Para aqueles que acham difícil acreditar na capacidade da música clássica de despertar paixões, talvez tenha sido surpreendente o cartaz que, durante a apresentação do tenor Plácido Domingo na noite de sexta, no Rio, foi levantado por um grupo de fãs: "Plácido, nós te amamos muito!!!". E o que há para não amar? Aos 73 anos, com cinco décadas de carreira nas costas, ele cantou como tenor, como barítono, regeu a Orquestra Sinfônica Brasileira. E, com um carisma difícil de igualar, comandou um programa que o levou de árias de ópera ao universo popular - caminho que, é justo dizer, nem sempre esteve longe dos limites do bom gosto musical.
A primeira parte do programa, apresentado na HSBC Arena - um ginásio esportivo utilizado normalmente para shows - foi a mais bem comportada, dedicada quase que exclusivamente à ópera. De cara, dois agrados ao público brasileiro. Domingo foi o primeiro a subir ao palco e, à frente da Sinfônica Brasileira, regeu a famosa abertura de O Guarani, de Carlos Gomes - ópera que ele interpretou e gravou, como cantor, nos anos 1990, na Alemanha e nos Estados Unidos; e, em seguida, a soprano espanhola Ana Maria Martínez interpretou a Ária das Bachianas Brasileiras n. 5, de Heitor Villa-Lobos, com regência do maestro Jesus Rodríguez e o naipe de violoncelos da OSB liderado por David Chew.
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Domingo começou a carreira como barítono, mas logo passou ao registro de tenor, com o qual construiu sua fama. Nos últimos anos, porém, tem colocado em seu repertório papéis escritos para vozes graves - e, no Rio, interpretou trechos de três deles: as árias Nemico della Patria, da ópera Andrea Chenier, e Eri Tu, de Um Baile de Máscaras, e o dueto Mira Dacerbe Lacrime, de Il Trovatore. Houve tempo ainda para o pianista chinês Lang Lang, com regência de Eugene Kohn, interpretar o último movimento do Concerto para Piano e Orquestra n.2, de Rachmaninoff.
A segunda parte começou com Domingo mais uma vez no palco, cantando The Impossible Dream, do musical Man of La Mancha. Bastaram os primeiros acordes para que o público, pouco empolgado na primeira parte, suspirasse de felicidade. "Ah, isso é lindo demais!", exclamou uma senhora quando, na sequência, pôde-se ouvir a introdução de Tonight, de West Side Story. E ela deu sorte. "Besame mucho! Besame mucho!!!!" - foi só pedir que logo os acordes iniciais do bolero se fizeram ouvir pela arena. "Se tivesse Granada seria perfeito". E não é que teve? Assim como teve I Could Have Danced All Night, trechos de zarzuelas (operetas espanholas) e o dueto Lippen Schweigen, da Viúva Alegre, de Franz Lehár. Domingo então apresentou a surpresa que vinha anunciando nos últimos dias - a presença da cantora Paula Fernandes, com quem fez dueto em Garota de Ipanema e Cidade Maravilhosa - com direito à participação da orquestra e jeitos e trejeitos de Lang Lang no acompanhamento (o pi
anista também solou, à frente da orquestra, Tico Tico no Fubá, em versão que gravou para o disco oficial da Copa do Mundo do Brasil).
Apresentações como a de sexta-feira, na esteira do sucesso obtido pelos Três Tenores em seus concertos na véspera das finais das copas do Mundo de 1990, 1994 e 1998, costumam ser interpretadas de maneiras distintas. Seriam uma celebração da música - de todas as músicas -, por meio do talento de grandes ícones da música clássica, distantes de um pedestal no qual costumam ser colocados no cotidiano? Ou espetáculos em espaços inadequados, com orquestra e artistas geralmente mal microfonados, transformados em cantores de churrascaria - e visivelmente desconfortáveis em um repertório que não conhecem bem o suficiente?
Talvez um pouco dos dois. O sucesso de concertos como esse dependem, afinal, do carisma dos artistas envolvidos, da construção de espetáculos capazes de envolver o público em uma proposta artística muitas vezes questionável. E, acima de tudo, da percepção de que, em uma arena esportiva, qualidade musical é tão importante quanto a chance rara de ver sobre o palco artistas que, normalmente, conhecemos apenas por gravações. No fundo, o concerto é uma celebração do espaço que Domingo conquistou no cenário cultural do ocidente - e de sua capacidade de, ao repetir uma fórmula antiga, manter a ilusão de estar constantemente se renovando.
Nesse sentido, exigir o desempenho rico em filigranas e detalhes interpretativos que se espera em uma sala de concertos é não apenas injusto como desnecessário, um exercício inútil. Da mesma forma, porém, programar um arranjo para piano e orquestra da trilha do filme Super Homem que, aos poucos, se transforma na Aquarela do Brasil também é desafiar o mais aberto e livre de preconceitos dos corações musicais.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.