O mais antigo restaurante do Brasil, o Leite, no Recife, carrega o peso da história. Fundado em 1882, acaba de completar 130 anos de tradição detalhista. O palito de dentes, por exemplo, é feito à mão em um convento de Portugal. O rótulo da garrafa de água mineral traz reprodução do azulejo português da fachada. As cadeiras de jacarandá são quase centenárias, as bandejas são de prata, os guardanapos, de puro algodão.
Clientes ilustres, como embaixadores e ministros, são servidos com garfo e faca de prata franceses. As chaleiras, no entanto, foram aposentadas com a chegada do primeiro micro-ondas.
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O equipamento chegou ao restaurante faz três meses, mas não se iluda que pratos cuidadosamente preparados pelo chef de cozinha passem pelo aparelho. A equipe do Leite garante que o micro-ondas é usado apenas para esquentar água e para derreter o chocolate para a elaboração de sobremesas.
Aliás, o micro-ondas não é a única novidade tecnológica que contrasta com as "relíquias" do passado do Leite. Recentemente, o restaurante também adquiriu uma máquina de lavar louça e um forno Rational alemães, que "só faltam falar", como costuma dizer o chef Edmilson Araújo Chaves, de 52 anos, o "Bigode". "São os detalhes", garante o proprietário, o português de 81 anos Armênio Ferreira Diogo Dias, "que fazem a diferença e tornam o restaurante único".
Nasa
No Leite, que funciona de domingo a sexta-feira no almoço, o piano de cauda começa a ser tocado religiosamente às 12h30 para a clientela que ocupa as 36 mesas em um salão livre de cheiro e barulho. O novo sistema central de refrigeração da casa tem tecnologia da Nasa para purificação do ar, o que elimina a contaminação do ambiente por qualquer aroma de alimento.
A acústica recebeu novo tratamento na última grande reforma - realizada há três anos - e, desde então, o teto de treliça e as paredes acolchoadas permitem conversas tranquilas mesmo com o salão cheio.
"Queremos cada cliente tratado com carinho", diz Dias, ao lembrar, com satisfação, o elogio de um visitante que disse ter ficado muito satisfeito com a comida, o vinho e o ambiente. "O Leite não é um restaurante qualquer", orgulha-se ele. "O restaurante não é meu, é da sociedade; eu cumpro a minha função", afirma ele, dedicado ao estabelecimento desde a sua aquisição, em 1956, quando chegou ao Brasil com seus irmãos.
Na época, o Leite estava falido e Dias o recuperou, mantendo as características clássicas, de requinte e sobriedade que o marcam desde a sua fundação, quando criado por um outro português, Manuel Leite.
Personalidades. A nata da política e do empresariado se mantém fiel ao local, por onde já passaram presidentes como Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros e o ex-presidente Lula. O sociólogo Gilberto Freyre era frequentador assíduo e batizou um prato, o medalhões à Gilberto Freyre. Sentava sempre na mesa 19, onde acendia seu charuto e tomava café com licor.
Cheio de histórias, Dias relembra ter quebrado um tabu ao receber mulheres sozinhas - em 1958, ele ousou atender duas senhoras desacompanhadas - e também vivenciou resquícios deixados pela escravidão. Um funcionário negro certa vez lhe beijou a mão em sinal de subserviência. "Me espantei, não sabia o que era aquilo", relatou, ao garantir que o gesto nunca mais se repetiria.
Por sua relevância na história de Pernambuco e do Brasil, o Leite ganhou um capítulo no livro A Saga do Açúcar, da antropóloga Fátima Quintas. Ela destaca que o restaurante nasceu em um momento revolucionário - fim do Império e da Monarquia, abolição da escravatura, início da República.
"Sua história é importante porque nela se conjugam dois fenômenos aparentemente opostos: os fortes ecos de uma mutação política e o respeito à tradição cultural em uma época em que não foi fácil sustentar os paradigmas do passado", diz a escritora.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.