De alma cosmopolita e ritmo acelerado, tal qual metrópole encantadoramente caótica que é, Recife completa 485 anos neste sábado (12) - mesmo dia em que sua irmã mais velha, Olinda, faz aniversário. Além de ser a capital do estado de Pernambuco, polo médico, tecnológico e gastronômico do Nordeste, o Recife é, também, um berço de história e cultura que encanta e inspira não só os consumidores, mas, e sobretudo, os fazedores de arte.
Principalmente quando o assunto é da música. A capital pernambucana é praticamente uma cidade que canta e em cada canto de sua região metropolitana é possível encontrar os mais diversos gêneros musicais; seja nas caixinhas de som espalhadas pelas residências, na correnteza das águas dos rios Capibaribe e Beberibe e, sobretudo, no ruge-ruge dos moradores e visitantes que transitam pelo louco comércio do centro da cidade.
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Não à tôa, o Recife foi solo fértil para a criação de importantes movimentos musicais que conquistaram espaço em todo o Brasil e até mesmo fora dele, como o Manguebeat de Chico Science - que transformou a cidade na Manguetown - e o bregafunk, que amplificou a voz e os talentos das periferias recifenses, antes reconhecidas somente pela violência urbana. Tanta efervescência rendeu à capital pernambucana, em 2021, um lugar na Rede de Cidades Criativas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), como cidade da música. O grupo de cooperação internacional conta com 49 cidades de todo o mundo divididas em sete categorias culturais. Além do Recife, apenas uma outra, Salvador (BA), representa a música.
O bregafunk e o passinho são expressões tipicamente recifenses. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagensArquivo
Foi nesse ambiente repleto de diferentes ritmos e expressões culturais que a pernambucana Uana Mahin se descobriu artista. Recifense, ela transitou por diferentes partes da região metropolitana da cidade, durante a infância e a adolescência, até chegar em sua atual morada: o bairro de Casa Amarela, na Zona Norte. Antes disso, uma longa temporada como moradora da Várzea - lugar tão mergulhado em atividades musicais que, inclusive, detém seus próprios festivais, como o Festival de Inverno da Várzea (FIV) -, acabou contribuindo para sua incursão no mundo das artes e da cultura popular.
Uana começou a carreira artística em 2011 como atriz, percussionista e backing vocal. Já cantou com grandes nomes da cultura pernambucana, como Maciel Salú e Adiel Luna, e integrou o Afoxé Oyá Tokolê Owó, do Ilê Asè Agajú Okoloyá, o Terreiro de Mãe Amara. Além disso, fez parte do grupo Sagaranna, com o qual viajou em turnês pela Europa. Desde 2016, a cantora decidiu apostar numa carreira solo.
Uana se inspira no som que vem das ruas do Recife para produzir a sua própria música. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Em entrevista ao LeiaJá, a artista assume que a cidade do Recife tem influência direta em sua escolha de trabalhar com arte. Sobretudo neste momento em que transiciona da cultura tradicional para outro segmento popular: o bregafunk. O bairro de Casa Amarela, onde mora atualmente, tem total participação nesse novo momento de sua carreira. "Essa minha pesquisa surgiu muito quando eu vim morar aqui. Eu moro no centro comercial do bairro e fico tentando entender todos os movimentos: da galera que dança aqui no posto; aprendi a cantar os bregas, aprendi a dançar - eu já tinha uma relação muito forte com a dança, mas comecei a entender o brega de outra maneira e morando aqui nao tem como, você pode até não gostar, mas a gente ouve o tempo todo. Minha relação com a música mudou muito e sinto que isso tem a ver com essas regiões da cidade”.
As regiões dos quais Uana fala, os altos e morros localizados na periferia do Grande Recife, de fato são um celeiro dos movimentos brega e bregafunk. De lá, saem alguns dos maiores artistas desses dois segmentos, não só cantores e bandas como também os grupos de dança do famoso 'passinho'. Todo esse universo tem inspirado a artista a compor, produzir e a entender não só essa música que vem de fora mas, também, aquela que vem sendo produzida por ela. ”O brega é uma coisa muito potente, cheia de possibilidde: o brega romantico, o brega safado… Recife é uma cidade que atravessa completamente os artistas, nunca lutei contra isso, sempre quis aproveitar de fato o que a cidade oferece, entender o que os produtores de Casa Amarela fazem”. Em tempo, o brega foi intitulado Patrimônio Cultural Imaterial da Cidade do Recife em 2021.
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Transitando por esse meio, a cantora vem conseguindo agregar um novo público sem perder aquele que já a acompanhava. Segundo ela, essa integração vem fluindo de forma natural e só enriquece tanto o seu fazer artístico quanto os próprios segmentos dos quais se vale. “Principalmente desse lugar da cultura popular, que tem muitos intelectuais interessados, achei que teria uma resistência dessas pessoas entenderem essa minha migração para uma coisa mais pop e também de assumir o brega. Um dos últimos shows que vi no Coquetel Molotov foi do MC Tróia, e o festival tem esse público alternativo e não tem um distanciamento grande, às vezes é um distanciamento de classe social, mas eu pessoa preta, nascida na periferia, crescida na classe média que tive acesso a escolas de classe média, eu vejo que é uma fronteira muito menor do que a gente imagina. Quando a gente vai a festas de classe média, a gente vê as pessoas dançando bregafunk. O brega é muito potente, mesmo com tudo indo contra ele , você vê que as pessoas do brega são organizadas, existe uma indústria e ele se popularizou de maneira que a gente não sente mais essa fronteira”.
No Recife, músicos de expressão como Reginaldo Rossi e Chico Science foram eternizados em estátuas. Foto: Arthur Souza/LeiaJáImagensArquivo
Da mesma forma, a cantora revela que foi muito bem acolhida no meio do bregafunk e que além de estar aprendendo muito com seus maiores expoentes, como Shevchenko e Rayssa Dias, por exemplo, sente que os caminhos sempre estiveram abertos para que ela pudesse desenvolver seu trabalho sem o menor problema. “Eu vejo que por eu ter vindo desse lugar (da cultura popular), eu já tinha um trabalho para mostrar. Eu transito mas eu não sou desse lugar, eu não disputo esse espaço. Eles são macacos velhos da indústria, eles sabem que eu não quero disputar aquele lugar. Para eles, principalmente as mulheres, é muito mais difícil se colocar no mercado, conseguir compor, boa parte das mulheres do brega estão cantando músicas que os homens escreveram e nada contra a ‘safadeza’, mas que a mulher valide aquilo. Vejo que nesse lugar eu tenho alguma facilidade, mesmo sendo mulher e preta, vejo que tenho um outro respeito".
Para Uana, dificuldade mesmo parece ser, apenas, pensar sobre os limites geográficos. É comum ver artistas locais trocando de CEP para conseguirem viabilizar seus trabalhos. O destino mais procurado costuma ser a cidade de São Paulo, um dos polos que fazem o país girar.
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A cantora recifense também vislumbra esse futuro, no entanto, assegura que ele está, ainda, um pouco distante. “Tô com esse desejo de me demorar um pouco aqui, até pra conseguir pesquisar e ouvir melhor as coisas, só quem tá aqui consegue ouvir algumas coisas, principalmente nesse lugar do brega. Mas, infelizmente, chega um momento que você não consegue mais circular aqui na cidade. Desde novembro tenho circulado e já toquei em boa parte das casas pequenas daqui, então jaja vai ficar um pouco limitado. Esse ano vou fazer shows importantes mas é difícil negociar um cachê justo, então se você quer crescer infelizmente você precisa ir pra lá. Do meu desejo quero continuar aqui porque eu amo, mas chega um momento que satura, a gente quer voar e não consegue”.
Enquanto esse momento não chega, Uana continua desenvolvendo sua pesquisa e seu trabalho no Recife, a cidade que vem lhe ajudando e inspirando nesse processo criativo. A cantora acaba de lançar um novo single, ‘Sonhei com você’, o primeiro de um EP que chegará em abril, chamado ‘Vidro Fumê’ (ela deu esse ‘spoiler’ especialmente para essa entrevista). Além disso, um álbum também está nos planos para 2022 e, claro, "bastante show”.