Foram quinze anos de pesquisa, troca de experiências e saberes; foram quinze anos de estudos, mobilização de instituições sérias e respeitáveis mestres das ciências sociais para que o trabalho incansável do Professor de Economia do MIT, Daron Acemoglu e do Professor de Administração Pública de Universidade de Harvard, James Robinson, fizesse chegar ao público o livro Porque as nações fracassam. As origens do poder, da prosperidade e da pobreza, editora Elsevier, 2012.
No percurso de 357 páginas, apoiadas em centenas de ensaios, fontes bibliográficas e outro tanto de referências, os autores tratam de um tema antigo, recorrente e que mereceu diversificada construção teórica de Montesquieu, Adam Smith, Max Weber, Jared Diamond, buscando a causalidade da pobreza e da riqueza das nações, ora no clima, na cultura, na geografia e no peso das instituições o que assegurou, em 1993, o prêmio Nobel de economia a Douglass North.
De fato, a complexidade do assunto levou os autores a um impressionante percurso. Visitaram todos os continentes; mergulharam no passado remoto e recente das nações; analisaram contingências, lideranças, evoluções, involuções e revoluções que influenciaram transformações, tudo culminando com uma tese simples.
A tese afirma o seguinte: nações que têm instituições políticas e econômicas inclusivas funcionam e prosperam; as que têm instituições políticas e econômicas extrativistas estão condenadas à pobreza, embora ressalvem que “Nenhum país está condenado a ser pobre para sempre”.
Ao definir o que venham a ser as mencionadas instituições, não hesitam em afirmar o primado da política sobre a economia a despeito da sinergia virtuosa que produzem e se fortalecem numa relação simbiótica.
Inclusivas são Instituições políticas alicerçadas na estabilidade política, na boa qualidade da democracia, da educação e na “destruição criativa” da inovação tecnológica de modo a alimentar e retroalimentar-se de instituições econômicas inclusivas que propiciem ambiente de segurança jurídica, disseminação de oportunidades e incentivos ao empreendedorismo.
Em oposição, as instituições extrativistas beneficiam a concentração de poder na mão de poucos e carregam o vício da “lei férrea das oligarquias” que perpetuam o statu quo apesar das mudanças que se esgotam na troca de aparências.
No esforço de demonstração da tese, a comparação das localidades gêmeas, a Nogale americana e a Nogale mexicana, Coréia do Norte e Coréia do Sul, acrescida do exemplo de Botsuana, permite uma compreensão mais rápida do objetivo da obra. Repito, a tese é simples. Nem por isto, admite uma visão simplista do mundo que é muito mais complicado do que atraentes teorias. Construir ou reformar, manter e solidificar instituições é obra de séculos e legado de gerações. Organismos vivos, as instituições merecem cuidados especiais e permanentes. Sua longevidade depende da força das virtudes cívicas; sua destruição, um estalo de insensatez.
A esta altura, cabe a pergunta: o que o livro e a tese nele contida têm a ver com o Brasil.
Com efeito, os países emergentes, China, Índia e Brasil, não passam em branco no olhar dos autores que se declaram realistas. Constatam. Não fazem profecia. E eis o que dizem sobre o Brasil: “O empoderamento das camadas mais populares assegurou que a transição para a democracia correspondesse a um movimento em direção a instituições políticas inclusivas – constituindo-se, portanto, em elemento central na emergência de um governo comprometido com a prestação de serviços públicos, expansão educacional e condições de fato igualitárias” (p.355).
Em entrevista na edição de 09 de junho de 2010 da revista Veja, antes do lançamento do livro, Acemoglu afirmou: “O Brasil estagnou. Hoje a economia não é rósea, mas é mais competitiva, mais dinâmica. Continuar? Ou os dinossauros vão parar outra vez? Essa é questão-chave”.
Em entrevista em 30/03/2012 na revista Época, o livro já lançado nos Estados Unidos, Acemoglu confirma sua visão positiva do Brasil, mas repete a advertência anterior sob outro argumento: “Não podemos prever o futuro. O Brasil está no rumo correto. O poder agora está muito mais bem distribuído, mas quem garante possa haver um processo de reversão por alguma contingência? A política é um negócio muito complicado. É difícil projetar quem consegue monopolizar o poder político ou usá-lo de maneira incorreta”.
A contingência é o estrondo das ruas. O desafio é o que fazer com ele.
É o novíssimo ramo da ciência social. Criação nacional. Tem por objetivo estudar as manifestações das ruas ocorridas em junho do corrente ano. Opinou, está diplomado.
Aliás, o mês de junho sempre se consagrou pelas explosões de traque de massa, peido-de-velha, rojões e ruas repletas de pessoas desfrutando os folguedos da época.
De fato, a tríade – Antonio, João e Pedro – santificada pela Igreja Católica sempre foi celebrada com beleza e alegria, graças à tradição que selou a convergência entre o sagrado e o profano, aquecida pelas fogueiras, animada pela emoção do coco, baião, xaxado, alimentada pelo néctar e ambrosia dos humanos (milho, coco, açúcar, canela, bolos variados) tudo culminando com o enlace dos corpos nos arrasta-pés e modernosas quadrilhas.
Até aí tudo bem. O ciclo junino sempre foi um momento festivo agregador. Guloso. Ingênuo. Divertido. Levantando poeira nos salões e saudando os céus com fogos coloridos.
Este ano havia um tempero a mais para mexer com alma do povo no país do futebol (?): a Copa das Confederações, um grande aperitivo para a Copa de 2014, Copa saudada por lágrimas ufanistas do então Presidente Lula com a novidade de que a pátria de chuteiras e as seleções estrangeiras pisariam no solo aveludado de Arenas Multiuso ainda que caríssimas e inacabadas.
E não há como negar: houve a explosão popular. Fora dos estádios. O povo brasileiro foi às ruas por sua conta e risco. Sem lideranças legítimas ou fajutas. Sem palavras de ordem, mas dando ordens por meio de palavras claras e diretas: vocês que estão alojados no poder não me representam; queremos um Brasil melhor e que funcione. Mudem!
Neste meio tempo, fui convidado para um “jantar inteligente”. Jantar inteligente é uma criação inteligentíssima, irônica, mordaz, do filósofo, escritor, professor, articulista da Folha/SP, o pernambucano Luiz Felipe Pondé. E como o espaço é pequeno para descrever fielmente o jantar inteligente, aqui vão alguns elementos básicos: o jantar congrega gente “chique” de variadas profissões que fingem não gostar de dinheiro; consideram o resto do mundo “ridículo” o que ajuda a ser mais inteligente; proclamam-se democratas, mas não morrem de amores pelo cheiro do povo.
De um modo geral, os assuntos são variados, atuais e sempre abordados com o cuidado de não ferir, implícita ou explicitamente, a ditadura do politicamente correto. Um menu peruano ou vietnamita é de bom tom.
Neste jantar, a conversa foi monotemática: as manifestações de ruas e os respectivos veredictos sobre causas, consequências, cenários, especulações sobre 2014 e leituras professorais sobre os aspectos sociológicos, antropológicos, psicanalíticos e por aí foi.
Com efeito, as questões jorravam na velocidade dos espumantes: primavera árabe ou outono brasileiro? Baderna ou a não violência ativa, inspirada em Gandhi? Estavam ali por “míseros” vinte centavos ou pelos bilhões embolsados pela corrupção? Dilma aguenta o tranco ou volta Lula em 2014? Chegou ao fim do “ciclo dos postes” eleitos pela força política dos padrinhos? O curto-circuito dos fios desencapados eletrocutou a democracia representativa? A internet abre o caminho para a ciberdemocracia ou será uma ferramenta para o Big Brother global faltar com o respeito à soberania das nações e invadir a privacidade dos cidadãos? É possível organizar a desconfiança com uma espécie de democracia de controle exercida com a participação da “política dos governados”?
Entrei mudo e saí calado. Rouco de tanto ouvir. Não sabia bem o que dizer. Mas fui forçado a acreditar que a manifestologia é uma nova ciência e que existem mais aviões da FAB entre o céu e a terra brasileira do que possam supor os jantares inteligentes.
É um ramo novo da teoria do conhecimento. Mas não se ocupa dos cabritos, ou seja, do jovem ruminante herbívoro que pertence à família do bode.
Trata-se de recente ciência que se ocupa da movimentação tão intensa quanto inútil (cabritos saltitantes, hiperativos) bem como da linguagem (os balidos) dos executivos nas modernas corporações privadas ou públicas.
São os filhos da globalização, da velocidade e da especialização profissional.
Levam a vida no gerúndio, viajando e reunindo-se.
Quem procura, não acha. O máximo que se consegue é deixar um recado, em geral sem retorno, com a amável secretária de carne e osso que, mais cedo ou mais tarde, será substituída, pelo artefato tecnológico e impessoal, chamado secretária eletrônica.
As videoconferências, as “conference calls” e a crescente aerofobia não diminuíram o furor dos deslocamentos. Olhos colados no laptop e ouvidos grudados em vários celulares, os executivos modernos seguem a rotina da movimentação intensa, inútil como uma bolinha de ping-pong nas raquetes da velocidade. Pra que tanta pressa, doutô? A vida é breve, ensinam os cabritólogos.
Além da movimentação, há outro traço que distingue os membros das corporações: o dialeto que falam e que transformam na linguagem da comunicação institucional.
Falam como idiotas e, o que é pior, pensam que o distinto público é um bando de idiotas.
Nada de preconceito, nem birra pelo implemento de idade.
Vamos a alguns dos dialetos contra os quais existem livros e movimentos organizados.
O “juridiquês” cuja quintessência (para não falar em “desate curial”, “cônjuge supérstite, “ergástulo público”, “cártula chéquica”) é o trecho de um recurso dirigido ao Superior Tribunal Militar, uma pérola: “O Alcandor Conselho Especial de Justiça, na sua postura irrepreensível, foi correto e acendrado no seu decisório. É certo que o Ministério Público tem o seu lambel largo (...) Mas nenhum lambel o levaria a pouso cinéreo se houvesse acolitado o pronunciamento absolutório dos nobres alvazires de primeira instância”. Entendeu?
E o “economês”, decifrando o rolo causado pelo mercado imobiliário americano, diria o seguinte: “A crise dos derivativos subprime expõe a volatilidade dos mercados. As posições alavancadas dos players, sem o lastro dos swaps e dos hedges funds, podem vir a afetar a banda diagonal exógena do câmbio flutuante e, por conseqüência, o regime de inflation target dos países emergentes”. Tradução: a alta picaretagem internacional enganou o besta ganancioso e pode ferrar os babacas emergentes.
Quem quiser se divertir com a conversa fiada, a armadilha da obscuridade e a arte de embromação do mundo dos negócios, recomendo a leitura de “Por que as pessoas de negócios falam como idiotas”, de autoria de três americanos, um verdadeiro pelotão de fuzilamento do jargão e da besteira.
A esta altura o leitor vai perguntar: e o “politiquês” vai passar em branco? Vai livrar a cara dos seus pareceiros? Este é um dialeto de alta complexidade e periculosidade. Merece um artigo inteiramente dedicado a ele. Prometo.
Mas já que falamos em politiquês, vem de Churchill, profundo conhecedor de história, da língua inglesa e excepcional orador, um brilhante conselho contra o blá, blá, blá, o lero-lero, a lengalenga: “Das palavras, as mais simples; das mais simples, a menor”.
Amigos de infância, eles se tratavam, em alto e bom som, de “negão”, “véio”, “baixinho”, “tonelada”, “boneca” e “cão coxo”. Hoje, seguem amigos; encontram-se com freqüência para tomar várias; mas, em público, se tratam pelo nome de batismo, ou sussurram os apelidos com receio de ofender alguém no entorno que venha a ser afrodescendente, idoso, anão, obeso, bicha e deficiente.
Ou seja, vivem sob a implacável censura do “politicamente correto”, um cânone importado das terras de Tio Sam, a falsa polidez que ganhou o mundo e, de maneira difusa, inibe o pensar livre-pensar, irreverente e irônico. Virou uma aporrinhação sem fim e tão virulenta que, se o sujeito cumprimentar uma platéia com um “boa noite” e não mencionar “todos e... todas”, corre o risco de ser tachado de sexista. Saudades do latim que incluía o neutro entre o masculino e feminino.
Mundo chato o do “politicamente correto”! É amplo. Não se limita à linguagem; impõe padrões no vestir, no comer e, quem sabe, na consagração definitiva da “cópula papai e mamãe”. Pois bem, aqui vai um tributo a quatro monstros sagrados do “politicamente incorreto”: os pernambucanos Nélson Rodrigues e Luiz Felipe Pondé, o irlandês Oscar Wilde e o americano Henry Louis Mencken. Deles, usarei o mínimo possível de incontáveis frases que imortalizaram a coragem de dizer o que o nosso bom mocismo silencia.
Lá vai Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo, contista, escritor, jornalista, cronista com seus personagens-tipo, o padre de passeata, a freira de minissaia, a grã-fina de narinas de cadáver, o idiota da objetividade, o cretino fundamental, a estagiária de calcanhar sujo: “As feministas querem reduzir a mulher a um homem mal-acabado”; “Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”; “A velocidade é o prazer dos cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca”; “Se a vida me der as costas, passo a mão na bunda dela”; “Jovens envelheçam depressa. O jovem só pode ser levado a sério quando fica velho”; “Aos dezoito anos, o homem não sabe como se diz bom dia a uma mulher. O homem devia nascer com trinta anos feitos”; “Qualquer menino parece, hoje, um experimentado e perverso anão de 47 anos”; “Só o cinismo redime o casamento. É preciso muito cinismo para um casal chegar às bodas de prata”; “Invejo a burrice porque é eterna”; “Reacionário, no sentido que conheço, é a esquerda brasileira que tomou o lugar da direita”; “Marx era uma besta”. E a “baba bovina” escorrendo pela gravata da direita perplexa e da esquerda indignada. Quer mais? Ruy Castro selecionou mil frases de Nelson em Flor da obsessão, Companhia da letras.
O outro pernambucano é Luiz Felipe Pondé, filósofo, ensaísta, escritor e autor do "Guia politicamente incorreto da filosofia", sucesso de vendas e, ao mesmo tempo, êxito incomum em matéria de polêmica acirrada. Pondé não mede palavras nem regateia o livre pensar quando se trata de enfrentar o que chama de "praga do politicamente correto". E explica a essência do livro como "a confissão de um pecador irônico a respeito de uma mentira moral: o politicamente correto". Para ele, "os aeroportos e os aviões viraram um grande churrasco na lage; o mundo virou uma praça da alimentação de shopping center num sábado à tarde; o futuro do mundo é ser brega". Considera a crítica ao politicamente correto "uma crítica que se alimenta da suspeita acerca do pecado como essência do homem". A partir daí, Pondé detona o modismo ideológico. O feminismo é um prato cheio (diz coisas do tipo: "as feministas só conheceram na vida homens ruins, por isso falam o que falam dos homens" ou "ser mãe solteira só e bonito em novela das oito"). Crítico mordaz da democracia representativa, Pondé identifica nela o nascimento do "homem-massa" o que assegura, segundo ele, a vitória aos idiotas porque são massa. E conclui: "o idiota raivoso fala sempre com força de bando e, na democracia de massa em que vivemos, ele tem sim o poder absoluto de destruir todos os que não se submetem a sua regra de estupidez bem adaptada". Ler Pondé provoca dois sentimentos antagônicos: impulsos de ira ou acessos de risos. Indiferença, jamais.
Por sua vez, o bissexual, extravagante, excêntrico, anarquista, brilhante dramaturgo, contista, poeta, romancista de um só e belo romance (O retrato de Dorian Gray), Oscar Wilde (1854-1900), condenado a dois anos de trabalho forçados por conta do rumoroso caso de amor com o jovem Alfred Douglas que escandalizou o moralismo vitoriano da sociedade inglesa, dispara: “A cada boa impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre”; “Quando eu era jovem pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje, tenho certeza”. “Um homem pode ser feliz com qualquer mulher desde que não a ame”; “Pouca sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal”; “Devem-se escolher os amigos pela beleza, os conhecidos pelo caráter e os inimigos pela inteligência”; “A moda é uma variação tão intolerável que tem de mudar de seis em seis meses”; “A coerência é a virtude dos imbecis”; “Experiência é o nome que damos aos nossos erros”; “Resisto a tudo, menos à tentação”.
Finalmente, o americano Henry Louis Mencken (1880-1956), jornalista, crítico social, iconoclasta e de notável atualidade política, usa, como poucos, a língua ferina: “O adultério é a aplicação dos princípios democráticos ao amor”; “O amor é o triunfo da imaginação sobre a inteligência”; “Pode ser um pecado pensar mal dos outros, mas raramente será um engano”; “A democracia é a arte de administrar o circo a partir da jaula dos macacos”: “O homem inteligente, quando paga seus impostos, não acredita estar fazendo um investimento prudente e produtivo do seu dinheiro; ao contrário sente que está sendo multado em nome de uma série de serviços que, em sua maior parte, são inúteis e até prejudiciais”; “Todo governo é composto de vagabundos que, por um acidente jurídico, adquiriu o direito de embolsar uma parte dos ganhos dos seus semelhantes”; “Todo homem decente se envergonha do governo sob o qual vive”.
Beleza, Mr. Mencken, e grato pela “aquarela do Brasil” profética.
O noticiário das últimas semanas revela sérias ameaças ao bolso do cidadão contribuinte, a vítima dos governos de plantão.
São elas: inflação em alta, projeto de lei complementar, aprovado na Câmara dos Deputados, a ser apreciado pelo Senado que devolve aos Estados o poder de criar novos municípios e o projeto de lei complementar que, ao propor a atualização e aperfeiçoamento da lei complementar 116 de 31 de julho de 2003, inclui na lista de serviços a esdrúxula novidade que é a cobrança do imposto sobre alugueis residenciais e comerciais.
A rigor, a inflação não é conceitualmente um imposto. Mas funciona como tal e de forma perversa. Tira dinheiro dos pobres e enche burra dos ricos; privilegia o dinheiro preguiçoso do rentista em prejuízo das rendas suadas, ganhas com trabalho e produção; desorganiza a economia, fomenta a cultura da esperteza e cria para os governos a receita extraordinária decorrente de aplicações financeiras.
Com efeito, o brasileiro é doutor no assunto e foi paciente terminal desta praga. Durante longos anos, sofreu com as frequentes mudanças das moedas; ouviu o matraquear das máquinas de remarcação dentro dos supermercados e, o que é pior, padeceu de incertezas quanto ao futuro sob a anestesia da indexação preços\salários e dos contratos.
Após um processo de reordenamento das finanças públicas, o plano real derrotou a inflação e criou uma nova cultura, a cultura da estabilidade, que transformou a obra do governo numa conquista da sociedade. É preciso enfrentar este demônio. Sem prevenções ideológicas e a crença supersticiosa de que uma “inflaçãozinha” não faz mal ao desenvolvimento. Caso contrário, a alta dos preços vai atingir a alta da popularidade do governo.
Outro fato assustador é a possibilidade de criação de novos municípios mediante lei complementar aprovada na Câmara e em apreciação no Senado. Assustador por quê? Por mais rígidos e exigentes que sejam os critérios estabelecidos no mencionado projeto, o passado condena. Segundo a voz da experiência histórica o que houve no Brasil foi "a farra das emancipações"
Senão vejamos: entre 1988 e 2000 foram criados cerca de 1400 municípios no Brasil (em 1996, emenda constitucional vedou a criação pelos estados-membros); do total de mais de 5650, os municípios de cinco mil a vinte mil habitantes representam mais de 60% da totalidade; os 15 municípios menos populosos somam 17.621 habitantes; segundo o censo de 2010, Borá, situado em São Paulo, é o menor município do Brasil com 805 habitantes e Serra da Saudade, em Minas, é o segundo com 810.
De outra parte, cabe destacar o grau de dependência dos municípios das transferências constitucionais (FPM e FPE) em relação à arrecadação própria. Os números são alarmantes. Trata-se de uma decorrência inevitável da frágil base econômica das cidades, associada ao desgaste político que é cobrar imposto e à preguiça fiscal alimentada pela mesada constitucional.
No entanto, o cobertor é curto: o município ganha como pobre, gasta como rico perdulário e...o contribuinte paga a conta. Ainda bem que algumas lideranças políticas levantaram suas vozes, alertando para o risco de novas distorções. Não custa lembrar que, atualmente, existem tramitando nas Assembleias Legislativas mais de 400 projetos de emancipação.
Por fim, a notícia da cobrança do ISS sobre alugueis residenciais e comerciais a serem incluídos na lista de serviços do Projeto 386, ora em tramitação no Senado.
Embora desconheça desmentido formal sobre a iniciativa, prefiro não acreditar na proposta que agrava a insuportável carga tributária; prejudica os investimentos na indústria da construção civil; enquadra o fato econômico da locação de imóveis como fato gerador da prestação de serviços o que me parece uma heresia jurídico-tributária. Com a palavra, os doutores do direito.
Durante muito tempo acreditei, a ponto de transmitir aos meus alunos, que o imposto era o preço que as pessoas pagavam para viver numa sociedade civilizada, capaz de prover os cidadãos de aceitáveis padrões de qualidade de vida.
Hoje prefiro me alinhar ao que pensava H.L.Mencken, o desaforado critico social americano: “O homem inteligente, quando paga seus impostos, não acredita estar fazendo um investimento prudente e produtivo; ao contrário sente que está sendo multado em nome de uma série de serviços que, em sua maior parte, são inúteis e até prejudiciais”.
Os modos de produção engendrados pela humanidade – capitalista ou socialista – foram (e são) cruéis com a natureza.
Ambos repousam sobre duas falácias: o crescimento econômico é um bem, a qualquer preço, e a natureza é recurso inesgotável capaz, portanto, de suportar o produtivismo arrogante e o consumismo ofegante.
Em outras palavras, o engano esteve e está na suposição de que o que é bom para nós é bom para o mundo
Resultado: o mundo está mais para o congestionamento do que para a amplidão do vazio (não sou eu quem afirma, é Herman Daly, Prêmio Nobel de Economia).
Mudar a convicção de que o que é bom para o mundo há de ser bom para nós, é dificílimo. A razão é simples: não dá para resolver os problemas com a mesma mentalidade que os criou (não sou eu quem afirma, é um gênio chamado Einstein).
A sociedade industrial é sedentária e gulosa; seu metabolismo perdulário; alimenta-se exageradamente de energia e matérias-primas; produz bens que são úteis e “calorias inúteis”, nocivas ao meio ambiente e à qualidade de vida; sua lógica férrea é predadora.
Para ilustrar a lógica do industrialismo, basta registrar o que está por trás do gesto prosaico de um consumidor ao beber, em Londres, uma latinha de coca-cola: a bauxita é extraída na Austrália e cada tonelada purificada transforma-se em meia tonelada de óxido de alumínio; em grandes quantidades, o óxido de alumínio atravessa dois oceanos e é fundido na Suécia ou Noruega em lingotes de dez metros de alumínio; em laminadoras na Alemanha, os lingotes são aquecidos e prensados até atingir uma espessura de trinta centímetros e, uma vez laminados a frio, são novamente prensados até atingir espessura dez vezes mais finas e, então, enviados à Inglaterra; moldadas, as folhas transformam-se em latas que, depois de meticuloso processo, recebem água, xarope aromatizado, fósforo, cafeína e gás de dióxido de carbono; o açúcar vem da beterraba francesa; o fósforo, de Idaho, nos EE.UU; a cafeína, da indústria química; o papelão da embalagem é extraído da madeira de florestas tropicais; em minutos, o consumidor bebe a coca-cola e, em segundos, joga a lata fora, transformando-a em lixo, ou seja, num grande e duradouro problema.
A cada bem produzido pela sociedade industrial, corresponde uma trajetória semelhante que pode deixar enormes “pegadas ecológicas” ou carregar pesadas “mochilas ecológicas”.
Não há como sair desta encruzilhada sem mudar profundamente as idéias e a lógica dominantes; sem alterar, por conseqüência, os padrões de produção e de consumo; sem compreender que a natureza é um “capital” constituído de recursos, sistemas vivos e serviços do ecossistema e, não apenas, uma “externalidade” como conceitua a teoria econômica clássica.
É bem verdade que existem transformações em curso.
Porém, o caminho é longo. E não há outro, senão a reinvenção do futuro.
Para tanto, é importante chacoalhar as verdades estabelecidas e abandonar as idéias velhas sem medo do livre-pensar que é admitir: (a) o mundo sustentável já existe, basta olhar os ritmos e os processos da natureza; (b) é preciso construir a economia biomimética aquela que imita a natureza ao respeitar seu funcionamento, valorizar os seus serviços, tornar o “mundo fabricado” cada vez mais parecido com o “mundo nascido”, utilizar crescentemente os “materiais renascidos”; (c) a economia biomimética é aquela que produz cada vez mais com cada vez menos insumos; (d) a economia biomimética é aquela que repousa no principio segundo o qual a vida funciona, a natureza otimiza e a estupidez pessimiza.
De outra parte, cabe incorporar as idéias novas à política e à economia. Corajosamente, James Tobin, prêmio Nobel de economia, proclama: “a maximização do PIB não é um objetivo adequado da política” e, na mesma linha, o economista Roberto Reppeto vai mais longe ao afirmar: “pelo sistema atual de contabilidade nacional um país pode esgotar seus recursos naturais, destruir todas as suas florestas, erodir o solo, poluir os lençóis de água, exterminar peixes e animais silvestres, mesmo assim a sua renda nacional não será afetada enquanto estes ativos estiverem desaparecendo. Os resultados podem ser ganhos ilusórios em renda e perdas permanentes em riqueza”.
Finalmente, cabe reverter a grave tendência que permeia as percepções equivocadas e que pode comprometer a construção do nosso futuro comum: o obscuro a gente acaba vendo cedo ou tarde; o óbvio parece que demora um pouco mais.
Para a natureza humana, consumir é um ato prosaico e indispensável para a sobrevivência da espécie. Que o diga o oxigênio e a água, hoje, nem tão puros, nem tão abundantes; ou o pão e o leite que, outrora, chegavam cedinho na casa dos consumidores.
Para a economia, o consumo é um agregado macroeconômico que se forma a partir da decisão dos indivíduos que, por preferências racionais ou estímulos emocionais, buscam a satisfação de necessidades reais ou artificiais, observadas, em princípio, as leis da oferta e da procura.
Na atualidade, esta definição foi pro espaço; nem toda sociedade, atesta a história, se confunde com o consumo, parte do todo, mas a sociedade contemporânea é, por excelência, a sociedade do consumo, ou seja, nela, a parte tomou conta do todo.
Neste sentido, o sociólogo polonês Zygmunt Baumann, faz a distinção: “A sociedade dos nossos predecessores era, na sua fase industrial, uma ‘sociedade de produtores’ (....) A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor”. A diferença é profunda: numa se consome para viver, noutra se vive para consumir.
No entanto, as diferenças não param por aí. Na sociedade da produção, as relações eram mais sólidas e seguras; na sociedade do consumo, são líquidas e fluídas; na sociedade da produção se apostava na durabilidade do longo prazo; na sociedade do consumo, reina a cultura “agorista”, o tempo é o instante do desejo satisfeito, imediatamente substituído por uma avalanche de desejos sempre intensos, crescentes e insaciáveis. Ansioso e apressado, exagerado e perdulário, o consumista descarta e substitui o bem que, para ele, já nasce um quase-lixo. Nesta “esteira hedonista”, surge o traço mais grave da louca aventura do consumo: sujeito e objeto se fundem e fazem nascer o ser-mercadoria. Nós somos mercadorias, comandados pela índole social do “compro, logo existo”, ou dos imperativos: está de mal com você e com a vida? Então, coma! Está depressivo? Então deseje o desejo, indo ao próximo Shopping Center!
Ao gerar o ser-mercadoria e o cidadão acrítico que engole o espetáculo da imagem sob o comando da propaganda, o consumismo nos transforma em marqueteiros de nós mesmos. Do mais simples profissional liberal ao mais famoso pop star, torna-se imprescindível ser visto e projetar a imagem que o “mercado” compre porque é assim que funciona o espetáculo da vida moderna. A invisibilidade equivale à morte em todas as esferas das relações sociais.
Na política não é diferente: idéias e valores foram trocados pela “persona”, máscara, imagem-produto. O ponto de partida é a fixação da imagem junto ao público. Imagem é “marca”; candidato é “produto”, tal qual um biscoito ou um dentifrício, que pode ser “vendido” no “mercado político” cuja “moeda” de troca é o voto.
Desta forma, o político assume o personagem em cuja pele se meteu. O que passa a valer é a produção de símbolos e mitos. E não importa sua relação com a realidade e muito menos que o político se torne escravo do mito. O importante é fazer o público acreditar. O mito se basta.
Entre ser e parecer, a opção é parecer. Hannah Arendt, em Da Mentira em Política, ensina: “A política é feita, em parte, da fabricação de certa ‘imagem’ e, em parte, da arte de levar a acreditar na realidade dessa imagem”.
Com efeito, a arte de mentir, apoiada na indústria do marketing, registrou feitos notáveis na recente história política do Brasil.
Vem daí um dos grandes males da democracia que é sua deformação em “teatrocracia”, oferecendo ilusão ao distraído público. O remédio para o consumismo político está na formação de uma cidadania crítica e participava. Aliás, com a autoridade de quem exerceu a vida pública sem fazer a mínima concessão ao primado do embuste segundo o qual “o que parece é, mesmo não sendo”, o Senador Marco Maciel, em excelente artigo publicado no JC (edição de 05/02/09, sob o título Os males da democracia) afirma: “A democracia participativa não é uma utopia e menos ainda uma aspiração inalcançável. Só depende de nós. Enquanto tivermos ojeriza aos partidos, desprezo pelas instituições que nos governam, desinteresse pelos assuntos que nos dizem respeito e aversão à política, corremos o risco de, na guerra dos interesses, tornarmo-nos reféns de pressões legítimas ou espúrias que se aproveitam da omissão dos cidadãos, do compromisso de alguns e da alienação de muitos. Na era da informação, todos nós temos recursos, instrumentos e meios para mantermo-nos informados sobre o desempenho dos nossos representantes em nossas cidades, em nossos Estados e no Congresso Nacional”.
Trocando em miúdos: em economia, o cidadão consumista compra gato por lebre e paga, sozinho, pelo erro; em política, o eleitor consumista elege rato por lebre. Aí todos pagam.
O domingo me assusta como me assustam todos os dias que mandam o recado do tempo. O recado do tempo traz as cenas guardadas no velho baú do passado.
O passado é insuportável. É uma crônica de perdas e faltas: ninguém resiste olhar para trás e dá de cara com o mundo que não existe mais.
Então, não olhe para trás. Ou então, retire do baú o passado em pedaços. Pedaços que não machuquem. O passado por inteiro é uma estrada pontilhada de cruzes. E quanto mais extenso é o tempo da memória maior é a extensão e a intensidade das dores e desta palavra única que revela a lembrança que ficou: SAUDADE!
O outro recado do tempo – o reverso da medalha – é o futuro.
O futuro é o tempo da esperança. Nada mais angustiante do que esperar; nada mais falso do que a esperança. O futuro é uma invenção para aliviar outra invenção medonha da criatura humana: o tempo.
O tempo não existe. Portanto não se parte e nem se mede. Tem uma dimensão cósmica. Misteriosa. Imensurável. É um rio correndo. O agora já foi. É passado. O depois não chegou. É futuro. Uma espécie de linha do horizonte que se distancia quando a gente imagina que está mais perto. O domingo, a semana, os meses, os anos, os séculos, estas medidas, fomos nós que inventamos e, sobre nós, o tempo na sua dimensão humana deixa marcas profundas.
O domingo me assusta porque me empurra para pensar na certeza da finitude e na ilusão da tríade passado-presente-futuro.
Entro em parafuso: fim e recomeço. O primeiro dia da semana que chega ou último da semana que finda?
Depende das convenções, das crenças e, sobretudo daquilo que eu quero que seja o meu domingo já que o tempo é uma invenção humana. Então, vou inventá-lo a partir da inspiração que nos foi legada pelo sopro poético de Vinicius: porque ontem foi sábado (houve um “casamento...um divórcio e um violamento...um espetáculo de gala...uma mulher que apanha e cala...um grande aumento do consumo...um beber e um dar sem conta...um grande acréscimo de sífilis...todos os bares estão repletos de homens vazios/todos os namorados estão de mãos entrelaçadas/todos os maridos estão funcionando normalmente/todas as mulheres estão atentas”), hoje, o meu domingo é de quietude e nele não há lugar para os pecados capitais.
A preguiça é o descanso merecido que invade os corpos; o máximo de luxúria permitido são corpos horizontais e castamente abraçados; a saciedade dos quereres mata de inveja a inveja; a gratidão das rezas cura o veneno do orgulho; o coração enternecido pela dádiva da vida não deixa lugar para a ira; sei que nada me pertence, para desgosto da avareza; e como o meu domingo foi feito para brincar com crianças e, com elas comer doces, a gula dominical está perdoada.
Lá fora, o amanhecer é vagaroso. O sol se espreguiça e com ele tudo caminha sem pressa. Há um silêncio que acaricia e uma paz que conforta. O meu domingo convida para o encontro e para a renovação do afeto, em qualquer lugar, em todos os lugares, todas as horas.
Amanhã é dia de recomeço. Viver não é uma trégua entre fim e começo. A vida é o milagre da ressurreição. Vale a pena abraçá-la quotidianamente. E sempre aos domingos.
Ah, se eu soubesse escrever! Sei que não sei. Ainda assim, escrevo teimosamente quando não resisto à vontade de falar sobre a boniteza.
E quanta boniteza eu vi em Maria Bethânia, falando, cantando, dançando, encantando, sofrendo, gostando, sentindo “Cartas de amor”, como se fosse o sol desvirginando a madrugada de milhares de pessoas na noite chuvosa de 19 de abril no palco do teatro, pernambucanamente batizado, Guararapes.
Se eu soubesse escrever, usaria a palavra apropriada para definir o êxtase do “estado de poesia” em que vive Bethânia. “Em estado de poesia”, a gente vê o que não existe ou, como diz Manoel de Barros, “transvê e quem buscar a verdade só vai encontrar beleza”. Quem é, pois, capaz de sondar o mistério de uma criatura que no palco revoga o sistema métrico, a lei de gravidade e a contagem do tempo? Ela não se mede; não pesa; não tem idade. Tem o tamanho da transcendência. Não caminha, levita como se pisasse em nuvens. E não passa. Fica para sempre agarrada na gente com o grude da palavra sentida e com a brisa da voz desencarnada.
Se eu soubesse escrever usaria a palavra exata para dizer que Bethânia tem a majestade das rainhas, a doçura das santas e o mistério das feiticeiras.
A majestade de todas as rainhas. Rainha dos contos de fada? De coroa, manto , cetro e rosto de boneca. Rainha de verdade? A inquilina dos castelos monumentais, senhora e vítima do vapor maligno das cortes. Ou Rainha do Maracatu? Negra imponente se movendo na batida mágica e insuperável de outro Rei, forte no tambor e meigo no nome e na vida, melhor, na vida do nome: Naná (Vasconcelos). Bethânia é uma espécie de Rainha-Mãe que se confunde e se funde na força da Mãe-Natureza. Em estado bruto ou na mais refinada expressão do ser humano: o esplendor da arte.
A doçura das santas e mistérios das feiticeiras. Como é isso? Que mistura é essa? Bethânia é mistura pura e nasceu com um defeito que é o do amar por inteiro. Mística. Mítica. Mistério. No oásis de Bethânia, tem Jesus, Maria, José e a companhia de todos os pajés. Não anda só. A armadura de Oxum guarda o corpo; gira o mundo no raio de Iansã; corta os céus com a tocha da fogueira de João Menino; reza com as três Marias; dorme na forja de Ogum; mergulha no corpo vivo de Xangô.
E neste oásis, a lágrima de Bethânia rega o capim que alimenta a vida e refaz nascentes. Nele, diz Bethânia, com a força dos sentimentos de quem canta e interpreta na simbiose da vibração: “Vivo de cara pro vento, na chuva. E quero me molhar. O terço de Fátima e o cordão de Ghandi cruzam meu peito: sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”. Quem há de mexer com esta haste fina? Quem há de mexer com quem não anda só, com quem caminha com a proteção dos bons espíritos e o cerco afetivo da multidão que adora vê-la, “cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”?
Pois bem, durante e depois do show fica evidente que ela é que mexe com a gente. Existem momentos de arrebatamento: é pura paixão; existem momentos de acolhimento, de aconchego: é pura ternura; existem momentos que não passam porque servem de luz para perceber e clarear os caminhos da existência.
Em troca do ingresso, recebi uma valiosa “Carta de amor”, escrita, declamada e cantada por ela; em duas horas, vi uma plateia eletrizada com o mais leve trejeito, o mais breve aceno e exultar diante do mais despretensioso requebro que, nela, tem a carga explosiva da sensualidade.
Tudo aconteceu no palco da simplicidade. Bethânia é o palco e qualquer palco perde relevância diante de Bethânia. E, para coroar a boniteza, manda um lindo recado de firmeza para os amores que estremecem com “Barulho” (Roque Ferreira): “Porque só beijo quem amo/Só abraço quem gosto/Só me dou por paixão/Eu só sei amar direito/Nasci com esse defeito/No coração”.
“Não sou biografável”. Assim se define o poeta cuiabano Manoel de Barros. Por se considerar um “ser letral”, jamais permitiu gravar entrevistas que tivessem por suporte as “traquitanas tecnológicas” da modernidade. Resistiu mais de meio século porque “não saía de dentro de mim nem para pescar”.
A gentil demanda e sutil insistência do diretor Pedro Cezar dobraram o poeta. Resultado: o público brasileiro ganhou o documentário premiado no Festival de Cinema de Paulínia (2009) Só dez por cento é mentira – A desbiografia oficial de Manoel de Barros, vertido em DVD pela Biscoito Fino.
Contou ponto o neologismo desbiografia, uma das paixões do poeta, (admirador dos desheróis de Chaplin), antecedida pela saborosa expressão do próprio autor na definição de sua obra literária: “Só dez por cento é mentira. Noventa por cento do que escrevo é invenção”.
Manoel de Barros inventa poesia para ser sentida e para aumentar o mundo. Anticanônico confesso: “nunca fiz um soneto, uma rima, terceto, um sexteto...a poesia não precisa ser explicada. Aí deixa de ser poesia. Vira prosa. Poesia não é para explicar. Não é para escrever, é para descumprir. Dirige-se á sensibilidade. À percepção sensível do leitor. Quero dar encantamento. O poeta vê o que não existe. Os olhos vêem. A lembrança revê. O poeta transvê. Quem busca a verdade só vai encontrar beleza”.
Abílio, o irmão, reconhece que ele veio ao mundo com uma disfunção congênita: nasceu poeta em tempo integral. Anomalia incurável. Ao resolver as questões básicas da sobrevivência com a exploração das fazendas em Mato-Grosso, regozijou-se: “comprei o ócio e ficar à toa é ficar à disposição da poesia”. Deu adeus às coisas práticas da vida. Seu mundo é um cômodo de 3x4; seus utensílios, lápis e pequeninos blocos. Não usa computador para escrever porque na ponta do lápis, diz ele, “está um nascimento”.
Do resto, cuida a dedicada Estela, a esposa, autêntica “guia de cego” de quem revogou o mundo prático, não dirige automóvel, já deu o que tinha, recebe mesada e com miúda caligrafia procura e é procurado pelas palavras. Deste encontro, faz um tipo de armação que é o gorjeio, ou seja, a musicalidade poética. Não é o poeta da paisagem. É o poeta da palavra. Não aceita a adjetivação de “poeta pantaneiro”. Barros e a natureza se fundiram. Houaiss enxergava semelhanças entre ele e São Francisco de Assis na humildade diante dos seres e das coisas.
Sua fonte de poesia é o baú da infância. A criança “erra na gramática, mas acerta na poesia”. Encantou-se com a menina que disse: “a borboleta é a cor que avoa”. Falou e poetou. “Inspiração só conheço de nome”.
De fato, para Manoel de Barros o que vale é a artesania que descreve o poder de quem descobre, em vez de ouro, as desimportâncias. Inventa inutensílios; revela sentimentos na pedra que no, Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, proclama: “Pedra sendo tenho o gosto de jazer no chão [...] Há outros privilégios de ser pedra: a – Eu irrito o silêncio dos insetos. b – Sou batido de luar nas solitudes. c – Tomo banho de orvalho de manhã. d – E o sol me cumprimenta por primeiro”.
Premiadíssimo, manteve-se, até os anos 80, recoberto por um temperamento arredio e avesso às convivências literárias, quando Millor Fernandes o descobriu e botou a boca no trombone. Aí a mídia se deu conta do poeta que hoje, com 95 anos de lucidez, é o mais lido no Brasil. Com senso de humor, o mais avançado estágio da inteligência, Manoel se gaba de ter inventado “o idioleto manoelês, o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e as moscas”.
Na infância, o estalo poético lhe foi dado pelos sermões do Padre Vieira, lidos precocemente. Quanto às influências, é difícil definir diante de tamanha originalidade. Porém, a poesia manoelina tem traços do modernismo brasileiro, do simbolismo francês (Rimbaud), da inventividade de Guimarães Rosa e de vozes e visões que somente a ele é dado o privilégio de ouvir, enxergar e sentir.
Diante da cruel e inevitável pergunta de como gostaria de ser lembrado, não hesitou: “Permanecer como poeta. O ser biológico é sujeito às variações do tempo. O tempo só anda de ida. A poesia amarra o tempo no poste”.