O cara está sempre atrasado. Aliás, o Brasil está atrasado. A propósito, a impontualidade é paixão ou mania nacional? É cul-tu-ral, responderão os sábios. Cultural é a vovozinha! No mínimo, é falta de educação e desrespeito às pessoas. Voltarei ao tema das “causas”.
Mais urgente é alertar as vítimas da impontualidade para o verbete que o impontual, o atrasado (usarei sem distinção) lançam mão para justificar a completa falta de compromisso com o horário:
1. Foi o trânsito. Mentirinha cansada de guerra, eventualmente salva pela “guerra dos protestos”. O caos na mobilidade urbana afeta nervos, produtividade geral de uma nação, polui, esculhamba tudo, mata gente (esta semana, por duas vezes, ia sendo atropelado por motos velozes e furiosas transitando pela calçada. Atenção nobres autoridades, costumo andar a pé!) e compromete os negócios. Basta dizer que um amigo, empresário organizado, sério, trabalhador, me mostrou uma conta impressionante: somou as horas que passa no trânsito e o resultado foi o equivalente a um mês entalando e entalado nas ruas. O jeito é sair mais cedo de casa. Aliás, cada dia mais cedo, menos sono, menos qualidade de vida. O que não é correto é chegar atrasado.
2. Já, já ou logo... Significa nunca porque quando o impontual chega ao compromisso, a reunião acabou.
3. Um minutinho... Uma eternidade. Senta, amigo, e espera porque não se trata de sessenta segundos.
4. Entrego no máximo... A lambança já estava feita. Trata-se de uma prorrogação sempre prorrogável.
5. Sem falta...Irmã gêmea da anterior. Mas muito usada quando a espera não é mais suportável.
6. Veja bem... A espera chegou ao limite. Faz parte do dialeto de concessionária, de oficinas autorizadas e similares, diante do consumidor a um passo do Procon. Segue o “veja bem” a desculpa esfarrapada. Não se deixe vencer pelo cansaço. Vá à luta. Justiça neles e boca no trombone.
7. Verbos no gerúndio... Muito comum na gestão pública. Muito usado pelo burocrata perverso. Engana o chefe, o contribuinte, a sociedade. Fazendo, concluindo, andando é o disfarce da preguiça, do descompromisso e da promessa de campanha indo (gerúndio) para o vinagre.
Leitoras e leitores (exigência do insuportável politicamente correto que traz saudade do neutro latino), agora vamos explorar as razões da impontualidade.
Trata-se de um traço comum aos países subdesenvolvidos. Em 2003 o Equador criou um programa a “hora equatoriana” para combater a impontualidade. No Peru, o presidente Alan Garcia criou uma campanha, em 2007, “A hora sem demora” por conta dos prejuízos econômicos decorrentes da impontualidade.
De fato, a existência de cidadãos de primeira, segunda, terceira classe e uma multidão de excluídos geram odiosa hierarquia onde a autoridade ou o mais poderoso se sentem donos do outro e do seu tempo. Mais que incivilidade e efeitos da sub-cidadania, é uma resistente herança da obra da escravidão. A única coisa que o sujeito tem é o dia e a noite, ou seja, o tempo. Pois bem a impontualidade coloca o tempo no rol das coisas materiais das quais somos meros e passageiros depositários.
E aí tome chá de cadeira. Fazer-se esperar revela uma idiota, porém, real importância social.
E os eventos? Seminários, palestras, shows, etc... todos têm, convencional e injustificadamente, um “atraso regulamentar” que varia de 15 a 30 minutos. Chegou no horário? Pois bem, será desrespeitado. Casamento? Só há um jeito: o padre (ou o celebrante de qualquer religião) se mandar. Um abuso. E há quem ache que é IN ou CHIQUE. Um registro oportuno: existem nações que olham o impontual como um ladrão do tempo alheio.
Ser pontual não é virtude. É o simples cumprimento de obrigação assumida na hora aprazada. Nada de neurose, nem ansiedade. A pontualidade simplesmente permite o uso do tempo de modo que ele não se torne escasso nem prive as pessoas da liberdade de fazer escolhas. Há tempo para tudo desde que dele se faça bom uso.
E quando alguém, em tom de jocosa censura, indagar a por quê você está saindo muito cedo para um compromisso, responda como o dono de uma bodega na Torre, seu Mané Serapião respondeu à mulher, com o jeitão de matuto, casca grossa por fora e espírito de fineza por dentro: “E eu vou esperar que fique tarde?”
Todo torcedor é chato. Indepedente da idade, uma criança. Crianças, já viu, né?, tirante nossos filhos, são anjinhos, lindas e chatas. Mas sem este personagem o futebol perderia a graça assim como a vida perderia a alegria não fosse o perfume e a beleza da infância.
E é simples explicar: infantilizado, o torcedor xinga, elogia, chora, briga, confraterniza, vai da depressão à euforia em minutos e devota tanto ou mais ódio ao seu rival do que amor ao seu clube de preferência.
Há quem diga que a origem do nome vem dos lenços nervosamente torcidos pelas damas que, muito bem vestidas, frequentavam, na década de trinta, as competições de um esporte importado do Império inglês - o football -, eurocêntrico, branco, elitista, mais tarde, incorporado pela mestiçagem brasileira que transformou a prosa retilínia, construída com régua e compasso, em poesia curvilínia do futebol mulato, feita de estrofes, livres, leves e soltas, como cantam os repentista, pois, ao final não perdem a rima, da mesma forma que, com a ginga, o meneio do corpo e a magia do pé chegam ao momento sublime do gol. O futebol europeu é prosa; o brasileiro (ainda), poesia. É o que dizia o grande cineasta Pasolini lá pelos idos da década de setenta.
Da origem aos dias atuais, o futebol tornou-se o maior espetáculo da Terra. Com ele, o aparecimento de personagens que, embora tenham sofrido grandes transformações, não perderam características originais. De fato, o futebol artesanal/romântico e o futebol moderno/científico mostraram vários personagens com as características dos tempos históricos de cada um. Dentre eles, porém, o personagem mais fiel às características originais é o torcedor.
Com efeito, a primeira identidade, a do indivíduo-torcedor nasce no espaço local a partir da relação entre o indivíduo e o clube, constituída por razões e emoções explicáveis e inexplicáveis. Projeta-se em círculos concêntricos para o espaço nacional e a global. O sentimento brotou, tudo mais tem razão que a própria razão desconhece.
O torcedor pode ser objeto de um tratado de psicologia eis que no limite mata e morre pelo seu clube; é alimentado pelos laços de solidariedade e pelos conflitos da rivalidade em que o amor pelo clube de preferência se iguala ou ou é suplantado pelo ódio ao adversário.
No conjunto, a identidade coletiva compõe uma horda; vive uma atmosfera tribal que canta, grita e extravasa paixão e agressividade; expressa os mais contrastantes sentimentos: vai da euforia à depressão em segundos; torce e distorce, provocando e sendo provocado pelo contágio que transfere ou recebe das tensões da disputa. Este quadro pode ser observado, de modo mais agudo, em torcidas para quem o futebol é a coisa mais importante de suas vidas e o dia de jogo é dia de um culto a uma verdadeira religião. Infelizmente, colocam em cena a violência desnaturando o mais desprendido dos afetos: ainda que não receba a paga da vitória, o torcedor continua dando sem a contrapatida do receber.
Ainda no conjunto, estão ligados por uma argamassa de grande família, ora resvalando para o espírito guerreiro e clânico que projeta uma auto-imagem megalômana, movida por uma força mítica.
O torcedor tem alma devota e espírito de criança; torce e joga (décimo segundo jogador); aplaude e vaia; idolatra e condena com a mesma intensidade; em todos os casos, o torcedor dá vozes às cores num coro de vozes e canta hinos de louvor à pátria amada eleita pelo coração.
No entanto, é o único caso em que o amor não é cego: é míope ou caolho. O torcedor somente enxerga o que favorece seu time: transforma uma merecida goleada numa virada sensacional, em geral, por culpa do juiz e do famoso "se".
Por isso, Bill Shankly, gerente e técnico do Liverpool entre 1959 e 1974, conclui seu livro com a seguinte frase: “Algumas pessoas pensam que o futebol é tão importante quanto a vida e a morte. Elas estão muito enganadas. Eu asseguro que ele é muito mais sério que isso”.
Por tudo isso, torcer é distorcer.
Ele chega mansamente. Suavemente. Sem zoada. Sem barulho. Silenciosamente. O oposto do que lhe deu grandeza universal.
Ele chega vestido com a túnica majestática da nossa ancestralidade: a pele negra da mama África.
Ele anda na pista circular do Parque da Jaqueira como fazem milhares de pessoas, obedecendo à prescrição da vida saudável em tempos de estresse, sedentarismo e maus hábitos que condenam corpo e alma ao tormento das doenças.
Ele é um ser único. Um fenômeno a desafiar as funções convencionais dos sentidos. Ele escuta com os olhos e vê com os ouvidos.
Caminhando, os pés roçam no chão: a fricção é um som e uma inspiração. O vento bate no rosto: a carícia da brisa é um som e uma inspiração. O sol crepita no lombo: é um som e uma inspiração. A respiração acelera, o coração bate mais rápido, a folhagem das plantas farfalha, os pássaros chilreiam, nele, então, a fusão do olhar e do escutar compreende que a vida é ritmo e som (melodia e harmonia vêm depois); ritmo e som que começam no aconchego da vida uterina com o batuque de dois corações e, no primeiro ato, nascer, o vagido, som inaugural do humano, é um misto de saudade da plenitude e medo do desconhecido.
Menino, as mãos buliçosas catavam caranguejo nos mangues e não deixavam em paz panelas e caçarolas. Tanto bateu que o pai, tocador de manola (violão de quatro cordas) na boate da sede do Bloco Batutas de São José, deu ao garoto de 11 anos um bongô, umas maracás e um afoxé. Mal sabia Pierre, o marido de Petronila, que entregava ao filho um passaporte para que ele ganhasse o mundo. Quase metade da vida, viveu fora do Brasil. Os primeiros passos do imigrante negro e pobre revelaram o talento brasileiríssimo da bendita esperteza quando está em jogo a sobrevivência. Predestinado, ele literalmente ganhou o mundo e mundo enxerga nele um gênio da percussão.
O guitarrista Pat Metheny o chama de Doctor. O percussionista indiano Trilok Gurtu o reverencia como o Paxá. A revista Down Beat, dedicada ao jazz, em oito votações (Grammy, oito premiações), classificou-o como “o melhor percussionista do mundo”. Porém, a referência que melhor define o artista vem do cineasta italiano Bernardo Bertolucci que não admite que o chamem de músico, mas sim de “A Música”.
Quem conhece a trajetória, a obra e assistiu à apresentação de “4 elementos” do autodidata que diz “eu sempre procuro mostrar o potencial visual que existe na música, nos sons”, confirma a singularidade do ser que escuta com os olhos e vê com os ouvidos.
Vai além, dá razão à síntese de Bertolucci que dispensa adjetivos e mata a charada: Juvenal de Holanda Vasconcelos, pernambucano do Recife, é o nome de batismo de Naná Vasconcelos, que dona Petronila encurtou de “Juvenár” e, com a linguagem afetiva de mãe, o manhês, chegou a Naná, uma forma especial de prosódia, ritmo na fala, repetição de sílabas, repleta de eufonia, como se fosse a premonição de um destino que, longe de ninar, é canção de “Nanar”, o batuque/mensagem do despertar.
Homenageado no carnaval passado (2013) e agraciado no grau de Grã-Cruz com a medalha da Ordem do Mérito dos Guararapes pelo governador Eduardo Campos, o comendador Naná mantém sua rotina com autêntica humildade; chega no Parque da Jaqueira, silenciosamente; aos sábados, senta no meio-fio, recusando a oferta da cadeira, mas aceita com muito gosto duas ou três cachacinhas que a turma reparte; com muito senso de humor, olhar plácido, não contém o riso largo quando alguém lembra algumas de suas frases antológicas: “Fama está na cabeça, na cabeça de camarão”, ou, para quem pensa que ele é gay ou bissexual: “Sou casado e nunca dei meu ‘alterador de fava’, mas não tenho nada contra. Adoro meu lado feminino e gosto muito de mulher”.
Em certa medida (e não na medida certa) reconhecido, a verdade é que Pernambuco e o Brasil precisam conhecer Naná. Mais de perto.
“Era uma vez...”. Assim começam os contos de fada ou as histórias de Trancoso (Gonçalo Fernandes Trancoso, escritor português e autor de “Contos e Histórias de Exemplo”, 1575), transmitidas pela tradição oral como uma espécie de distração ou cantigas de ninar em prosa para embalar as crianças.
“Era uma vez...”. Revela também o exercício da imaginação ou um apelo da memória a uma lembrança que nos é tirada pela ação evanescente do passar do tempo.
Cedinho, manhã do dia 28 do corrente mês, ia para a Uninassau participar do V Seminário de Ciência Política, pela Av. Rui Barbosa e, como ocorre habitualmente, me preparei para lançar o olhar enamorado para Estação Ponte D’Uchoa. Isso mesmo, olhar enamorado; olhar carregado de carinho e afeto; olhar com uma ponta de amor carnal entre seres de natureza distinta.
É virtuoso amar a Deus sobre todas as coisas, amar o próximo como a si mesmo e “as coisas” que complementam o primeiro dos Dez Mandamentos. Eu tinha e tenho uma relação amorosa com a Estação Ponte D’Uchoa. Simples explicar: as coisas ganham vida pelo que representam, pelo que significam e pelo que simbolizam. Ali estava o abrigo antigo dos passageiros da maxambomba, o primeiro trem urbano da América do Sul, inaugurado em 5 de janeiro de 1867.
A Estação me contava: “era uma vez, uma cidade que exalava cheiro de frutas tropicais; que relembrava a bravura de heróis libertários em batalhas cruentas ou que recordava foliões libertinos em batalhas de confetes, serpentinas e lança-perfume; que, como dizia Gilberto Freyre, saia das águas como uma Yara; que dava sonoridade ao sincretismo religioso com o repique dos sinos e a batida dos atabaques; que permitia o cidadão arruar, ou seja, “Sentir a cidade. Evocar o seu passado, partilhar o seu presente, sonhar com seu futuro [...] Regalo dos olhos e entendimento dos espíritos”, como escreveu Mário Sette.
No entanto, o meu olhar chocou-se com o vazio. A Estação desapareceu. Emudeceu. Por acaso fora sequestrada pelas assombrações do Recife? Não. Foi esquartejada pelos motores que diariamente rugem em fúria permanente, anunciando a iminência do desastre e que a duração das vidas se mede pelo velocímetro.
Cabe, agora, remediar. Rejuntar com cuidados especiais a vítima de politraumatismo devastador. É possível fazê-la emergir das cinzas? É. As autoridades sabem disso. É obrigação cívica, histórica e legal.
A propósito, a lei municipal 13.957/79, ao implementar, no Recife, o Plano de Preservação dos Sítios Históricos da Região Metropolitana, incorporou os conceitos ampliados de preservação dos bens culturais constantes da Carta de Veneza de 29 de maio de 1964, consolidados pela OEA, na cidade de Quito em 1967, e delegou poderes ao chefe do Executivo municipal para estabelecer Zonas de Preservação (ZP) nelas contidas Zonas de Preservação Rigorosa e Zonas de Preservação Ambiental.
Por outro lado, definiu (Art. 3º) como obras de amparo e proteção preservadora a sítios, conjuntos antigos, ruínas e edifício isolados com real significado para o patrimônio cultural da Cidade do Recife, as obras de conservação, reparação e restauração, sendo esta última, aplicável aos danos sofridos pela Estação Ponte D’Uchoa.
Para fins de registro, a mencionada lei respaldou 31 decretos entre 1980/81 que protegeram como sítios, conjuntos antigos, ruínas e edifícios isolados: Sítio da Trindade, Apipucos, Benfica, Capunga, Poço da Panela, Ponte D’Uchoa, Praça da Várzea, Bairro da Boa Vista, Bairro do Recife, Bairros de Santo Antonio/São José, Arquitetura Cubista da Visconde de Suassuna, Capela dos Aflitos, Casa de Brennand, Casa da Cultura/Estação Central, Casa Grande do Engenho Barbalho, Escola Rural Alberto Torres, Faculdade de Direito, Hospital Dom Pedro II, Hospital de Santo Amaro, Igreja das Fronteiras, Igreja N. S. de Boa Viagem, Igreja N. S. da Conceição – João de Barros, Igreja de Santo Amaro das Salinas/Cemitério dos Ingleses, Mercado de Casa Amarela, Palácio da Soledade, Pavilhão de Óbitos, Sobrado da Madalena, Vila do Hipódromo, Fábrica da Tacaruna, Matadouro de Peixinhos, Arraial Novo do Bom Jesus.
Por fim, devo dizer que confio nas providências das autoridades. Que se restaure a Estação o mais depressa e da melhor forma possível. Não desejo, e sei que nenhum recifense deseja, passar por ali e dizer aos filhos e netos: era uma vez, uma linda Estação Ponte D’Uchoa.
“...corpo que não está e permanece na poesia que a todo canto fortalece o Poeta que na morte se renova”. Toquinho falou e disse.
Aos 67 anos, no esplendor da envelhescência, Vinicius nos deixou e foi aprontar no território da paz celestial. No ritmo alucinante em que viveu, o milênio seria a escala certa para medir sua idade real. O centenário de nascimento, 19 de outubro, apenas, um número redondo.
Poetinha na linguagem afetiva de Antonio Maria e na retórica invejosa dos críticos, Vinicius foi um poetaço. Drummond confessou: “Foi o único de nós que teve vida de poeta”. Ele vive em estado permanente de poesia”. O grande amigo Neruda não fez por menos: “Não tive a coragem de Vinicius. Era o que mais gostaria de ter feito: letras de música. Mas tive medo de que me desprezassem”.
Em outras palavras, Vinicius fez da poesia vida e da vida uma poesia em tudo que a poética tem de compulsão em direção ao belo, de impulso ao redemoinho das emoções, de mergulho nas profundezas abissais da paixão. Sua arte de viver era contraditória, imperfeita, movida pelo risco, animada pelo gosto à transgressão o que lhe apontava inexoravelmente o rumo do acaso e do transitório.
Com poemas declamados e músicas cantadas de cor e salteado, ouso enxergar Vinicius por meio de frases recheadas de verdades interiores e irreverência libertadora.
Vamos a elas:
- “Fui salvo pela mulher”. Revela uma atração irresistível pela mulher. Um tropismo em direção às fêmeas, um ginotropismo, perdoem-me pelo neologismo. Nenhuma surpresa. O mimos femininos acompanharam Vinicius. Mãe, tias, irmãs, filhas, nove casamentos oficiais e amores contingentes, são um eloquente atestado do significado da mulher na vida do poeta. Foi salvo, inclusive, da paixão homossexual que o culto e enrustido Otavio de Faria nutria pelo jovem Vinicius.
- “Sou um labirinto em busca de uma saída”. As renovadas e incontáveis paixões foram saída e prisão de um ser em permanente ebulição.
- “Marília, todas as mulheres do mundo são lindas!”. De porre, em Buenos-Aires, com dor de corno e consolado pela amiga Marília Medalha, faz a exclamação diante de uma mulher muito feia. Paga uma dívida por conta da exaltação poética da beleza feminina.
- “O uísque é o cachorro engarrafado”. Conclusão inevitável cuja premissa maior é que “cachorro é o melhor amigo do homem”.
- “Ser poeta é viver três doses acima”. Não é original, mas na boca de Vinicius é uma conclamação para que as pessoas tirem os pés do chão.
- “Liberdade é poder cagar de portas abertas”. Autoexplicativa, portanto, sem comentários.
- “Você notou que quando ela passa o ar fica mais volátil”. “Ela” viria a ser a Garota de Ipanema.
- “Estou pensando nas suas pernas. Elas ainda são muito bonitas”. Os amigos forçaram a base. Vinicius, puto da vida, foi a uma sessão de psicanálise e a psicanalista intrigada com o silêncio provocou a escuta. Nunca mais Vinicius voltou ao consultório.
- “Eu sou Vinicius de todos os vícios”. Autodefinição incontestável.
- “A tradicional família mineira que vá a puta que pariu”. No coração de Belo Horizonte, teatro lotado, Vinicius atrasado hora e meia, o público protestando, vaiando, quando, Toquinho e os músicos inquietos, Vinicius chega, trôpego, embriagado, dirige-se a banqueta, dá um acorde no violão: silêncio. Ele corta o silêncio com uma frase afrontosa. O público aplaude delirantemente. O ídolo venceu.
- “Sou o branco mais preto do Brasil”; “Pixinguinha é o melhor homem do mundo”. São manifestações do autêntico sincretismo da alma e do ser amorável que era Vinicius. Afirmava que não temia a morte, mas tinha saudade da vida. E a vida morrendo de saudade de Vinicius de Moraes.
O nome Brasil tem origem, segundo o protesto indignado de Frei Vicente do Salvador, na madeira (Pau-Brasil) de “cor abrasada e vermelha que tinge o pano”.
A natureza rebatizou a “Terra de Santa Cruz”. Sua descoberta fora uma empreitada estatal, militar e religiosa que, na época, eram os ventos poderosos que enfunavam as velas das esquadras portuguesas na aventura dos grandes descobrimentos.
Seria a mudança de nome uma vitória da ideologia da natureza exuberante sobre a ideologia religiosa da Ordem de Cristo?
Desconfio que não. A madeira refletia a identidade mercantilista do projeto. O Pau-Brasil tinha valor comercial e mercado.
De fato, dois olhares coexistiam no ato fundador do Brasil: o olhar renascentista que proclamava a visão edênica do paraíso perdido; o olhar mercantilista que movia o projeto colonial de exploração econômica.
Infelizmente, a evolução histórica certificou: o encantamento fora retórico; a ação, predadora.
De lá para cá, o “progresso” foi movido a “ferro e fogo” (título do livro de Warren Dean sobre a devastação da Mata Atlântica). O desbravamento de matas e florestas era a palavra de ordem dos senhores do mundo novo que se descortinava como grande provedor das cortes dissolutas e perdulárias do velho mundo.
Por um dever de justiça, cabe o registro de lúcidas vozes sobre os efeitos danosos da agressão ao patrimônio florestal brasileiro. Entre elas, é importante destacar o pensamento de José Bonifácio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Alberto Torres e o mais recente, assumidamente ecologista avant la lettre, Gilberto Freyre, na fascinante obra sociopoética, Nordeste (1937).
Com efeito, estes visionários não tiveram o gosto de ver as questões antecipadas por suas mentes prodigiosas serem assumidas pela humanidade como uma questão central, estratégica para a sobrevivência da vida na Terra, ratificada pela ampliação da consciência universal dos ecocidadãos e incorporada aos marcos legais e institucionais das gestões públicas e privadas.
De outra parte, não tiveram o desgosto de testemunhar a devastação que vêm sofrendo os nossos ecossistemas, em especial, a cobertura vegetal que metaboliza a energia solar e torna viável a vida no Planeta Terra. No atacado e no varejo.
No atacado, basta olhar o que resta de Mata Atlântica, Floresta Amazônica, Cerrado e Caatinga; no varejo, basta ler a manchete da edição do JC, 02 de fevereiro do corrente ano: “Palmeiras-imperiais são cortadas no Derby”.
Cortadas, não! Foram assassinadas! Um assassinato anunciado e que atingiu seres plantados pelas mãos virtuosas do paisagista Burle Max em 1935. Depois de assassinadas, esquartejadas para servir de lenho seco para brincadeiras juninas ou de carvão para animados churrascos. Outras vão morrer asfixiadas pelo pulmão, intestino, estômago, coração, o corpo de uma cidade de cimento, aço, sujeira, violência e desprezo pelo verde, pela história, pela qualidade de vida e sem dar ouvidos aos cientistas que reafirmam a condenação das palmeiras sobreviventes. Mais grave: as autoridades municipais mentem quando alegam que a causa do óbito fora um fungo. Ainda assim, é obrigação municipal tratar preventiva e curativamente a vegetação urbana.
Tudo por conta do Corredor Leste-Oeste, obra urbana estúpida que faz-de-conta que serve aos usuários dos ônibus e faz-de-conta que alivia a cidade mergulhada no caos da imobilidade e da imundície.
É por essas e outras que, farsantes, Brasil afora, tentam juntar no mesmo saco o que é calamidade natural com calamidade política, matando famílias inteiras e soterrando os sonhos das pessoas. Uma é obra do funcionamento ou cobrança da natureza do que lhe foi tomado; a outra é descaso, irresponsabilidade pública, no caso do Recife, brutalidade prosaica, ao trucidar as palmeiras-imperiais, que, generosas, tudo dão e pedem o mínimo para viver e servir. Mangueiras, jaqueiras, oitizeiros, sapotizeiros, palmeiras, são saudades da refrescante sombra que, outrora, acariciava o cidadão recifense.
No Recife, o refrão tem sido assim: são contribuintes otários pagando a crueis sicários para fazer da vida urbana um funesto obituário.
E no Brasil contemporâneo, faltaria inspiração ao grande Gonçalves Dias para compor “A canção do exílio” com palmeiras, bosques e sabiás. Afinal, sem as palmeiras, o exílio é aqui.
* Este artigo foi publicado no JC. 09/02/11. Torna-se atual. Voltam a massacrar as palmeiras e o verde do Recife. Trata-se de um ecocídio em nome da mentira que é o progresso a qualquer preço.
O segundo volume da biografia de Getúlio, Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo (1930-1945), segue o rigor factual e analítico do primeiro volume.
A diferença consiste no seguinte: no primeiro, Getúlio, em formação, se encaixava nas circunstâncias históricas; no segundo, Getúlio, maduro, assume a centralidade do processo político.
No artigo, O lado escuro de Getulio, o jornalista Otavio Frias filho ressalta que o lado bom se manifestou no líder da revolução de trinta, no campeão dos direitos sociais e no líder nacionalista. O lado ruim se fez presente no chefe da única ditadura pessoal que o Brasil conheceu e o “político inescrupuloso aferrado ao poder”.
Por sua vez, Lira Neto considerou que sua maior dificuldade foi: “sintetizar o grande volume de informações a respeito do intervalo de tempo decorrido entre a posse de Getúlio no Catete e sua derrubada, por meio do golpe de Estado, em 1945”.
Acrescentaria ao “intervalo de tempo”, as grandes transformações que sacudiram o mundo e o Brasil, inclusive II Guerra Mundial onde se confrontaram duas visões de mundo: o modelo totalitário e a democracia liberal.
De outra parte, a brilhante narrativa funde as dimensões política e humana do personagem Getúlio o que permite identificar duas paixões que penetraram, cada uma a seu modo, o temperamento fechado, ensimesmado e, aparentemente, arredio ao apelo das emoções.
As duas paixões foram o poder e uma mulher.
O poder foi paixão e destino. A mulher, o alumbramento.
Do berço oligarca de São Borja até a tragédia do suicídio, Getúlio conviveu com o poder exercendo-o pelo mando direto ou pela influência que, a bem da verdade, ainda se faz presente na história contemporânea com os traços da chamada “era Vargas”.
Líder provinciano, Getúlio foi dando saltos: deputado estadual por três vezes pelo Partido Republicano, deputado federal e líder da bancada, Ministro da Fazenda de Washington Luís a quem ajudou derrubar em 30, Governador do Rio Grande do Sul, com o mandato interrompido para assumir a candidatura de presidente da República pela Aliança Liberal em oposição ao candidato oficial Julio Prestes com o apoio de três Estados (Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais) e o movimento tenentista.
A derrota fermentou a instabilidade política que culminou com a revolução de 30, sepultou a Repúbica Velha e instalou o governo provisório (1930-1934), sequenciado pelo governo constitucional até o golpe de 37, entremeado pela cruenta revolução paulista de 1932.
Ao longo deste período, Getúlio revelou a esperteza do equilibrismo diante de fortes antagonismos. Metade conciliador, metade autoritário, soube aproveitar os fracassos da delirante Intentona comunista de 35 e o patético o “putsch” integralista (11 de maio de 38) para fortalecer a ditadura estadonovista.
Porém, o mais notável malabarismo foi tirar partido da Segunda Guerra Mundial. Entre flertes germanófilos e uma neutralidade conveniente, falou mais alto a pragmatismo getulista. O Brasil foi à guerra; os financiamentos dos EUA turbinaram a siderurgia e os pracinhas da FEB se imolaram pela pátria amada.
Por falar em amada, a segunda paixão de Getúlio foi uma bela e culta mulher, casada com seu oficial de Gabinete, Luis Simões Lopes, chamada Aimée a quem o Presidente tratava de bem-amada.
Neste sentido, O DIÁRIO DE GETÚLIO, publicado em 1995 pela Editora Siciliano e FGV, foi a fonte na qual Getúlio, em tom confessional, registrou no período de 03 de outubro a 30 de abril de 1942, fatos, impressões, lamentos e momentos do clandestino afeto que manteve por mais de dois anos.
O primeiro encontro social foi em 10 de Abril de 1936; em 17 de abril do ano seguinte, Getúlio escreveu: “Uma ocorrência sentimental de transbordante surpresa e alegria”; em 29 do mesmo mês, confessou: “saí à tardinha para um encontro longamente desejado": entre os dia 13 de 15 de outubro do mesmo ano, Getúlio registrou encontros, revelando uma confissão apaixonada: “Após os despachos, fui ao encontro de uma criatura que, de tempos a esta parte, está sendo todo o encanto da minha vida”; em 30 de março e 1938, Getúlio não contém o apelo carnal, em circunstâncias arriscadas: “O encontro se deu em plena floresta, à margem de uma estrada. Para que um homem de minha idade e da minha posição corresse esse risco, seria preciso que um sentimento muito forte o impelisse[...] Regressei feliz e satisfeito, sentindo que ela valia esse risco e até maiores”.
Pela mulher, a paixão foi infinita enquanto durou; o poder, paixão que acompanhou Getúlio do berço ao túmulo; sua existência e suas contradições invocam o poeta romano: "Sou homem: nada do que é humano me é estranho".
O título original era outro: “Escrever e beber sem moderação”. Porém, o sopro de juízo que me resta murmurou nos meus ouvidos: “Cara, teus inimigos gratuitos vão adorar e vai ser um prato, melhor dizendo, um copo cheio para o punhado de teus inimigos com RG e CPF”.
Tudo bem. Concordei com este doce anjinho da guarda. Nem por isto desisti de escrever sobre o livro de autoria Mark Bailey, ilustrado pelo neto caçula de Hemingway, Edward Hemingway, editado pela Zahar, que é um primor estético-literário e narra, com beleza e concisão, a tragédia que marca tão de perto pessoas especialíssimas.
Com pouco mais de 100 páginas, o GUIA DE DRINQUES dos grandes escritores americanos embriaga o leitor com saborosas receitas de coquetéis e frases alforriadas das censuras, mas deixa o mal-estar da ressaca que resulta do binômio escritor-alcoolismo.
O time de escritores e escritoras é da pesada. Ao todo 43, oito mulheres, trinta e cinco homens; cinco ganhadores do Nobel, quinze do prêmio Pulitzer, vários agraciados com National Book AWards, todos imortalizados pela merecida glória.
Começo pelo mais incorreto politicamente (uma preferência pessoal) H.L. Mencken, autor de O Livro dos Insultos, cervejeiro voraz e, por gostar de todas as bebidas, se declarava um onibíbulo (v. Aurélio, bíbulo: aquele que bebe): “Bebo exatamente o quanto quero e um drinque a mais”.
A minha segunda escolha recai, talvez, sobre o mais sofrido (bastante traduzido no Brasil) Charles Bukowski, alemão de nascimento. Atormentado pelo pai e por deformidades no rosto por uma enfermidade de etiologia desconhecida, entregou-se ao álcool e aos livros que produzia desde os quinze anos a partir do profundo mergulho na vida mundana. Aos 73 anos, a leucemia cumpriu o papel que estava reservado à cirrose. Dos porres homéricos, deixou a lição: “Beber é uma forma de suicídio em que a gente pode voltar à vida e começar no dia seguinte”.
Curioso: a atração entre os escritores americanos e a bebida foi alvo da observação de alguns ilustres visitantes do país, entre eles Alexis de Tocqueville e objeto da obra escrita por Ticknor&Fields, 1989, cuja tradução livre é A musa sedenta: álcool e o escritor americano. E a companhia dela foi a sina de cinco ganhadores do Nobel.
O intenso Hemingway, um farrapo humano, suicidou-se aos 61 anos, deu status ao mojito e nos deixou a mensagem: “Um homem não existe até que fique bêbado”; na companhia inseparável do uísque enquanto escrevia, Faulkner foi longe: “A civilização começou com a destilação”; o primeiro americano a ganhar o Nobel de literatura, Sinclair Lewis, tinha uma grande frustração: “De que adianta ganhar o prêmio Nobel se isso não nos permite nem entrar nos bares clandestinos?”; o breakfast de Eugene O´Neil era uísque puro; para John Steinbeck, movido a vinho “Só a luxúria e a gula valem alguma coisa”.
Para não dizer que não falei de flores aqui vai o que disse, completamente bêbada, Edna Millay, a primeira mulher a ganhar o prêmio Pulitzer: “Minha vela queima dos dois lados”; e a grande escritora e pinguça confessa, Dorothy Parker, não deixou por menos: “Gosto de um Martini/dois, no máximo/com três estou debaixo da mesa/com quatro embaixo do anfitrião”
Para os extravagantes Truman Capote “Esta profissão é uma longa caminhada entre um drinque e outro” e Jonh O´Hara “Comecei numa quinta-feira. Sábado já estava sóbrio de tanto beber”.
Por sua vez o misterioso Edgar Allan Poe, fissurado em absinto, terminou tão misteriosamente quanto suas obras. Já Sherwood Anderson morreu por conta de uma infecção causada por um palito que engoliu a bordo de um transatlântico com destino ao Brasil. E para encerrar o doloroso, porém, excêntrico necrológio, cabe lembrar a morte de Tenessee Williams engasgado com a tampa de um frasco de remédio que tentou abrir com os dentes.
Por fim, certo crítico considera o livro tão divertido quanto leviano porque dá uma conotação folclórica ao alcoolismo que deve ser tratado como uma doença, por vezes, fatal. Neste sentido, os autores advertem: “Lembre-se de que alguns coquetéis não fazem de você um bêbado, e de que nenhuma quantidade de bebida pode fazer de você um escritor”.
E como estamos falando sobre a grandeza e a miséria da natureza humana, não custa lembrar Abraham Lincoln: “Aprendi com a experiência que as pessoas que não têm vícios têm muito poucas virtudes”.
Quem leu o livro SOBRE o CÉU e a TERRA não se surpreendeu com as ideias inspiradoras dos discursos do Papa Francisco em sua passagem pelo Brasil.
Com um título inteligentíssimo, este livro, publicado em 2010, tem por conteúdo um diálogo entre o então cardeal Jorge Bergoglio e o rabino Abraham Skorka. É uma obra profunda na reflexão, simples na revelação e verdadeira nas convicções, atributos de fascinante sabedoria.
No livro, são objetos da iluminada conversa 29 temas versando sobre Deus, fundamentalismo, morte, política e poder, ateus, ciência, casamento de pessoas do mesmo sexo, globalização, pobreza, holocausto, etc... A insuficiência deste espaço estimula o conhecimento integral da grandeza deste encontro e a mensagem dele extraída que entrelaça as coisas do céu e da terra. A solução é ler, reler, aprender e apreender a humildade sacerdotal e a compaixão pela dimensão humana que somente os espíritos elevados são capazes de manifestar e exercer no mundo real.
Com insuperáveis limitações, arrisco destacar algumas passagens do livro.
Sobre o diálogo. Skorka: “Dialogar, em seu sentido mais profundo, é aproximar a alma de um à do outro, a fim de revelar e iluminar o seu interior”; Bergoglio: “Dialogar implica uma acolhida cordial e não uma condenação prévia”.
Sobre Deus. Bergoglio: “Como é boa a palavra caminho! Diria que encontramos Deus caminhando, andando, buscando-o e deixando-nos buscar por Ele”; Skorka: “Deus, em meu entender, revela-se a nós de um modo muito sutil”.
Sobre os ateus. Bergoglio: “Não encaro a relação para fazer proselitismo com um ateu, eu o respeito e me mostro como sou [...] conheço mais gente agnóstica do que ateia; o primeiro é mais dubitativo, o segundo está convencido [...] não tenho o direito de julgar a honestidade dessa pessoa”; Skorka: “O primeiro passo é respeitar o próximo [...] a posição mais rica é daquele que duvida [...] o agnóstico pensa que ainda não encontrou a resposta, agora o ateu tem certeza 100% de que Deus não existe. Tem a mesma arrogância de quem garante que Deus existe, tal como existe esta cadeira sobre a qual estou sentado [...] Deus está além de toda lógica e seus paradoxos”.
Sobre a oração. Skorka: “A oração tem que ser um ato de profunda introspecção, cada um deve se encontrar si mesmo e começar a falar com Deus”; Bergoglio: “Orar é um ato de liberdade [...] A oração é falar e escutar”.
Sobre o fundamentalismo. Skorka: “O fundamentalismo é uma atitude: as coisas são de um jeito e não se discute, não podem ser de outro [...] É preciso encontrar o caminho do meio”; Bergoglio: “O sacerdote que se atribui o papel diretivo, como nos grupos fundamentalistas, anula e castra as pessoas na busca de Deus”.
Sobre a eutanásia, ambos concordam no prolongamento da vida, asseguradas a qualidade de vida e a dignidade humana. Sobre os idosos, condenam o conceito de velhos como material descartável aplicado, de um modo geral, aos excluídos da civilização “consumista, hedonista e narcisista”.
Impressiona como ambos, ao tratar de assuntos atuais, explosivamente polêmicos, a exemplo do casamento de pessoas do mesmo sexo, distinguem o religioso do que Bergoglio chama “retrocesso antropológico”, ao mesmo tempo em que reconhece que “Deus deixou em nossas mãos até a liberdade de pecar”. Sobre globalização convergem com a genial comparação feita por Bergoglio “Se concebermos a globalização com uma bola de bilhar, anulam-se as virtudes ricas de cada cultura”.
Saltando capítulos importantes, deixei para o fim o que eles pensam sobre a política e o poder, com ênfase em Bergoglio pelo fato de encarnar, como Papa, um enorme poder e exercer a política. Diz ele: “Somos todos animais políticos [...] A pregação de valores humanos, religiosos, tem uma conotação política gostemos ou não [...] o desprestígio do trabalho político precisa ser revertido, porque a política é a forma mais elevada de caridade social. O amor social se expressa no trabalho político para o bem comum”.
No Brasil, com simplicidade franciscana, o Papa fez uma pregação em 16 primorosos pronunciamentos e, diante dos representantes da sociedade brasileira, aconselhou “diálogo, diálogo, diálogo” na construção da “cultura do encontro”. Sobre a responsabilidade dos que são chamados a enfrentar o futuro, invocou o olhar proposto por Alceu Amoroso Lima: “com os olhos calmos de quem sabe ver a verdade”.
- Vou morrer. Reuni a família e fiz este comunicado sem dramas ou lamúrias. Com surpresa e preocupação, veio a pergunta: - Pai, é doença incurável ou suicídio anunciado?
- Nem uma coisa, nem outra. Vou praticar a “morte técnica”. E explico. Estou saudável; nem quero sair da vida voluntariamente. A vida é, apenas, um intervalo entre o nascimento e morte, mas vale a pena ser vivida. – Então por que esta história de morte técnica? Indagou, assustada, a primogênita.
- Eu não sou eu, nem você é você; nós somos números, códigos, senhas, papéis, certidões, uma miríade de consumidores idiotas e contribuintes assaltados. Aliás, o último dia de abril, fim do prazo para a declaração do imposto de renda deveria se tornar (já que tem dia de tudo) “o Dia Nacional da Tunga”. Tiram da gente e não chega para quem devia. Vai alimentar a canalha corrupta.
- Calma, pai! Ponderou o único varão. – Sosseguem. Estou absolutamente tranqüilo. E tá tudo planejado. A morte técnica é o caminho. Tentei ser um Indivíduo Não-Governamental (ING). Consegui em parte, mas ninguém se livra totalmente deste mal cada vez mais desnecessário, chamado governo, que perde a “Guerra dos Mosquitos”; apanha dos bandidos; mata o doente pobre na fila dos hospitais, então... Tentei ser um “Cidadão Informal”. Impossível. O “Big Brother” não deixa. Câmeras e escutas estão em todo canto para bisbilhotar a vida de gente honesta porque os criminoso impunes estão em toda parte. A burocracia é a indesejável companheira do berço (registro civil) ao túmulo (atestado de óbito). O nosso sistema financeiro é o mais moderno do mundo. Tente, por exemplo, depositar um dinheirinho a mais em espécie. É bronca! Agora, meta a mão em milhões e mande o dinheiro para os paraísos fiscais. Legal! Ah! Os bancos. Um boa tarde, um sorrizinho de atendente bonita, água, minha netinha, para o velho pensionista... Azeite quente das tarifas senhor velho, as mais altas do mundo em concubinato com o logro do empréstimo com desconto em folha, lascando os aposentados e enchendo a burra da banca e dos bacanas que inventaram a arapuca. E por falar em tarifa, um amigo caiu na besteira de deixar 600 reais numa conta bancária inerte (inerte para ele); cinco meses depois estava no vermelho em 70 reais. Mandou cobrir o “saldo devedor”. Tarde demais. Seu limpíssimo nome estava aonde? No SERASA.
- Tudo bem, pai, mas o que é “morte técnica”? Insistiu a impaciência da caçula. – É o seguinte: vou fazer uma viagem de balão tal qual o Padre paranaense (coitado, morreu de leseira). O balão vai desaparecer de mentira. Vocês farão o drama. Mídia, o escambau. Krause está desaparecido e morto (para tristeza dos amigos e alegria dos inimigos). Fato público e notório, vocês conseguem um atestado de óbito. Deixe estar que o balão tem destino certo: uma ilha na Bahia (a Utopia do Século XXI) onde ninguém trabalha. Lá todo mundo se chama Domingos e o grande amigo que vai me acolher por um ano é o Domingão, personagem atualizado de Robinson Crusoé, o Sexta-Feira. Não deixarei débitos; não tenho seguro de vida, sequer a pendência do inventário: o que tem, já está no nome de vocês. Morri. Libertei-me de tudo. Morri tecnicamente; morri para o mundo formal, o mundo da aporrinhação, da maldita burocracia, dos códigos; a minha morte é libertação do ser de papel cujo nome é um número. Ressuscitarei no tricentésimo sexagésimo quinto dia, em carne e osso, e voltarei para vocês.
- Pai, agora você endoidou de vez, disseram os cinco a uma só voz, como se fosse um coro ensaiado; como é que você vai viver? E sobreviver? E o Plano de Saúde? Antes que prolongassem as perguntas do mundo dos “vivos”, entrei de dois pés: - Estarei morto! Meu único documento será o atestado de óbito que, no Brasil, vale mais do que o cadáver. Não esqueçam: estou tecnicamente morto e fisicamente vivo. Carteira de identidade? Estou morto. Plano de Saúde? Preencher formulários? Atestado de óbito na cara do funcionário, perplexo, porém vencido pela força do papel que é muito mais importante do que a pessoa. Fiquem tranqüilos! Vai dar tudo certo.
E deu certo. Um ano depois, passei a viver minha morte técnica. Uma beleza. No começo, surpresas. Um grande jurista pernambucano deu um parecer notável; defendeu brilhantemente a tese da morte técnica; noveleiro, o jurista comparou minha conduta a de Marconi Ferraço, o ex-vilão da novela Duas Caras, recuperado pelo IBOPE. No meu caso, o parecer demonstra que não houve fraude, tampouco a nova vida do “morto técnico” causou, nem causará danos.
Livre. Liberdade absoluta que só a morte proporciona me fez viver o melhor dos mundos: mesadinha garantida pela família para as necessidades básicas; um charutinho de vez em quando; os amigos, contentes; os inimigos, putos da vida; as burocracias, derrotadas. Todos se renderam à realidade do atestado de óbito ao qual anexei o parecer do grande jurista.
Do mundo dos vivos, somente duas coisas continuaram a fazer parte da agradável rotina: o endereço na internet (morto@mortotecnico.com); um trabalho leve para ganhar uns trocados – o de Ghost Writer (fantasma que escreve, sob encomenda, para os outros) – trabalho que já ocupa, hoje, grande parte do meu tempo.
Antes que eu esqueça: trocados sem recibo, afinal de contas estou morto e os mortos não pagam impostos.