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Visto como um período negro, covarde e de torturas, o golpe civil-militar de 1964 não poupou religiosos, líderes ou mesmo representantes da Igreja. O período completa 50 anos de surgimento neste 1° de abril, mas apesar de já ter passado a metade de um século, ainda permanece vivo nas lembranças de vítimas e familiares como um momento de coação.
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Segundo o cientista político Túlio Velho Barreto, a repressão envolveu sequestro, tortura e morte de militantes da esquerda, de democratas e de pessoas muitas vezes sem ligação direta com as organizações políticas. Além disso, muita gente simplesmente desapareceu e até hoje muitas famílias esperam respostas.
“A repressão foi mais violenta nos primeiros dois ou três anos da ditadura e nos anos que se seguiram à edição do AI-5, em dezembro de 1968 até 1977. A repressão atingiu igualmente aqueles que tiveram que fugir ou que foram deportados para o exílio e os que, permanecendo no país, tiveram os seus direitos políticos cassados ou proibidos de trabalhar”, esclareceu o especialista, desmistificando, na sua visão, o período de duração do golpe. “Afirmo que a repressão política perpetrada pelo regime militar, apoiada por importantes setores civis, existiu de 1964 até, pelo menos, o início dos anos 1980, após, portanto, à instituição da Lei da Anistia, que é de 1979”, contou.
Em todo o país homens e mulheres foram vítimas de atos violentos, de agressões físicas e psicológicas e muitos foram levados a morte, sem ao menos terem o direito de ser enterrados. Nessa fase dura da história, não era poupado ninguém que na visão dos repressores ameaçassem a ideologia imposta por eles ou que buscassem erguer uma democracia no Estado, por isso até líderes religiosos, como padres, foram deportados e mortos.
De acordo com Velho Barreto, a maioria dos integrantes das igrejas, de modo geral, mas, sobretudo, da Igreja Católica, em particular, não viam com bons olhos o governo Jango e, de certa forma, apoiaram inicialmente os militares. “Mas, é importante frisar, alguns setores, que se mostrariam mais progressistas, romperam já nos primeiros meses com os militares em função da truculência logo demonstrada. Isso foi se ampliando e, em especial no final do regime civil-militar, as igrejas cumpririam importante papel na resistência democrática para a saída dos militares do poder. De toda forma, os setores mais ligados à Teologia da Libertação, que privilegiava a ação juntos aos setores mais necessitados da população, tiveram logo uma participação importante e, por isso, foram perseguidos”, analisou.
O cientista político também citou a participação favorável de religiosos nos atos militares, no entanto, de forma mais tímida. “Já religiosos mais conservadores chegaram mesmo até a colaborar, direta ou indiretamente, com o regime civil-militar. As opções ideológicas também existiam no interior das igrejas, daí uns terem sido perseguidos e outros, não”, acrescentou.
Uma das vítimas do golpe militar foi o padre italiano Vito Miracapillo, 66 anos. Expulso do Brasil em setembro de 1980 pelos militares da ditadura, ele celebra atualmente missas na Itália - onde mora. Em entrevista ao Portal LeiaJá, o sacerdote avaliou o regime militar com uma afronta à vida. “Qualquer que seja a motivação para um golpe de Estado, toda ditadura é falta de respeito à própria dignidade humana, aos direitos fundamentais da cidadania, ao bem comum e ao futuro do povo”, descreveu.
Para o sacerdote a perseguição sofrida por ele se deu pelo fato de lutar pelos direitos humanos. “Porque eu era contrário aos interesses dela (da ditadura) e trabalhava pelos direitos humanos, trabalhistas e civis do povo”, justificou relembrando ter sido ameaçado “em muitas ocasiões por parte de pessoas e capangas ligados ao poder econômico da Mata Sul”, acrescentou.
Apesar de ser expulso do Brasil, o religioso não demonstrou remorso com os praticantes das injustiças do golpe militar, mas fez um pedido. “Que se convertam antes de enfrentar a justiça de Deus e que colaborem com as autoridades, hoje, para que o povo brasileiro fique a par do que se passou e dos responsáveis morais dos crimes”, ressaltou o padre, desejando paz às famílias das vítimas. “Honra a todas as vitimas da ditadura que lutaram e sonharam com um futuro de paz e de vida digna para o povo e solidariedade fraterna com os familiares delas, certos de que seus queridos estão nas mãos de Deus e um dia poderão reencontrá-los”, almejou.
Apoio da Igreja – Segundo o colaborador da Comissão Nacional da Verdade, Anivaldo Padilha, tanto a Igreja Católica como a Protestante tiveram papéis importantes na época da ditadura, porém incongruentes. “É importante identificar que o papel delas foi muito ambíguo, até mesmo contraditório, mas grande parte das lideranças das igrejas, bispos, cardeais, a própria CNBB e também líderes importantes das igrejas protestantes apoiaram o golpe do Estado e tiveram participação ativa na preparação dos crimes políticos. (...) As igrejas protestantes representavam menos de 5%, mas também conseguiu fazer um pouco de barulho e muitos de seus líderes participaram das campanhas anticomunistas”, pontuou.
Apesar do relato do padre Miracapillo e do caso de padre Henrique (veja mais detalhes abaixo), Padilha explicou que as igrejas só foram contra o golpe em um segundo período. “A partir do momento que a ditadura começou a mostrar a verdade com uma estrutura de repressão e tortura, é que muitas pessoas da Igreja começaram a ser atingidas e começou a ter certa inversão”, acrescentou.
Já o representante da Igreja Católica, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido, relembrou (no vídeo abaixo) as perseguições religiosas no Estado, pontuou a visão da instituição, contou relatos que marcaram a vida dos líderes democráticos como padre Antônio Henrique Pereira e emitiu uma mensagem a todas as vítimas do golpe militar.
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Padre Henrique – Entre todos os casos de torturas e agressões ocorridas durante o golpe militar, um dos que mais chocou o Estado foi a morte do padre Antônio Henrique. Ligado ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, o jovem foi sequestrado, torturado e jogado próximo à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no bairro da Cidade Universitária, no Recife, em 1969. O crime, visto como uma barbárie, tinha como objetivo atacar o arcebispo, religioso desbravador dos direitos humanos e da paz.
De acordo a irmã do sacerdote, Isaíras Pereira, a saudade ainda “bate na porta” e a sensação de todo o sofrimento vivido com a perda do familiar ainda dói. “É lastimável. É realmente um período negro na vida dos brasileiros, mas que eu espero que sirva de lição. Só que as pessoas esquecem tão rápido, porque só quem guarda aquilo é quem foi prejudicado, mas os que foram beneficiados não guardam nada de ruim. Tem gente que teve vantagens financeiras”, desabafa.
Para Pereira, a morte do religioso, à princípio, foi uma grande surpresa. “Quando surgiu mesmo, não acreditávamos, porque se tem uma pessoa da família que tínhamos certeza que não aconteceria nada era ele, porque eu tinha dois irmãos mais velhos que gostavam de namorar muito e fazer uma farrinhas. Mas depois do crime ficamos sabendo de como a igreja tava sendo perseguida (...). Depois soubermos como era a vida dele e de Dom Hélder”, relembrou.
Ela relatou ainda toda a dificuldade da família em busca de provas sobre a morte do religioso, inclusive, a força de vontade da mãe de Antônio Henrique que fez faculdade em direito e se formou com mais de 50 anos de idade com o intuito de desvendar os mistérios do assassinato do filho. Outros relatos contados por Isaíras foram as perseguições sofridas porfamiliares do sacerdote, principalmente os irmãos. É esta perseguição que ainda incomoda a familiar. “Eu acho que a ditadura passou, mas ainda existem pessoas em pontos de comando que ainda estão atrapalhando a vida de pessoas que eles consideram ainda subversivas. Eu tenho uma irmã aqui na universidade que ainda sente esse problema”, disse.
Como o fato tomou ampla proporção, os familiares do padre elaboraram um livro sobre o crime. A obra, que é intitulada de ‘Dissimulações do Regime Militar de 64’ e relata detalhes do assassinato, das perseguições e da luta da família, contou com alguns colaboradores como o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido, e o cientista político, Túlio Velho Barreto. “Todo o episódio envolvendo o sequestro, a tortura e o assassinato do padre Henrique é chocante. A violência utilizada contra alguém absolutamente vulnerável, que andava sozinho e desarmado, apesar das constantes ameaças que sofria em função de seu trabalho social com jovens da periferia e das classes médias, foi covarde e dá bem a noção do que ocorria naqueles anos com quem não se alinhava aos militares e civis no poder”, contextualizou Barreto.
Decepcionada com a morte do irmão, Isaíras Pereira, afirmou não imaginar que o sacerdote fosse assassinato. “Nós não pensávamos nunca que pessoas, brasileiros, fossem capazes de fazer tantas maldades, de mentir (...). O meu irmão ainda estava fazendo o serviço pastoral e eles achavam que era comunista. (...). Quantos jovens estão aí desaparecidos em que os pais não sabem onde estão seus filhos. Viraram bicho a troco de dinheiro e, no final, tudo gira em torno do dinheiro. Existem uns que lutam por ideais, mas esses lutam pelo dinheiro”, cravou Isaíras Pereira.
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