“Pela primeira vez eu vou ter uma seleção onde vão olhar as minhas habilidades e não a cor da minha pele”. Essas palavras expressam o sentimento do estudante de engenharia de produção Marcos Madeira, 31 anos. Ele participou da primeira seleção destinada a pessoas negras promovida pela cervejaria Ambev, que assim como a varejista Magazine Luiza, recebeu diversas críticas sobre a decisão após repercussão das oportunidades.
Representatividade em postos de trabalho
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Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 64,2% da população desempregada e 66,1% da população com mão-de-obra subutilizada são representadas por pessoas negras. Ou seja, através desses dados podemos considerar que mesmo sendo mais de 56% da população brasileira, pessoas negras ainda não são maioria em postos de trabalho com algum prestígio.
Hoje, Marcos está em seu primeiro ano de estágio - viabilizado pelo programa “Representa”-, e atua na área de relações corporativas na Ambev. Morador da cidade de São Paulo, ele é um dos primeiros a fazer um curso superior e a alcançar um cargo de destaque dentro de sua família.
“Quando a gente pensa no racismo - sistema político fundado sobre o direito de uma raça considerada pura e superior sobre outra - e como ele é construído, no preconceito, a pessoa negra é sempre colocada num local de ser inferior”, explicou o futuro engenheiro de produção, sobre referências negras. “Então, quando você vê uma grande empresa que abre um processo seletivo você não se enxerga nela”, completou.
Marcos é filho de Marilene Pereira Madeira, que em toda sua vida profissional atuou como auxiliar de serviços gerais. De origem simples, Marilene estudou até o terceiro ano do ensino fundamental. O filho conta que dona Marilene sempre foi muito rígida quanto aos estudos e que desde de muito cedo foi estimulado a buscar alternativas profissionais para além da qual Marcos conhecia.
“Eu entrei primeiro na faculdade, e isso certamente causou um impacto com relação aos meus irmãos”, relembrou. “Depois minha irmã mais velha acabou entrando e até já se formou, e meu irmão mais novo ainda não entrou na faculdade, mas ele já tem essa referência dentro da casa dele que eu acho fundamental”, comemorou. Antes do cargo na cervejaria, o jovem trabalhava como dog walker - passeador de cães, em inglês - desde os 15 anos e custeava seus estudos com a função.
Mesmo com a vontade de mudar a sua realidade, indo pelo caminho indicado pela mãe, Marcos relata que as condições nunca eram as mesmas. “Sempre é tudo muito injusto quando nós estamos falando sobre negros e brancos”, enfatizou.
“Sempre vai ser injusto para a pessoa negra, porque ela está mil vezes atrás. Ela nunca parte da mesma linha de partida”. “Nós entendemos que os processos como injustos, porque a maior parte das experiências que as pessoas que estamos concorrendo tem a gente não tem”, desabafou Marcos, ao analisar como geralmente ocorre as seletivas.
A reflexão de Marcos, mostra-se similar a outros relatos vistos nas redes sociais. Atualmente trabalhando na Magazine Luiza como trainee, Emilene Lopes Angelo, contou a sua experiência com processos seletivos em seu perfil no LinkedIn e comemorou a iniciativa da empresa em promover uma seleção que oferece condições mais justas a pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades.
No relato, Emilene diz que na reta final de sua graduação a sua meta era “ser trainee em uma grande empresa”, mas que uma das barreiras era o inglês avançado, um obstáculo na evolução nas seletivas. “E aí surgiu o programa da Magazine Luiza que pedia inglês intermediário e eu pensei 'não tenho nada a perder, vou tentar'. Passei pelo teste de inglês e assim fui sendo aprovada de etapa em etapa”, relembrou com felicidade.
O ano era 2015 e Emilene tinha sido aprovada para a turma daquele ano. “Essa foi a oportunidade de ouro da minha vida. Eu, preta e pobre, estava tendo a chance de entrar em um programa de jovens talentos em uma grande empresa”, disse, ao LeiaJá. Ao finalizar o relato, a profissional demonstra gratidão pela oportunidade que teve na "Magalu" e comemora o lançamento do programa trainee 2021, destinado apenas a pessoas negras.
Se formos basear as experiências trazidas em dados, iremos identificar que apenas 4,7% das posições executivas são ocupadas por pessoas negras, ou seja, ao passo que subimos na pirâmide dos cargos, menos representativa racial existe. Os dados são da Instituto Ethos e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Para ampliar os apontamentos, conversamos com a advogada e presidenta da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB/PE), Manoela Alves. A magistrada explica que “o artigo quinto da constituição vai falar que todos são iguais perante a lei, mas na prática sabemos que somos diferentes”.
Nesse sentido, iremos “entender essa igualdade como uma igualdade material, que é aquela que vai nos levar a entender que nós precisamos tratar desiguais de forma desigual na medida de sua desigualdade”, ou seja, através desse “tratamento desigual é que iríamos poder de fato igualar [as oportunidades]”, explica Manoela. “Então, é por isso que nós falamos hoje de equidade”, diz.
Como exemplo, há o modelo de seleção para pessoas negras realizada pela Ambev. Segundo a gerente de Gente e Gestão, Rosi Teixeira, o programa fez o “exercício de olhar para nosso ambiente corporativo e identificamos, por exemplo, que a diversidade étnica e inclusão racial são pontos a serem desenvolvidos”.
Além da definição de público, outras mudanças foram feitas com o objetivo de oportunizar acessos aos jovens negros universitário dentro da cervejaria. “Além de eliminar o teste de inglês do processo de estágio, a cervejaria adotou seleção às cegas, que não avalia idade, gênero, curso ou faculdade. A Ambev quer deixar nossas portas abertas e incluir cada vez mais pessoas e ajudá-las a se desenvolverem. A companhia não olha para o curso ou para a proficiência em inglês, porque o importante é o candidato ter 'fit' com a cultura - que estimula a curiosidade, incentiva que os talentos assumam desafios e tenham mentalidade de dono nos projetos”, explica Rosi.
Para a advogada Manoela Alves, atitudes como essas vão além da empregabilidade. “O próprio Estatuto da Igualdade Racial também pressupõe o apoio às políticas afirmativas calcadas nas questões raciais numa perspectiva de garantir igualdade de oportunidades a todas pessoas, de todas as raças, dentro das instituições”, afirma a profissional.
Manoela garante ainda que não há ilegalidade com relação a processos seletivos destinados a um grupo social específicos. Pelo contrário: ela afirma que o Supremo Tribunal Federal (STF) “reconheceu a constitucionalidade de processo de cotas para pessoas negras acessarem o ensino superior”, por exemplo.
E reforça que “esse tipo de política não pode ser vista como uma política desmerecedora do trabalho ou da competência da população negra. Pelo contrário, precisa entender essas políticas afirmativas numa perspectiva de inclusão social e entender também numa perspectiva de garantir as mesmas oportunidades para todas e todos no contexto específico” que viabilize “mais uma oportunidade de ascender profissionalmente nos espaços das instituições corporativas”.
Repercussão
Visto com entusiasmo por muitos jovens negros, o anúncio de vagas voltadas apenas para grupos afrobrasileiros gerou debates em todo Brasil. Entre elogios e até processos no Ministério Público, alegando “racismo reverso”, pessoas da sociedade civil organizada expõem que o conceito é equivocado.
“Sobre as pessoas que acusam a empresa de racismo: primeiro, elas não sabem o que é racismo; segundo, elas estam sendo racistas; e terceiro, elas não têm o mínimo de conhecimento e de percepção do que é desigualdade racial na sociedade brasileira, neste caso, o ‘racismo reverso’ não existe”, detalhou Adrielly Gomes, ativista do movimento negro e graduanda em letras. “Essas pessoas estão agindo de má-fé e estão extremamente equivocadas”, pontuou.
Adrielly vai além e explica que é importante entender que o “racismo estrutural não fala só de pessoas especificamente e não só de instituições especificamente, nos está falando de uma sociedade como um todo”.
Nesse sentido, “as instituições e as pessoas são materializadas através da estrutura social, essa estrutura que nega direitos para as pessoas negras e indígenas em prol de grupos raciais dominantes, que são as pessoas brancas. Isso Silvio Almeida explica muito bem no livro 'Racismo Estrutural', inclusive”, conclui.
A ativista também aponta que ao “ver instituições tendo que abrir vagas especificamente para pessoas negras, já sabe que tem alguma coisa errada”, pois se há uma necessidade de promover ações como essas “é porque existe uma sociedade que ainda é pautada pela desigualdade racial, que pessoas negras ainda estão em desvantagem em relação às pessoas brancas”.
Apesar da críticas negativas sobre a iniciativa, e diante do racismo estrutural, a gestora de Gente da Ambev, Rosi Teixeira, revela que a empresa continuará com o compromisso de ser “agente dessa mudança e ajudar na promoção de um ambiente cada vez mais diverso e inclusivo”.
“Estamos trilhando um caminho de evolução quando falamos sobre diversidade étnica e racial na companhia hoje. Até o momento, 49% da população da Ambev é negra ou parda, sendo 30% fazendo parte da nossa liderança, mas, nossa preocupação central é justamente construir uma cervejaria cada vez mais diversa”, diz Rosi, ao celebrar o resultado.
O resultado colocado pela gestora foi um dos primeiros pontos observados pelo estagiário Marcos Madeira durante a seletiva. O jovem conta que durante a entrevista presencial, ao notar a diversidade posta no grupo avaliador, sentiu que poderia se sentir acolhido no ambiente.
Passos para o futuro
Perguntados sobre a possibilidade de haver novos processos destinados a pessoas negras, a Ambev informou que há planos de “ampliar a representatividade étnica em nosso quadro, por isso, estender a seleção ao Programa de Trainee não é algo distante, mas uma proposta que pode ser estudada em um futuro próximo”.
Desempenhando um papel na área de comunicação externa e interna, Marcos continua investindo como pode em sua preparação para novas possibilidades profissionais. “Dentre meus planos na companhia, o meu próximo passo é ser trainee, e ir para algum cargo de liderança”, projetou o funcionário.
Em avaliação final, a presidenta da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PE indica esse caminho como rico para a corporação, e fomenta que atitudes como essas auxiliam na desestruturação do racismo nas empresas saindo do lugar de subalternidade através da equidade.
Contudo, Manoela, ressalta que “precisamos de diversidade de todas as naturezas, sendo de raça, gênero, posicionamento político e filosóficos, religiosos, pois nós somos diversas e diversos”, enumera. Em resumo, a advogada reforça que essa convivência plural deve se dar de forma respeitosa como um todo.