de polícia, porque me dava logo dor de barriga”, relembra. [FOTOS] O sonho do imóvel próprio com piscina foi desfeito. “Foram anos para deixar a casa do jeito que a gente queria, mas só precisou de dias para ser destruído”, disse ao LeiaJá.
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Agora, a moradora mais antiga de Vila Esperança assiste a sua história sendo atravessada pelo avanço da Ponte Monteiro-Iputinga. Dona Raquel, como é conhecida na localidade, é uma das moradoras que tem o título de posse, mas isso não a isentou da saída da moradia. A atual residência é menor e alugada em caráter temporário, pois, Dona Raquel aguarda desde setembro a indenização, que será destinada a um novo imóvel.
Para a reportagem, ela desabafa que o valor indenizatório ofertado pela Prefeitura do Recife, através da Autarquia de Urbanização do Recife (URB), é menor do que a antiga moradia valia. “A minha casa foi avaliada em R$ 800 mil, mas só vão me pagar R$ 340 mil. Onde é que eu vou encontrar algo parecido ao que eu tinha com esse valor?”
Dona Raquel em um dos cômodos da casa desocupada. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
As lembranças da casa própria com piscina estão na parede do imóvel alugado. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Givanilda Lopes, de 56 anos, ou Gil, como é conhecida em Vila Esperança, ainda permanece na casa que mora há mais de três décadas, mas com incerteza de até quando permanecerá no local com dois filhos, sendo um pessoa com deficiência, e um sobrinho. “São cinco moradias no mesmo terreno da família. O que eu recebi foi um valor muito baixo, que vai ser dividido com o restante dos familiares. Eu tô (sic) sofrendo para comprar uma moradia, porque eu só encontro lixo (...) Essa questão de Vila mexeu com todo mundo. Eu tô (sic) a base de remédio”, conta à reportagem. Gil relata que todos os dias, havia oficiais de Justiça “na porta de casa”.
“Um chegou [oficial de Justiça] a pedir para a gente sair, esperar o pagamento da indenização fora. Como eu ia (sic) sair, se não tenho onde morar? não tenho renda, não posso morar com o meu filho em qualquer lugar, em qualquer condição. Eu tô na rua, porque não tenho onde morar. Mas, eu vou morrer lutando pela minha casa”, diz enquanto chora.
Gil mostra a documentação referente à negociação com a Prefeitura do Recife/URB. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Em Vila Esperança não há vestígios de Natal ou de festa de Ano Novo. À medida que as casas são demolidas, a ponte avança e tapumes metálicos formam um grande cercado. “A sensação é de prisão. Eu sei que a nossa situação não vai mudar, a gente vai ter que sair. Mas, tudo que a gente está falando serve para outras pessoas que podem passar pela mesma coisa. Já chorei muito, agora, só quero que isso tudo acabe”, desabafa Dona Raquel.
Tapumes metálicos formam uma grande cerca na localidade. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Casa demolida em Vila Esperança. Foto: Elaine Guimarães/LeiaJá
Na Zona Sul do Recife, na Comunidade do Bode, no Pina, Claudia Souza ainda processa o fato de não ter sido contemplada com um apartamento no Conjunto Encanta Moça, que foi entregue na última semana após uma espera de 10 anos. A atual residência de Claudia é um primeiro andar, com dois quartos, sala com dois ambientes e uma varanda, onde se tem uma vista de parte da comunidade em que ela vive desde criança. “Por mim, eu não queria sair. Olha, a minha casa, o tamanho dela. A vista privilegiada”, enfatiza.
A saída de Claudia e família não tem uma data definida, mas está prevista para 2024. Ano em que iniciará uma nova etapa do projeto de urbanização das margens do bairro do Pina. A iniciativa, de acordo com a Prefeitura do Recife, inclui a realocação dos moradores de palafitas para conjuntos habitacionais, criação de Unidades de Beneficiamento de Pescados (UBPs), um Mercado do Peixe, pista de cooper, praça, ciclovia, parque infantil, áreas para piquenique, academia, quiosques e Via Parque.
Sem uma moradia no habitacional e sem o título de posse, restou a Claudia, que depende da atividade marisqueira, o auxílio moradia, que segundo ela, é no valor de R$ 300. “O mínimo de preço que a gente vai encontrar uma casa por aqui vai ser R$ 600, R$ 700. Sair do meu território, onde eu nasci e fui criada, não é uma opção. Eu vivo de catar sururu, marisco…se eu sair daqui, como vou sobreviver?” A Comunidade do Bode é uma das primeiras comunidades pesqueiras do Brasil. Para ela, 2024 já vai iniciar com buscas de uma nova residência que caiba no orçamento da família. “Desde que começou essa história, eu não consigo dormir direito, nem me alimentar bem. São dias e noites só chorando. O Natal, eu passei chorando porque não aguento mais pensar onde eu vou viver, onde vou morar”.
Claudia Souza na sala de casa. Foto: Elaine Guimarães/LeiaJá
Assim como Claudia Souza, Amanda Maria da Silva, de 27 anos, também não foi contemplada com um apartamento no habitacional Encanta Moça. Ao LeiaJá, ela, que é mãe de quatro filhos, conta que por problemas na documentação não pôde ter acesso à nova moradia. Com a informação que receberá uma indenização, mas sem data e valor definidos, Amanda deixará de ter residência própria para custear um aluguel. “É difícil. Você sair do que é seu para pagar aluguel. Mas, enquanto eles não chegarem aqui, eu vou ficar na [minha] casa”.
Amanda, de 27 anos, mora com os quatro filhos e aguarda idenização. Foto: Elaine Guimarães/LeiaJá
Edilene Simão, que também compartilha da mesma angústida de Claudia e Amanda, ressalta à reportagem que, assim como Vila Esperança, a localidade onde mora também é uma Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) do Recife. A lei consolidada há quase 30 anos protege os local por reconhecê-lo como um território popular, com incentivo de promoção de regularização fundiária das moradias.
"A notícia do projeto de requilificação chegou para mim da pior maneira possível", lembra Edilene. "Veio uma equipe com asistente social, geógrafo, bióloga, que disse que a saída dos moradores era por conta do rio e minha mãe tinha acabado de operar os olhos, somos vizinhas. Ela chorou tanto, que teve um derrame no olho e a cirurgia precisou ser remarcada. Aqui, são três casas: uma da minha irmão, outra da minha mãe e a minha. Tenho duas filhas, a vida toda da minha mãe foi aqui, a minha também. A gente se sente humilhado, perdido, porque, em um primeiro momento, é bem desesperador".
Edilene, que é advogada tenta buscar meios para manter o imóvel, não apenas a dela, mas de outros moradores da área. "Eu comecei a provocar o Ministério Púbico e Defensoria Pública". Ao LeiaJá, ela salienta que nunca congitou sair do Pina. "Era algo que nunca pensei, de jeito nenhum. Quando eu trouxe esse assunto para uma das minhas filhas, ela entrou em desespero porque os vínculos dela estão aqui, a história dela está aqui. Ela mora aqui há 11 anos e a história dela está toda aqui". À reportagem, Edilene conta que a casa da mãe possui três quartos e questiona onde é que elas irão encotrar algo semelhante com uma faixa razoável de preço."Para a gente foi uma violência muita grande. A proposta que eles fizeram [prefeitura] foi a pior possível".