É começo de uma tarde de sábado e um pequeno grupo começa a se formar timidamente em frente a uma das salas de aula do antigo prédio do DEMEC, patrimônio do Núcleo de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito do Recife (FDR), no centro do Recife. Em comum, todos apresentam orientação sexual ou identidade de gênero não normativos, condição que, para alguns deles, torna as salas de aula comuns verdadeiras trincheiras. O professor Henrique*, pronto para oferecer a primeira aula do cursinho pré-vestibular Educar e Transformar, então, se apresenta e conduz sua turma para aquilo pode ser o início de uma nova vida para seus novos alunos e ele próprio.
Aos 34 anos de idade, Henrique já sobreviveu a três-pré infartos, sofreu de obesidade mórbida e venceu inúmeras crises de ansiedade. Entre as causas de tantas enfermidades, somam-se as exigências da carreira de analista de sistemas à transexualidade, com a qual passou a conviver com mais clareza desde o ano de 2013. “Foi quando passei a me entender como indivíduo transgênero, ao entrar na faculdade de design. Estou desistindo de doze anos de experiência na área em que estava porque não vejo perspectiva de aceitação e não sei como vou fazer porque todo o meu currículo foi construído nela”, explica.
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O primeiro homem trans a conseguir utilizar o nome social na faculdade, abrindo precedentes para outros que chegaram depois, Henrique vive um paradoxo. Como ainda não se sente à vontade para fazer a transição hormonal ou identificar-se como homem, o analista é a única “mulher” da empresa. “Meu ambiente de trabalho, como a área de tecnologia da informação em geral, é composto por homens extremamente machistas, homofóbicos, transfóbicos e fundamentalistas religiosos. Por isso, vivo lá e fiz minha carreira como mulher”, lamenta. Assim, sair da faculdade significa deixar o único espaço onde Henrique pode ser ele mesmo. “Já estou atrasado um período porque não consigo deixar a segurança de lá. Onde sei que as pessoas vão me cobrar pelo motivo certo: por não ter feito o trabalho, não por não ter deixado meu cabelo crescer”, comenta.
Além de uma área mais aberta à sua identidade de gênero, Henrique pretende encontrar no design a possibilidade de realizar o sonho de se tornar um professor universitário. O problema é de ele sofre de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDH). “Fui alfabetizado em casa, por minha mãe e minha irmã, porque não acompanhava a escola, mas meu diagnóstico só veio aos 30 anos de idade. O lado positivo para o curso é que uma pessoa com dificuldade de aprendizagem vai saber ensinar muito bem ”, conta o professor.
Transexual, Bruno repetiu de ano por sofrer bullying na escola. Agora, ele busca ajuda no cursinho inclusivo. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Aluno e amigo de Henrique, através do qual ficou sabendo do projeto, Bruno*, de 16 anos, repetiu um ano na escola estadual onde está matriculado por causa de depressão consequente do bullying. “Sou o único transexual da escola. Eu ‘gaseava’ aula para não passar por aquilo. Já levei soco no braço, cheguei roxo em casa”, afirma.
De acordo com o aluno e organizador do cursinho, John Barbosa, que se identifica como homossexual, o caso do aluno que procura o curso devido a dificuldade de se integrar às salas de aula comuns é recorrente. “De certa forma, a escola era um local de tensão. Aqui a gente se preocupa realmente em estudar, pode se vestir como gosta, falar do nosso jeito e não ficar com medo de apresentar um trabalho ou tirar uma dúvida porque podem rir”, fala.
Organizador e aluno do projeto, John comemora número de 100 inscritos neste ano. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Inicialmente oferecido na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a história do cursinho começou há pouco menos de dois anos, a partir de um projeto mais amplo oferecido na instituição para estudantes de baixa renda. “Só que algumas alunas transexuais começaram a sofrer ataques, inclusive físicos, nos trajetos de ida e volta das aulas. Foi quando o Coletivo Rua-Juventude Anticapitalista viu a necessidade de se implementar uma iniciativa direcionada ao público LGBT”, explica John. De um universo inicial de 20 alunos, dos quais quatro foram aprovados no vestibular, o Educar e Transformar, passou, neste ano, a contar com 100 estudantes matriculados, graças ao apoio de cerca de 30 monitores e professores voluntários.
“Infelizmente não vai chegar todo mundo. Eu sei que não vai porque, no ano passado, muito conhecido meu se matou porque não aguentou a pressão. Vai cair muita gente, mas só precisamos que um chegue, porque esse ‘um’ vai inspirar muita gente”, lamenta Henrique. Para o professor, contudo, parece improvável a realização do sonho de se tornar um professor universitário. “Porque meu corpo é quebrado demais. Não consigo entender na mesma velocidade do que todo mundo, mas posso ser calço. Então que tudo que é meu, minha história, minha força de trabalho, esteja a serviço de ser ‘calço’”, determina-se.
A periferia que ocupa a sala de aula
Bruno superou situação de vulnerabilidade social, tornou-se professor e agora prepara jovens de baixa renda para o vestibular. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Antes de se tornar o primeiro membro de sua família a ingressar em um curso superior, Breno Antônio da Silva Gonçalves viu amigos internados por dependência química ou mortos no crime. Criado pela mãe junto com mais duas irmãs na comunidade de Barra de Jangada, em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife, ele, sem acesso a uma boa escola, já sonhava com a profissão de professor, a despeito da maioria dos garotos de sua idade, para os quais a única carreira possível era de jogador de futebol. “No ano de 2012, entrei no cursinho ‘Terceiro Milênio’, oferecido pela comunidade acadêmica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) a vestibulandos de baixa renda. Me encantei pelas aulas de biologia”, conta. Motivado pela disciplina, Breno foi aprovado no curso de ciências biológicas da UFPE e, há dois anos, retribui as aulas gratuitas como professor voluntário do mesmo cursinho em que estudou.
“Sei a dificuldade de sair da favela para vir à universidade, quanto custa a passagem de ônibus e o que é passar uma tarde toda só tendo biscoito para comer. Eu quero dar uma aula com a mesma qualidade da que ofereço num colégio particular”, comenta Breno, que já lecionou em colégios privados e agora desenvolve sua dissertação no mestrado em Biologia Vegetal, na UFPE.
Aos 24 anos de idade, Breno mostra completo domínio da turma durante a apresentação do conteúdo. Aos alunos concentrados, associa as temáticas, por vezes distantes, da biologia à realidade deles, no final de cada aula. “Na aula de hoje, por exemplo, trabalhamos vermes e muitos deles caracterizam patologias humanas, como a esquistossomose. Aproveito para ensinar sobre prevenção, comentando sobre o gasto público com o tratamento e os perigos da doença”, explica.
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Se consegue aplicar com competência sua vivência no conteúdo abordado, Breno é ainda mais hábil em absorver a de seus alunos. “Tenho alunos transexuais que apontaram, por exemplo, um comentário meu feito sem má intenção, mas que pode ser interpretado como transfóbico. Parei para refletir e pude me reeducar. O preconceito que sofri sendo negro, só me impulsiona a crescer”, coloca. Para Breno, sua empolgação em sala acaba contagiando os vestibulandos. “Me sinto realizado em sala de aula e é visível o retorno dos meninos comigo. A missão do professor é formar cidadãos, pessoas coerentes, honestas e que façam o bem de verdade. A educação é o veículo contra qualquer tipo de corrupção ou mal estar social”, defende.
Ciclo do bem
Com um total de 120 alunos e 31 professores voluntários, divididos nos turnos da tarde e da noite, o “Terceiro Milênio” surgiu por iniciativa do professor do departamento de física Tomé Ferraz, em 1996, com o objetivo de suprir a histórica defasagem das disciplinas de biologia, química e física no ensino público. De acordo com o estudante de ciências contábeis da UFPE e atual coordenador do projeto, Waldemir Florentino da Silva, histórias de ex-alunos que são aprovados no vestibular e voltam à iniciativa para preparar outros jovens para os exames são comuns. “É um ciclo. Eu mesmo sou ex-aluno, porque não tive condições de pagar um preparatório. O voluntariado é muito gratificante, não tem preço quando alguns estudantes me ligam após a publicação do listão para me agradecer pelo apoio”, comemora.
*Nomes fictícios utilizados para preservar a identidade dos entrevistados