Em cartaz no Teatro do Desassossego, na Cidade Velha, o espetáculo teatral "Fale com estranho" tem como inspiração o conto “O homem da areia”, escrito por E.T.A Hoffmann. A produção apresenta o "Infamiliar", conceito criado pelo pai da Psicanálise, Sigmund Freud, em uma experiência sensorial e reflexiva aos espectadores. A direção é da atriz, pesquisadora e professora Andréa Flores, com dramaturgia e atuação do multiartista Leoci Medeiros.
Utilizando a metodologia do teatro ao alcance, a peça mistura elementos de suspense e terror, que contrastam com a realidade de traumas e inseguranças na qual se encontra o personagem principal, interpretado pelo multiartista paraense Leoci Medeiros. “O Natanael é um menino que sofre um trauma de infância e esse trauma vai com ele até a vida adulta. Então, ele cresce traumatizado, praticamente sem alma, e cresce mal”, contou o intérprete.
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Segundo Leoci, a resposta do público tem sido positiva. “Nós fizemos alguns ensaios abertos para psicólogos, psicanalistas, e eles ficaram apaixonados pelo espetáculo. O público de uma forma geral fica encantado com o espetáculo, com o espaço, com a atmosfera, e a gente consegue mostrar pra eles a trilha sonora, a sonoplastia, a técnica em volta”, comemorou.
A produção é uma realização da Coletivas Xoxós, com direção cênica da atriz, pesquisadora e professora Andréa Flores, e o suporte de uma equipe composta por grandes nomes do cenário cultural de Belém, como a artista-pesquisadora Wlad Lima. O público que vai até o Teatro do Desassossego, que fica no porão da Casa Cuíra, vivencia uma experiência diferente e transformadora.
Andréa Flores explica que o espetáculo foi construído de forma colaborativa e de troca entre a direção e toda a equipe, em um processo de aprendizado mútuo, para levar o público a uma imersão no inconsciente. “O ‘Fale com Estranho’, assim como as poéticas do Coletivo e o que nós fazemos aqui dentro, não somos nós que estamos inventando, é um tipo de teatro que essa cidade pulsa. É um lugar de horizontalidade importantíssimo porque é um aprendizado pra vida e eu vivi muito disso aqui”, destacou.
Quem vai assistir à peça pode esperar um diálogo interessante e poético. Com um convite de olhar para a singularidade que habita em cada ser humano, a montagem carrega um pouco da estranheza que todo mundo encontra em si mesmo.
“O meu trabalho com o Léo caminhou pela construção de uma dramaturgia corporal. Então, nós temos uma dramaturgia textual que ele propõe, que a gente vai interferindo junto, mas o texto é um detalhe, porque ele precisa de um corpo que construa sentidos para além do de texto ”, explicou Andréa.
A diretora falou ainda dos desafios enfrentados durante a pandemia de covid-19, que causou tristeza e insegurança, mas que, ao mesmo tempo, apontou a arte como forma de acalento e esperança. “Nós tivemos muitas perdas no grupo, eu perdi minha mãe, todos nós vivemos as baixas e no meio disso tudo a gente continuou insistindo em fazer isso. Por que o espetáculo era muito importante? Não, porque o teatro é importante, senão eu ia morrer e a gente não ia aguentar. E esse é o lugar do estranho”, finalizou.
O teatro nos porões
O Teatro do Desassossego, espaço alternativo localizado no porão da Casa Cuíra, no centro histórico de Belém, é mais um dos teatros instalados nos porões da capital, que desde os anos 90 já serviram como palco de grandes obras. O recinto é residência de grupos independentes como o Coletivas Xoxós, fundado no ano de 2014 e protagonizado por mulheres.
Uma das precursoras do teatro de porão é a artista-pesquisadora-professora Wlad Lima, uma das mais importantes teatrólogas do Pará. Segundo ela, a existência de locais como esse é fundamental para a sobrevivência do fazer artístico. “São espaços de sobrevivência, de luta e de resistência, mas são também espaços de experimentações cênicas, de experimentações artísticas políticas, poéticas políticas”, pontuou.
Além da dramaturgia, o espaço contribui para a realização de diferentes tipos de manifestações artísticas e desenvolvimento de trabalhos afins, como a Clínica do Sensível, que desempenha um trabalho clínico psíquico junto aos artistas, e o grupo Brutos Desenhadores. “Nós somos cinco desenhadores que formamos os Brutos Desenhadores, nos reunimos terça-feira à tarde, desenhamos e cuidamos clinicamente um do outro. A gente conversa, discute, bate boca, fala das dores, chora, lê os desenhos um do outro e escrevemos texto a partir do desenho”, ressaltou Wlad.
Artistas independentes
Face à rotina agitada que é a realidade da maioria dos paraenses, o artista, em diversas situações, é desrespeitado e precisa lidar com o preconceito por exercer um trabalho diferente do convencional. Não é raro encontrar artistas que precisam conciliar outras fontes de renda além da arte para sobreviver.
Leoci Medeiros conta que, apesar de prazerosa, a rotina de quem vive da arte é envolta de dificuldades. “Para fazer teatro você precisa abdicar de muita coisa, não é fácil, é muito profundo, é difícil se manter nessa profissão. Hoje, eu faço teatro, cinema, dublagem, preparação de elenco, milhares de coisas pra poder me sustentar”, refletiu.
Ainda segundo Leoci, para os atores nortistas as dificuldades são ainda maiores. “Se você não está no eixo Rio-São Paulo, praticamente não existe. Então, nós temos que gritar mais forte, fazer mais coisas para sermos percebidos e com esses gritos dizer: nós existimos e sabemos fazer um teatro de qualidade”, acrescentou ele.
Além da falta de incentivos por meio de políticas públicas de valorização do trabalho artístico, no seio familiar também não é fácil encontrar logo no início o apoio necessário para seguir em busca do sonho de viver da arte. Ao longo do tempo, esses fatores podem desestimular profissionais a abandonarem a carreira, por isso a importância de conhecer, estimular e fomentar a cena cultural de uma cidade tão rica quanto Belém do Pará.
Serviço
Espetáculo teatral “Fale com Estranho”.
Data: 22 de junho (quarta-feira).
Local: Teatro do Desassossego (Rua Dr. Malcher, 287 – Cidade Velha).
Horário: 20h.
Ingressos: Clique aqui.
Redes sociais: @teatrododesassossego