No início da década de 1840, quando a escravidão estava no auge e D. Pedro II recém-assumira o trono, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) lançou um concurso nacional para que os intelectuais sugerissem a melhor forma de se contar a história do país.
O Brasil tinha se tornado independente só fazia duas décadas, e não havia uma narrativa oficial consolidada. A elite imperial acreditava que uma história heroica e bem contada incutiria nos brasileiros o nacionalismo, um sentimento que ainda não existia e era considerado essencial para a preservação da unidade do novo Estado.
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O vencedor do concurso foi o naturalista alemão Carl von Martius, que conhecia bem o país. Para ele, uma das particularidades da história nacional que deveriam constar dos livros era a mistura racial entre brancos (“o mais poderoso e essencial motor” do Brasil), negros e indígenas (duas “raças inferiores”).
Na dissertação premiada pelo IHGB, escreveu:
“A vontade da Providência predestinou ao Brasil esta mescla. O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica [negra]”.
Segundo Von Martius, aqui não existia racismo:
“Até me inclino a supor que as relações particulares pelas quais o brasileiro permite ao negro influir no desenvolvimento da nacionalidade brasileira designam por si o destino do país, em preferência de outros Estados do novo mundo [América], onde aquelas duas raças inferiores são excluídas do movimento geral”.
De acordo com historiadores contemporâneos, a fórmula preconizada por Von Martius foi tão convincente que de fato se transformou na história oficial do Brasil.
Quem primeiro contestou publicamente a velha versão foi a militância negra, no fim dos anos 1970, aproveitando que a ditadura militar iniciava a abertura política e afrouxava a perseguição aos movimentos sociais.
Uma mudança significativa, contudo, só viria 160 anos após a dissertação de Von Martius. Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no primeiro mandato, assinou uma lei aprovada pelo Congresso Nacional que previu a inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos de todas as escolas públicas e privadas do Brasil (Lei 10.639).
De acordo com o IBGE, pretos e pardos respondem por 56% da população brasileira. O objetivo da lei é valorizar o passado e o presente desse grupo e mostrar que os negros não foram figurantes da história — ao contrário, enfrentando a escravidão e o racismo, tiveram e têm um papel decisivo na construção do Brasil. Em última instância, o que a norma busca é criar uma sociedade sem discriminação racial e mais democrática.
No entanto, a lei, que em janeiro completou 20 anos, ainda não conseguiu cumprir plenamente o seu papel.
De acordo com um levantamento recente dos institutos Geledés (dedicado aos direitos da população negra) e Alana (à proteção da criança), somente 29% das prefeituras (responsáveis pela educação infantil e pelo ensino fundamental) incluem a temática racial de forma satisfatória na grade curricular das escolas municipais.
Das prefeituras, 18% ignoram totalmente a história e a cultura da população negra, enquanto 53% só fazem projetos esporádicos e poucos estruturados.
A coordenadora de educação e pesquisa do Geledés, Suelaine Carneiro, explica que esses 53%, em geral, organizam atividades educativas contra o racismo apenas em novembro, por ocasião do Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro):
— Ao longo dos dez primeiros meses do ano, as escolas não fazem absolutamente nada. Só para dizer que estão cumprindo a lei, organizam no 11º mês algum evento folclórico, como um desfile de moda afro e um festival de culinária africana. A cultura do evento não resolve. Neste país majoritariamente negro, ainda temos uma educação eurocêntrica, que inferioriza as identidades negras. É preciso acabar com esse tipo de educação e promover uma reflexão nas diversas disciplinas escolares. É só a partir da reflexão contínua e aprofundada que conseguimos mudar concepções e comportamentos.
Apesar de a pesquisa ter verificado apenas as redes municipais de ensino, Carneiro acredita que a negligência com o ensino da história e da cultura afro-brasileira se repete nas redes estaduais (em geral, responsáveis pelo ensino médio) e é ainda pior nos colégios particulares:
— Não é porque as escolas particulares têm menos alunos negros que elas não precisam implementar a lei. Pelo contrário. É justamente por muitas delas serem um ambiente de segregação racial que os seus alunos, na maioria brancos, precisam ter uma visão mais ampla da sociedade e compreender que este é um país heterogêneo. O ensino da história e da cultura afro-brasileira não é só para os negros. É também para os brancos, de modo que entendam que são favorecidos pelo processo do racismo, mas não precisam ser coniventes com ele, pois marginaliza uma grande parte da população brasileira.
A mesma pesquisa dos institutos Geledés e Alana indica que, entre os fatores que prejudicam o cumprimento da lei, está a resistência dos professores, dos diretores e das famílias, que entendem a educação antirracista como desnecessária ou até prejudicial aos estudantes. De acordo com estudiosos da questão, o racismo estrutural brasileiro se alimenta da crença disseminada de que ele simplesmente não existe.
As estatísticas oficiais comprovam que ele, sim, existe. Em qualquer aspecto da vida que se considere, os negros estão sempre em desvantagem na comparação com os brancos.
Ser negro no Brasil significa, por exemplo, ser mais pobre, ter menos escolaridade, receber salário menor, ser mais rejeitado pelo mercado de trabalho, ter menos oportunidades de ascensão social, dificilmente chegar aos postos de comando do poder público e da iniciativa privada, ter menos acesso aos serviços de saúde, ser vítima preferencial da violência, ter mais chances de ir para a prisão, morrer mais cedo.
Essas situações são naturalizadas quando se aprende na escola que os africanos e seus descendentes só participaram da história do Brasil como escravizados e todo o resto é silenciado.
Ao contrário do que diz essa narrativa, personagens negros tiveram papel de relevo na história, como o soldado Henrique Dias, a ex-escravizada Luísa Mahin, o advogado Luís Gama, a sambista e mãe de santo Tia Ciata, o marinheiro João Cândido, a deputada estadual Antonieta de Barros, a senadora Laélia de Alcântara e o deputado federal e senador Abdias Nascimento, entre muitos outros.
Em 1983, como deputado, Abdias apresentou um projeto de lei prevendo a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira, mas a ideia nem sequer chegou a ser votada.
Os negros foram protagonistas da própria abolição da escravidão. Segundo historiadores, a Lei Áurea não surgiu da benevolência da princesa Isabel, mas sim da reação dos escravizados, que pressionaram o Império promovendo fugas em massa e até matando os seus senhores, o que deixou o país à beira de uma guerra civil e tornou a lei de 1888 inadiável.
De acordo com Anderson Passos, que é presidente da seccional Bahia da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime-BA) e secretário municipal de Educação de Aratuípe (BA), um dos grupos que hoje resistem à inclusão do ensino da cultura afro-brasileira são os religiosos de determinadas vertentes cristãs:
— Acreditam que levar o conhecimento sobre as religiões de matriz africana aos estudantes é o mesmo que tentar convertê-los. Quando incluímos o tema nas escolas da minha cidade, alguns pais me chamaram de “secretário de Educação do Candomblé”. Isso é uma bobagem. Levar o conhecimento não significa doutrinar. Nas aulas, os professores falam de todas as religiões, desde a egípcia e a grega até o catolicismo e o protestantismo, mas só as de matriz africana despertam reação. Muita gente acredita que essas práticas são ligadas ao demônio, o que gera racismo religioso, perseguição e violência. A ignorância deve ser combatida com educação e informação.
Passos avalia que, além das resistências individuais, contribuem com a pouca presença da educação antirracista nas escolas a falta de financiamento específico e fiscalização.
— O dinheiro é necessário para a capacitação dos professores, a aquisição de material didático, a organização de atividades específicas e a realização de pesquisas e estudos — ele diz.
O presidente da Undime-BA sugere que a obediência à lei sobre a história e a cultura afro-brasileira se transforme num novo componente de cálculo do chamado valor aluno ano resultado (VAAR), verba destinada pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) a cada rede estadual e municipal de ensino.
— Quando a gestão democrática das escolas se transformou numa condicionalidade do VAAR, inúmeras escolas correram para se adaptar e receber mais recursos — lembra.
Quanto à fiscalização por parte do poder público, Passos afirma:
— O que acontece hoje com a rede de educação que não implementa a lei sobre o ensino da história e da cultura afro-brasileira? Absolutamente nada.
Em 2008, uma lei foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula incluindo nos currículos a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura indígena (Lei 11.645). Como a de 2003 vinha sendo ignorada, a nova repetiu a determinação sobre os temas afro-brasileiros.
A partir do ano que vem, os Tribunais de Contas dos estados e dos municípios, que têm o papel de fiscalizar a execução das políticas públicas, serão incentivados a passar a lupa sobre os currículos das escolas e procurar a educação antirracista.
A novidade decorre de uma medida da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), que avalia periodicamente todos os 33 tribunais e decidiu que aqueles que fiscalizarem a presença da história e das culturas afro-brasileira e indígena nas escolas públicas serão mais bem pontuados.
A auditora Fernanda Nunes, da Atricon e do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), afirma que os poucos Tribunais de Contas que fazem hoje esse tipo de fiscalização costumam encontrar uma situação negativa:
— Muitas vezes, o conteúdo está presente nos planos municipais ou estaduais de educação, mas não há a capacitação de professores ou a previsão orçamentária correspondente. Outras vezes, até há a previsão orçamentária, mas ela no fim das contas não é executada. O que se vê hoje é que a educação antirracista é, no geral, apenas uma ficção jurídica.
Nunes lembra que os pareceres dos Tribunais de Contas são enviados para as Assembleias Legislativas e para as Câmaras Municipais, que também podem tomar as medidas necessárias. Ela acrescenta:
— O objetivo principal das fiscalizações dos Tribunais de Contas não será punir as secretarias de Educação, mas, sim, induzi-las a seguir a lei. Esperamos que isso represente um divisor de águas na educação antirracista no Brasil.
O professor Luciano Braga, que dá aula de artes na rede municipal de São Paulo e é coautor do livro História da África e Afro-Brasileira: em busca de nossas origens (Selo Negro Edições), também sugere uma via alternativa à punição:
— Os vestibulares e o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] têm um poder imenso de indução. Eles precisam cobrar conteúdos antirracistas nas questões e nas redações, pois assim as escolas públicas e particulares correrão para se adaptar e passarão a oferecer esses temas aos estudantes.
Nas aulas das crianças pequenas, Braga diz que aborda a questão racial da forma lúdica, pintando em papel as diversas tonalidades de pele, falando sobre os diferentes tipos de cabelo e contando histórias com protagonistas negros:
— A reação das crianças negras é imediata. Elas abrem o sorriso e se sentem orgulhosas de serem quem são. Pequenas ações fazem uma diferença imensa na autoestima delas. E as crianças brancas, por sua vez, passam a entender, respeitar e valorizar a diversidade.
Ele continua:
— Ignorar a história e a cultura do negro é ignorar a história e a cultura de mais da metade da população brasileira e mantê-la numa posição subalterna. O trabalho contra o racismo precisa ser forte especialmente na escola porque é lá que os indivíduos se formam.
Fonte: Agência Senado