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A gordofobia é uma forma de discriminação, caracterizada pela falta de tolerância com pessoas consideradas acima do peso ideal para aquilo que se convencionou como “padrão de beleza”. Apesar da obesidade (18,9%) e o sobrepeso (54%) serem uma realidade para mais de 70% da população brasileira, segundo relatório do Ministério da Saúde, os episódios envolvendo gordofobia têm sido recorrentes.
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A realidade de quem sofre gordofobia no trabalho é alarmante. O que para muitos é apenas uma “brincadeira”, para as vítimas é algo que afeta diretamente vários aspectos da vida. Seja on-line ou off-line, os atos de gordofobia configuram crime e estão sujeitos à reparação de acordo com a lei.
Para Flávio Guarany, advogado da área trabalhista, a gordofobia pode ser caracterizada como assédio, quando um funcionário é constrangido com comentários inapropriados no ambiente de trabalho. “A vítima pode processar a empresa, com as provas devidas, testemunha, vídeo, entre outros”, diz. “A empresa pode ser condenada por danos morais. O amparo são as indenizações”, destaca o advogado sobre as ações que podem ser tomadas num caso de gordofobia no local de trabalho.
A designer de unhas Andy Miranda alega ter sofrido gordofobia desde criança. Ela diz que foi ensinada que o corpo gordo não era bonito, saudável e, por isso, não era digno de interesse. Para a designer, as crianças devem ser ensinadas que aparência não tem nada a ver com saúde e que peso não tem a ver com beleza. “Eu acho que esse ensino precisa vir do início. A gente só resolve um problema se começar pela raiz. Não adianta dar água pras plantas, as folhas parecerem bonitas e a raiz estar ruim, ela nunca vai ficar bonita por muito tempo", assinala.
Para Andy, a educação muda conceitos e posturas. "É ensinar desde cedo que corpo gordo não é sinônimo de doença, que uma pessoa gorda é linda do mesmo jeito que qualquer outra pessoa. É tirar esse 'mas': 'é gorda, mas tem um rosto lindo', 'é gorda, mas é saudável'. Não existe 'mas'. Somos pessoas gordas, assim como existem pessoas magras, altas, baixas, pretas, brancas", afirma.
Andy considera que a palavra é utilizada como ofensa. "Isso precisa parar. Se você ensina pra uma criança que algo está errado, ela vai acreditar que é, o mesmo se você ensinar que é certo. Ensine a ela que um corpo gordo é um corpo como qualquer outro. Não fale sobre corpos saudáveis, diga que existem pessoas saudáveis. Quem sabe, daqui a um tempo, essa visão distorcida seja melhorada”, observa a designer.
Andy fala sobre o processo de aceitação e sua importância. “A aceitação é exatamente isso, um processo. E ela é um processo eterno, na minha opinião. Porque algo que você construiu em anos pode ser destruído com uma única frase. Então, mesmo hoje em dia, quando eu já mudei muitos pensamentos meus a respeito de meu corpo, eu ainda tenho dias e momentos de ódio com ele por ter ouvido durante anos que era assim que eu deveria agir. A gente acaba deixando de fazer coisas simples, às vezes, pelo medo de ser ridicularizada em público pelas pessoas”, diz.
A designer revela comentários que teve que escutar sobre o seu corpo no âmbito de trabalho e em outros lugares. “Eu tento entender se tal comentário feito me afetou porque eu também acho isso ou porque alguém colocou na minha cabeça. Então quando alguém ainda insiste em dizer que eu preciso emagrecer, eu tento prestar atenção e penso: 'será que EU realmente quero fazer isso ou vou começar a achar que quero por conta do que essa pessoa disse?'. Às vezes, a gente começa a ver coisas que não existem, mas se tornam verdades porque as palavras têm força”, conta.
Andy defende que as pessoas tenham cuidado com as palavras. “Porque ninguém perguntou, porque não é da sua conta ou simplesmente pelo fato de que vai machucar alguém. As palavras podem abençoar ou amaldiçoar a vida de uma pessoa, mas não é todo mundo que se importa com isso. Se cada um cuidasse da própria vida e deixasse as pessoas fazerem suas próprias escolhas, teríamos menos experiências ruins”, desabafou.
Aversão e desumanização
Professora da UNAMA - Universidade da Amazônia, a psicóloga Bárbara Sordi explica que a gordofobia é considerada a aversão ao corpo gordo. “Mas ela tem uma complexidade porque envolve não só práticas discursivas de diversas instituições sobre a tutela desse corpo que tenta controlar e adestrar, como ela também produz efeitos psicológicos da subjetivação que envolvem o que você acha bonito, do que você tem aversão o que a gente de alguma forma exclui socialmente”, observa.
A psicóloga afirma que a gordofobia está associada então a uma lógica de desumanização. “Colocando pessoas que se encontram gordas em um lugar de marginalidade, elas vão sofrer preconceito de diversas formas, seja nas relações sociais, seja até mesmo nas questões espaciais arquitetônicas e serviços que não vão estar disponíveis ou acessíveis para elas”, diz.
A professora também aponta diferenças entre a gordofobia e a pressão estética. Bárbara explica que não são a mesma coisa. “A pressão estética está relacionada ao movimento do capitalismo que afeta a sociedade como um todo, que dita padrões de beleza que as pessoas precisam consumir e seguir. Muitas vezes afeta a forma como a pessoa se autoavalia, como ela se enxerga, as cobranças sociais que ela faz sobre si. Uma indústria, um mercado, lucra muito com isso, um sistema patriarcal que impõem um padrão e que valoriza os corpos que são ditos belos e geralmente esse são baseados em padrões eurocêntricos”, analisa.
Segundo Bárbara, a gordofobia é uma aversão que aparece na falta de espaços afastados em aviões, transportes públicos, hospitais, lojas. “Há uma dificuldade de adaptação desse corpo até mesmo pro consumo. São pessoas que vão sofrer dificuldade de encontrar certas profissões, porque são consideradas não aptas, não produtivas, pessoas mais próximas de doença, o que nem sempre é verdade, e também pessoas em que você acaba dando características de psicopatologias como com certos transtornos, pessoas descontroladas, compulsivas, que não têm força de vontade, ansiosas, preguiçosas", afirma.
Em relação aos perigos da gordofobia, a psicóloga relata em primeiro lugar a exclusão social, como também as questões psíquicas. “Você vê que é um isolamento, mesmo que não declaradamente escancarado mas, é um conjunto de fatos e ações que isolam e marginalizam as pessoas gordas. São pessoas que também passam pelo processo de vergonha, de culpabilização, de sofrimento diante o preconceito desse entorno social, se apagam todas as outras características e potencialidades e se exalta a questão do excesso de peso, como negativa, prejudicial”, observa.
Bárbara também avalia como esse preconceito afeta a autoestima. “Em relacionamentos amorosos, amizades, é muito comum você ouvir relatos de pessoas que sofrem preconceito, piadas, a dificuldade do relacionamento ou o relacionamento que é feito às escondidas porque a pessoa tem dificuldade de apresentar a pessoa para outras e assumir aquela relação. Isso afeta em alguma medida as relações sociais e os sentimentos dessa pessoa consigo”, diz.
Reflexão e diálogo
A psicóloga informa que a ruptura dos padrões passa pela reflexão e pelo diálogo. “Umas das questões importantes é o diálogo, é começar a desnaturalizar as frases que nós falamos automaticamente e muitas vezes sem reflexão em relação às demais pessoas. A discursividade, o diálogo, a reflexão, a leitura de livros são muito importantes para perceber que as pessoas são diferentes, têm estruturas diferentes, comportamentos diferentes, realidades diferentes e vão se posicionar de formas diferentes sempre. A gente não tem como pedir um padrão unívoco da sociedade”, adverte.
Para Bárbara Sordi, a classificação de preconceitos, gordofobia, homofobia, machismo, entre outros, como “mi mi mi” impede a problematização. “Nós vivemos numa sociedade capitalista que defende o mito da meritocracia, que é um mito que apazigua, apaga e não reflete criticamente em relação à estrutura social, às questões dos determinantes sociais que interferem nesse sujeito. Essa ideia do individualismo é muito complicada”, pondera.
Bárbara também avalia o preconceito em relação a pessoas negras. “Quando a gente vai falar de um corpo que é marcado pela interseccionalidade, e a questão de raça é indiscutível, quando você sabe que o corpo negro é extremamente mais violado em todos os sentidos, pelo racismo estrutural no Brasil, então sem dúvida mulheres negras gordas são as mais afetadas diante desse padrão de beleza que se coloca e dessa marginalização social”, contou.
A psicóloga destaca a psicoterapia como uma maneira de ajudar a lidar com o preconceito, para quem tem recurso financeiro para isso, mas também leituras, grupos, seguir pessoas que repelem esses padrões estéticos. Segundo Bárbara, é importante começar a consumir outros produtos, se aproximar de pessoas que debatem esse tema para desconstruir essa imagem e discurso que são impostos pela sociedade.
“A luta contra a gordofobia precisa acontecer com uma politização desse processo de exclusão dos discursos, das piadas, dos comentários cotidianos, dos filmes, dos programas de tevê. A gente precisa falar mais sobre isso, trabalhar a questão da inclusão, da aceitação, da diferença. É um processo que a gente precisa fazer de uma forma muito integrada e que pode começar em casa, mas não só. Precisa se estender a discussões políticas e para políticas públicas”, destaca a psicóloga.
Com o auxílio do programa Crescer Saudável, integrante do Programa Saúde na Escola do Ministério da Saúde, novas abordagens a respeito do sobrepeso procuram combater a gordofobia. Iniciativas públicas buscam a prevenção da obesidade infantil sem a reprodução de preconceitos ou estereótipos negativos, informa a Agência Brasil.
Por Maria Rita Paiva e Yasmin Seraphico.