As escolas são a base educacional da sociedade, desde as fases iniciais aos últimos anos do ensino médio. Além dos conteúdos concretos, as instituições de ensino básico também incentivam o pensamento crítico e a reflexão sobre a realidade.
Em alguns momentos, essa reflexão é feita por uma perspectiva religiosa, por meio da disciplina de ensino religioso.
##RECOMENDA##O tema faz parte da grade escolar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como uma matéria facultativa, apesar de estar presente em boa parte das instituições de ensino. A forma de lecionar a disciplina pode ser feita de duas maneiras: através de um viés laico ou focado em uma única crença.
O Brasil, um país majoritariamente religioso e cristão, possui milhares de escolas confessionais, ou seja, aquelas que têm uma religião declarada e desenvolvem seus fundamentos durante suas aulas.
Segundo a Prospecta Educacional, em uma pesquisa de agosto de 2020, o país tem mais de mil unidades escolares que são evangélicas. Já na página de associados da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (ANEC), estão presentes 901 mil escolas e 117 instituições de ensino superior católicas em 900 municípios brasileiros.
Desde 1890, o Brasil é declarado um país laico e tomou a responsabilidade de separar o Estado da religião para garantir que toda fé tenha direito de existir no país. Ao trazer o conceito religioso para dentro de salas de aulas, para crianças em diferentes fases de crescimento, um questionamento pode surgir: qual deve ser a metodologia utilizada?
Ensino religioso na história
Colonizados por um país católico, nativos e escravizados trazidos para o Brasil tiveram que enfrentar uma catequização para apresentar a religião cristã e seus fundamentos. Durante muito tempo na história do Brasil, a religião e o ensino religioso esteveram presentes com um único objetivo: catequizar e proferir ideais de uma religião específica, neste caso, a cristã.
A proposta de Estado Laico surgiu pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), mas foi oficialmente estabelecida na Constituição Federal de 1988 que tornou o ensino religioso uma matéria facultativa nas escolas, ou seja, opcional, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Confessional x interconfessional
O ensino confessional é voltado para os ensinamentos de uma determinada religião, realidade mais presente nas escolas particulares. Já o ensino interconfessional visa passar informações de mais de um grupo religioso, englobando maiores diferenças e crenças em seu ensino.
A LDB vigente até os dias atuais é a de 1997, que proíbe qualquer tentativa de converter estudantes dentro de sala de aula. Ela foi base para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que o ensino religioso aparece como uma área específica do conhecimento, com determinações de ensino e formação.
Hoje, o ensino religioso já é reconhecido como uma das cinco áreas de conhecimento do ensino fundamental de nove anos, segundo a Resolução CNE/CEB n.º 04/2010 e Resolução CNE/CEB n.º 07/2010. A disciplina, em teoria, visa transmitir a variedade de fundamentos e valores de diferentes religiões de maneira interdisciplinar e mais subjetiva que outros conteúdos.
O conteúdo segundo a teoria
A BNCC menciona que o ensino religioso tem um caráter científico e integrante das Ciências Humanas. A sua introdução no ensino fundamental I trabalha a escola como uma instituição social que mexe com a imanência e transcendência do ser humano.
“O ser humano se constrói a partir de um conjunto de relações tecidas em determinado contexto histórico-social, em um movimento ininterrupto de apropriação e produção cultural. Nesse processo, o sujeito se constitui enquanto ser de imanência (dimensão concreta, biológica) e de transcendência (dimensão subjetiva, simbólica)”, cita a BNCC.
Seguindo este pensamento, a criança começa a trabalhar e conhecer as diferentes identidades, o igual e o diferente dele. A unidade temática “Identidades e Alteridades” aparece no primeiro ao terceiro ano do fundamental e procura trabalhar as diferenças de cada pessoa, enquanto se aprende e valoriza cada uma delas.
O entendimento de símbolos, ritos, rituais, tradições, espaços e territórios sagrados é trabalhado na unidade temática “Manifestações religiosas”, no primeiro ao quarto ano e retomado no sétimo ano do fundamental. É aqui que as crenças começam a ser apresentadas com seus símbolos e significados para compreender e respeitar as várias religiões.
As “Crenças religiosas e filosofias de vida” estão presentes do quarto ao nono ano do ensino fundamental e trabalham o mito, a divindade, as doutrinas e a fé. O mito procura dar explicações para o que não se tinha explicação, e nele se encontram as divindades que juntas trabalham as doutrinas e as crenças existentes no país.
“No conjunto das crenças e doutrinas religiosas encontram-se ideias de imortalidade (ancestralidade, reencarnação, ressurreição, transmigração, entre outras), que são norteadoras do sentido da vida dos seus seguidores. Essas informações oferecem aos sujeitos referenciais tanto para a vida terrena quanto para o pós-morte, cuja finalidade é direcionar condutas individuais e sociais, por meio de códigos éticos e morais. Tais códigos, em geral, definem o que é certo ou errado, permitido ou proibido. Esses princípios éticos e morais atuam como balizadores de comportamento, tanto nos ritos como na vida social”, declara o texto da BNCC.
É assim que os alunos são apresentados à filosofia da vida e como se desenvolvem os códigos éticos de um povo, nem sempre presas a uma religião. A BNCC diz que “pessoas sem religião adotam princípios éticos e morais cuja origem decorre de fundamentos racionais, filosóficos, científicos”, que se unem à moral comum daquela sociedade.
Interessados podem conferir e ler a Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino religioso e qual arranjo definido para as unidade temáticas e aprendizados ao longo dos nove anos de ensino fundamental clicando aqui.
O conteúdo colocado na prática
Todo conteúdo definido pela BNCC é apenas um modelo sugerido e não obrigatório. É verdade que o Brasil é um estado laico em que nenhum aluno pode sofrer proselitismo religioso, mas é difícil fugir das descendências históricas. Só no âmbito do catolicismo, existiam 2 mil escolas católicas com cerca de 2 milhões de alunos em 2018, um número que cresce cada vez mais.
A Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE-PE) declara que oferece o ensino religioso nas unidades escolares da Rede Estadual como não confessional e facultativo. Cerca de 83 professores atuam no estado lecionando a disciplina.
A SEE-PE também informou ao LeiaJá que o ensino é “baseado no respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, como determina o art. 33 da LDB. As escolas são orientadas a consultar o responsável pelo estudante menor de idade, no ato de efetivação da matrícula, sobre a opção ou não pelo componente em pauta.”
A maior parte das escolas que vão além do ensino religioso e trabalham com uma educação religiosa declarada são instituições privadas e muito procuradas pelos pais.
A pedagoga Érica Viana entende que o ensino é muito polêmico por causa da diversidade étnica da população brasileira.
“O docente deve ter formação pedagógica assegurada na área de Ciências da Religião. A aula consiste em reflexões sobre os fundamentos e costumes das religiões presentes na sociedade brasileira, além de poder estender a outros territórios como religiões orientais e demais que permeiam o mundo”, defende Érica.
No entanto, a possibilidade de ensino confessional e interconfessional diferencia a abordagem de uma escola com educação religiosa e uma escola ‘laica’.
“A diferença da escola laica é que baseia-se no plano de ensino de uma corrente pedagógica. A escola confessional é uma corrente teológica, embora ambas não devem tratar da conversão de seus alunos. Os conteúdos devem explorar, de maneira interdisciplinar, com atividades de estímulo ao diálogo e respeito, e pontuar a solidariedade, amor, paciência, perdão, honestidade e justiça”, explica a pedagoga.
Érica reforça que, de modo algum, a escola pode utilizar seu papel de ensino para catequizar seus estudantes, mesmo no caso da abordagem confessional. Porém, ainda reconhece a preferência dos pais por colocar os alunos em instituições que sigam suas identidades pessoais.
“Proliferou em bairro, em escolas fundamentais, principalmente o fundamental I, que é até o quinto ano, as escolas confessionais, ou seja, que proferem uma fé. Mas termina sendo algo mais engessado que fere um pouquinho a ideia da BNCC”, afirma Viana.
“A BNCC, no fundamental II, cita o ensino religioso como uma matéria obrigatória, então ela já é mais tênue nesta questão. As escolas são mais abertas porque o Estado comporta esse nível de ensino, então elas são mais reguladas, já é mais organizado, digamos assim”, continua.
Érica finaliza seu pensamento ao citar que a responsabilidade que todas as unidades escolares precisam seguir ao ministrar o ensino religioso para seus jovens. Ir de acordo com o que é definido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e na Base Nacional Comum Curricular é de total importância pois “no mundo globalizado, se faz necessário essa abertura de entender a diversidade dos povos, de suas crenças e de sua fé.”
O ensino religioso como profissão
Wellington José da Silva é professor de ciências humanas e ministra aulas de ensino religioso há mais de 14 anos. Formado em história e pós-graduado em história da religião, o professor de 40 anos é um grande defensor da valorização do ensino religioso nas escolas.
Wellington José da Silva ministra aulas de ensino reliogoso (Foto: Mariana Ramos/LeiaJá)
“As pessoas acabam confundindo o ensino religioso com uma escola dominical, ou como se fosse uma catequese ou um crisma, né? Na verdade, as aulas de ensino religioso não trilham esses caminhos da doutrina dos ensinamentos mais específicos, mais dogmáticos, mais eclesiásticos das instituições religiosas”, relata o docente.
O professor explica que as aulas de ensino religioso são sobre a “análise do sagrado na sociedade” ao longo da história como um fenômeno social que "está presente há tempos, desde o meio paleolítico, em todas as sociedades".
“O sagrado tem uma relação intrínseca com o ser humano. Então quando a gente tá na escola e vai estudar a cultura religiosa, ensino religioso, a gente vai entender essa relação do ser humano com o sagrado na sociedade, como ele se manifesta. O sagrado é uma questão social, é uma questão que envolve uma relação do ser humano com como ele entende sua vida, como entende a pós-morte”, explica o historiador.
Ao LeiaJá, Wellington José deu maiores detalhes sobre o conteúdo que ministra em sala. Do sexto ano ao terceiro ano, o aluno experimenta o conhecimento diverso da história das religiões, seja judaísmo, islamismo, candomblé, umbanda, cristianismo, etc. São passados o surgimento de cada religião, os princípios delas, quem são seus principais líderes, como elas aparecem na sociedade, em que países predominam, entre outras informações.
“Nós vamos sempre por esse contexto histórico, social e filosófico. Nunca por um caminho doutrinário. O Colégio Maria Auxiliadora [escola em que trabalha] é uma instituição confessional, mas nós temos estudantes das mais variadas religiões possíveis, e também aqueles que não têm religião. São famílias bem plurais”, garante o professor.
Além dos valores, Wellington relembra que os conteúdos de ensino religioso também caem no vestibular. No Sistema Seriado de Avaliação (SSA) 1, 2 e 3, da Universidade de Pernambuco (UPE), há questões sobre sistema religioso, matrizes religiosas e cultura afro em Pernambuco. O Exame do Ensino Médio (Enem) também contempla o assunto desde a história antiga, idade média, a reforma e contrarreforma da idade moderna, as revoluções gloriosas.
Para ele, o ensino religioso deve estar presente em todas as escolas, como forma de conhecer e compreender a sociedade brasileira, que está tão envolvida com a religião em toda a sua história. É a partir deste conhecimento que a sociedade pode trabalhar na empatia e no respeito às diferenças culturais e religiosas.
“O ensino religioso vai, sobretudo, conduzir o estudante a entender que a religião dele não é a verdadeira, não é a mais importante, a religião dele não é que vai se sobrepor. Por isso, a disciplina de ensino religioso é muito importante no combate à descriminação religiosa, à intolerância religiosa que é muito forte no Brasil. A disciplina de ensino religioso conduz o estudante a entender que a gente vive uma pluralidade no mundo”, ressalta.
“Educação é um complexo de setores: Ciências Humanas, Linguagens, Ciências da Natureza e Ciências Exatas. A nossa disciplina também compõe um elemento, ela também compõe um currículo do conhecimento. Então, não é uma disciplina que deve ser vista com preconceito, é uma disciplina que tem que ser vista como um conteúdo essencial ao desenvolvimento humano, assim como é sociologia, história e filosofia”, assegura o docente de ensino religioso.
Instituições confessionais
Com 77 anos de casa, o Instituto Profissional Maria Auxiliadora Recife é referência em escola católica em Pernambuco. A unidade faz parte da Rede Salesiana de Escolas que possui mais de 100 unidades educativas espalhadas pelo Brasil, todas com a missão de “educar e evangelizar os jovens”.
O Instituto Profissional Maria Auxiliadora Recife possui cerca de 280 alunos, sendo duas irmãs trabalhando diretamente na casa, além dos 93 funcionários, que estão fora da missão Salesiana cristã mas ajudam na escola e são nomeados como “leigos” pela Rede, que são os professores, coordenadores, colaboradores de vários setores.
A diretora da escola Maria Auxiliadora, Irmã Robelvânia, de 54 anos, explica que o ensino religioso é “primordial na formação da pessoa” e que ele aparece nas salas de aula do instituto assim como em todas as outras escolas, por ser exigido pelo Ministério da Educação.
Além da discplina, também são apresentados diferentes projetos envolvendo a pastoral do colégio, como confissões com padre, catequese e crisma, acolhidas na capela, grupo de jovens, entre outros.
“A pastoral é a alma da nossa escola, é o que dá vida. O ensino religioso é uma disciplina que é apenas a cultura, a cultura religiosa. Mas a pastoral, o restante, é a gente que faz através de projetos. (...) Para sua vida, é esse conjunto: as disciplinas com a pastoral, a gente não pode imaginar uma escola católica, salesiana, sem essa identificação. Aí está nossa força e nossa resposta como missão”, defende a Irmã Francisca Dias, de 82 anos, apoio geral da escola.
Porém, apesar de se colocar como uma escola de ensino religioso confessional católico e com uma ligação direta com a pastoral, o colégio garante que recebe qualquer estudante de braços abertos para qualquer crença.
A instituição salienta, ainda, que há uma variedade de credos entre seus alunos, mas que os pais sempre estão cientes que estão optando por uma escola católica.
“Nós temos uma variedade muito grande aqui de escolhas de opções formativas de vida. Como uma religião, a qual a pessoa escolhe. Então, nós não excluímos, jamais. Quando o pai procura a escola ele já vem ciente que aqui é uma escola católica e que a gente tem uma missão específica, mas que não fazemos discriminação nestas questões. Há um respeito muito grande às crenças e aos valores de outras famílias de outros tipos de crença, mas respeitam também a escolha que eles fizeram enquanto escola [católica]”, declara a diretora.
A Rede Salesiana possui mais de 100 unidades educativas e mais de 60 mil alunos. Estes números significativos apontam uma intensa procura dos pais por essa educação religiosa. As irmãs fazem parte da escola Maria Auxiliadora Recife acreditam que os responsáveis escolhem por um ensino confessional não só pelas aulas, mas também pelos valores que são ensinados no ambiente escolar.
“É comum os pais procurarem nossas escolas [Salesianas] por causa dos valores que a gente transmite, valores educativos, valores humanos, valores éticos, isso pesa muito também. A gente tem princípios, então isso também é uma busca, além dos valores cristãos”, afirma Irmã Francisca.
“Por isso, trabalhamos tanto os valores. Não adianta a gente pegar um jovem e somente passar conhecimento cognitivamente e ele se sentir a pessoa mais preparada para lidar com o mundo, mas ele ter a consciência que esse mundo passa primeiro por ele. O que a gente traz é formar um bom cristão e um honesto cidadão, que passa pelo viés desses grandes aspectos que são os valores que a gente trabalha quanto escola”, finaliza Irmã Robelvânia.