É certo que as mulheres são presença constante na música brasileira desde a construção como identidade e sonoridade únicas no mundo, a partir da segunda metade do século XIX. Essa presença, porém, determinada por fatores sociais e históricos, deu-se quase sempre do lado de fora da produção artística. As mulheres surgiram, ao longo da história, majoritariamente como musas, inspiração para autores e intérpretes homens.
Em diferentes fases, passando pela mulher inacessível e idealizada, eternizada nos versos de “Rosa”, de Pixinguinha, no começo do século XX, às responsáveis pelo sofrimento masculino nas canções "dor de cotovelo" das décadas de 1940 e 50; das musas da bossa nova, que despertavam inspiradas paixões platônicas, às divas – cantoras capazes de arrebatar a todos por sua beleza e força expressiva –, as mulheres sempre foram reféns do gênero e, mesmo quando musicistas de talento inegável, foram vistas antes de tudo como mulheres.
Até muito pouco tempo, o papel de instrumentista coube exclusivamente ao homem. A elas, o único instrumento permitido foi a voz, a partir da “época de ouro do rádio”, quando surgiram cantoras famosas nacionalmente, mas que interpretavam, com poucas exceções, canções escritas por homens. Nas décadas de 1960 e 70, intérpretes femininas surgiram com toda força e muitas deixaram um legado importantíssimo para a musicalidade brasileira. Mas quando se trata de instrumentistas, é necessário muito conhecimento da história de nossa música e uma memória invejável para citar uma lista de mulheres.
Nos últimos anos, porém, também dialogando com fatores sociais e históricos, as mulheres têm cada vez mais assumido esse papel. Primeiro, elas começaram a invadir o mundo dos compositores e, aos poucos, vêm se inserindo na função de musicistas de apoio, tocando instrumentos diversos como os de sopro, de cordas e percussivos.
No Recife, uma instrumentista que se destaca é a percussionista Lara Klaus, de 26 anos. Lara, que começou a estudar música aos oito anos, tocando violão, ainda fez aulas de teclado por alguns anos antes de se interessar pela bateria, instrumento que a levou para a percussão. A musicista também se formou em licenciatura em música na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 2009 e, ultimamente, toca com André Rio, Zé Manoel e com o guitarrista Luciano Magno.
“Até hoje eu sou a única mulher na maioria dos grupos em que toco”, afirma Lara, que se profissionalizou em 2003, quando fazia parte da banda Malakaii. “E a expectativa em torno de mim, por ser mulher, às vezes parece ser maior”, comenta a instrumentista, que em seguida passou a acompanhar diferentes artistas na noite recifense, acumulando experiência e recebendo cada vez mais convites para diferentes trabalhos. “Tudo aconteceu muito naturalmente”, resume.
O amadurecimento artístico de Lara Klaus e o reconhecimento de seu talento já apontam para a construção de um trabalho próprio, em que ela surge como protagonista, acompanhada de excelentes músicos. “Tenho planos de gravar e quero pelo menos começar a produzir um disco ainda esse ano”, diz. Ela já tem a companhia de André Macambira, com quem vai para o Festival Espírito Mundo, realizado na Inglaterra, França e Espanha, para tocar e ministrar oficinas de percussão.
Conheça Lara Klaus e confira um pouco do seu talento tocando:
O crescimento da presença feminina entre instrumentistas não significa, porém, que o assunto ainda não seja um tabu para muitos músicos homens, como a aponta a contrabaixista Juliana Santos: “Eu já passei por muitas situações difíceis, já fui várias vezes subestimada”, relata. Juliana despertou para a música aos 10 anos, quando começou a aprender violão de maneira autodidata. O mergulho na musicalidade a fez estudar violão clássico no Centro de Educação Musical de Olinda - CEMO. Há seis anos, descobriu o baixo por motivos práticos (a quase inexistência de mercado local para violonistas clássicos) e se apaixonou pelo instrumento.
Juliana hoje é destaque no meio forrozeiro e já acompanhou artistas como Petrúcio Amorim e Alcymar Monteiro. Atualmente, integra a banda da cantora Nádia Maia e toca na noite e em orquestras de baile. “Eu vivo só de música”, afirma a baixista. Entre as situações difíceis que já teve que passar, ela conta uma no mínimo curiosa: “Chegaram a dizer que eu estava tocando em cima de um playback e a cantora me mandou fazer um solo para que as pessoas acreditassem que eu estava tocando mesmo”.
Outra musicista acostumada a ser exceção é a baterista Karine Vieira, de 27 anos. “Ainda sinto dificuldade por ser mulher. Infelizmente ainda é um meio masculino”, diz Karine, complementando: “A bateria é um dos instrumentos em que ainda há mais preconceito”. Com o11 anos de vivência musical, a baterista conta que desde pequena “batucava em tudo”, hoje ganha a vida tocando em orquestras de frevo e de baile, além da Times Band.
Se ainda há barreiras, elas vêm sendo quebradas com o reconhecimento óbvio da qualidade de muitas instrumentistas, a despeito de seu gênero. E as mulheres vão superando a necessidade de serem musas ou divas para estarem presentes na musicalidade brasileira. “Ultimamente a coisa tem ficado mais comum, as pessoas aceitam mais”, avalia a percussionista Lara Klaus. “Quebrou bem mais o preconceito”, corrobora a baixista Juliana Santos: “Pessoas que antigamente me subestimavam hoje me chamam [para tocar]”.
Assim como em várias áreas profissionais, as mulheres vêm ocupando seu lugar natural no mercado musical, provando que competência e talento inato para música não escolhem gênero. E que a qualidade da música não tem a ver com o sexo dos instrumentistas, mas com a sensibilidade que só os verdadeiros artistas possuem. “A mulher tem uma graciosidade diferente, mas musicalmente não há diferença”, resume a baterista pernambucana Karine Vieira.
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