Crianças são público cativo da brincadeira que surgiu junto com a comunidade. (Chico Peixoto/LeiaJá Imagens e Arthur Souza/LeiaJá Imagens)
##RECOMENDA##Contra todos os impeditivos, o mar é democrático em sua soberania. Ignorando todas as barreiras humanas e naturais impostas, ele avança rumo aos arranha-céus da luxuosa Boa Viagem da mesma maneira que desafia as pedras de contenção da praia do Buraco da Véia, em Brasília Teimosa, na Zona Sul do Recife. Para os residentes da comunidade, contudo, a maré alta é sinônimo de diversão. Diante do inevitável futuro marinho de todo litoral, mulheres, meninos e velhos enfileiram-se à barreira e aceitam de bom grado o sobressalto da água que lhes trará uma peculiar sensação de cachoeira. A curiosa brincadeira, não se sabe desde quando, é chamada pelos moradores de “Banho de Choque” e, segundo relatam os mais mais velhos, acompanha Brasília Teimosa desde os primórdios de sua ocupação urbana, mesmo antes da tomada da costa do Recife pelos tubarões na década de 1970, que impossibilitou o banho em mar aberto.
Em sua infalível memória, o aposentado Antônio Manuel da Silva, de 90 anos, guarda a lembrança do dia em que pisou pela primeira vez em seu lar. “Dezoito de maio de 1958. Eu morava na Rua Carneiro Pessoa, no Pina, quando começou a invasão aqui. Meu irmão veio e construiu uma casa para mim”, conta. Caracterizada por uma contínua linha de recifes paralela à costa, a região estava destinada a receber a edificação do Parque de Inflamáveis, que nunca foi construída. As ruas da então ocupação de Areal Novo eram basicamente o resultado da inconsistente mistura entre areia fofa, palha de coqueiro e restos de cascas de marisco.
“Primeiro, começaram a fazer aquelas casinhas ‘arrodeadas’ de papelão, depois as pessoas compraram madeira. Com o tempo, saímos da tábua, para a alvenaria. Mas começamos foi na luta: a gente construía de manhã, de noite a polícia vinha e derrubava, por isso demos o nome de Brasília Teimosa, porque foi construída na teima”, orgulha-se. Já àquela época, Antônio, relata ter presenciado os moradores se divertindo com os “banhos de choque”. “Aqui era uma ilha, cheia de pescadores. Quando o governo quis mudar o nome do bairro para Brasília Formosa, a gente disse: ‘não, deixa Teimosa mesmo’”, conta.
Morador de Brasília Teimosa há 60 anos, Antonio Manuel da Silva lembra de uma comunidade repleta de pescadores e conta que banho de choque sempre fez parte da rotina do local. (Chico Peixoto/LeiaJáImagens)
Com o primeiro nome em homenagem à capital federal, também construída na década de 1950, Brasília Teimosa só teve as palafitas removidas da beira-mar no ano de 2003, durante o governo Lula (PT), que realocou seus antigos moradores para pelo menos novas 504 residências. Com nova orla e avenida, o Bairro enfim se urbanizou e a praia do Buraco da Véia passou a receber moradores de outras comunidades do Recife. “Boa Viagem gosto não. O Pina já é mais agitado, mas aqui é mais familiar. Venho faz tempo, relaxar e tomar um banho de choque”, diz o lavador de veículos Ronaldo Delmiro, conhecido como “Batata”, que vai, de bicicleta, da comunidade dos Coelhos ao Buraco da Véia.
Embora possa parecer imprevisível, o movimento das ondas propícias a desencadear o “choque” parece ter sido desvendado pelos moradores da comunidade. “Quando a gente vê logo de longe ela mais alta, é porque é mais perigosa. Eu acho que desde os quatro, cinco anos tomo esse banho praticamente todo dia”, conta a estudante Tâmara Patrícia dos Santos, de 13 anos, que saiu da escola direto para a praia, acompanhada das amigas. A garota relata que os finais de semana e feriados costumam ser de praia lotada, com espaço disputado entre os banhistas por um lugar para receber as pancadas do mar. “Já é uma tradição. Quando fui morar em Piedade só vivia aqui. Desde pequena apegada, aí é difícil sair”, confessa Tâmara.
De acordo com o tio da garota, o produtor audiovisual Dilson Rodrigues, conhecido como “Madrone”, as ondas, em sua época de menino, costumavam ser mais fortes. “As ondas estão mais fracas desde que colocaram mais pedras na arrebentação. Era onda que batia e carregava a gente dois, três metros para a frente. Isso aqui é patrimônio da Brasília”, comenta. De acordo com ele, até hoje é possível reconhecer os melhores dias para o banho de choque. “Em dias de maré alta, quem mora numa casa um pouco mais alta consegue escutar e ver quando a onda bate no paredão. As coisas aqui mudaram muito, quando eu era criança a praia era cheia de palafitas. Agora, temos essa orla bonita, cheia de quadras, e os meninos têm outras opções de lazer, se não estariam todos aqui”, acrescenta.
Quem é a velha do Buraco da Véia?
Ai de quem disser o contrário. Em mais de uma ocasião, a reportagem foi corrigida pelos moradores de Brasília Teimosa: “não é velha, é véia”, cravam. Natural da comunidade, Dilson conta que está produzindo um filme sobre as lendas do bairro. “Uma delas é a de que o Iate (Clube do Recife) fez um muro e ninguém tinha acesso à praia. Aí uma senhora muito corajosa fez um buraco no muro e vinha tomar banho aqui. Dizem que a origem do nome do Buraco da Véia é por conta disso”, conta. A professora aposentada Maria Valença, conhecida como Celeste, de 63 anos, frisa que a tese da população é mais do que uma lenda. “Tudo era praia, inclusive a parte da qual o Iate Clube se apossou dizendo que havia comprado. Sempre ouvimos que as terras não eram nossas, mas da Marinha. Então como eles podem ter comprado? Antes a gente tinha todo o espaço da orla, de uma ponta a outra, até o Pina”, lamenta.
"Isso aqui é patrimônio da Brasília", diz o morador Dilson Rodrigues. (Rafael Bandeira/leiaJá Imagens)
Celeste afirma ter testemunhado a existência de um muro construído pelo Iate Clube. “Queriam fechar a entrada da Rua Badejo (uma das principais do bairro) e o Buraco da Véia como uma praia particular. Só que a população, na época em que Brasília Teimosa era Brasília Teimosa, um bairro aguerrido e politizado, derrubou o muro, que ainda ficou um bom tempo de pé. Tiraram todo e qualquer vestígio do muro”, garante. Como o mar, a população, majoritariamente descendente de pescadores e egressos do êxodo rural dos anos 1950, avançou contra a especulação imobiliária. “A gente brigava por transporte, água, moradia, pela questão do lixo...O teatro estava na rua conscientizando a população dos problemas e os moradores se articulavam em associações”, lembra Celeste, que assistiu à transformação de sua excepcional Brasília em uma das poucas comunidades brasileiras a ter elaborado o próprio projeto de urbanização, batizado de “Teimosinho” e executado com recursos do Banco Nacional de Habitação (BNH).
Celeste celebra conquista da urbanização da orla da comunidade por parte dos moradores. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Tratamento de choque
Celeste garante que, no passado, era comum que médicos prescrevessem aos moradores da comunidade o banho de choque como medida terapêutica. “Eles aconselhavam, a quem sofria de questões nervosas, tomar o banho de choque, porque ele funcionaria como uma massagem. Muita gente, cedinho, acordava para vir se encostar no paredão”, conta. De acordo com ela, no entanto, não se sabe quem criou o termo “banho de choque” ou ainda quem inventou a brincadeira. “Acredito que a palavra ‘choque’ se deve ao impacto, à surpresa. É a sabedoria popular, alguém foi ,encostou, gostou e passou pro outro. E hoje, se não é trazido pelos mais velhos, hoje, os que chegam aqui em Brasília descobrem o prazer de tomar esse banho”, conclui.