Um dos conceitos nevrálgicos da obra do cientista social pernambucano Josué de Castro foi o de “agricultura de sustentação”. O termo se refere aos cultivos que ampliam as possibilidades alimentares de uma região e contribuem diretamente com as demandas da população. Seu Mielson Silva não sabe quem é Josué de Castro, mas há mais de vinte anos mantém o cultivo de diversos vegetais em uma horta urbana na BR-232, no Recife, para consumo próprio e venda. Ao longo da rodovia, bem como na BR-101, outras propriedades com estrutura similar chamam atenção: vendo as terras inativas, dezenas de agricultores passaram a ocupar o espaço com plantações.
Seu Mielson conta que era morador de uma vila nas proximidades da horta, desapropriada por iniciativa do governo. “Com a indenização que recebi, comprei uma casa no Curado I, mas eu já tinha reparado no terreno. Comecei plantando quiabo, quando vi que estava dando certo passei para o alface e coentro. Agora temos muitos clientes, gente até que faz questão de colher os vegetais com as próprias mãos”, comemora. De acordo com Dona Josefa da Conceição, companheira de Mielson e parceira no empreendimento, os preços baixíssimos em relação às feiras e a ausência de agrotóxicos são as características da plantação que mais atraem consumidores. “Só uso estrume e água. A gente se sente feliz de estar trabalhando para passar uma mercadoria de qualidade para os clientes. A unidade do alface aqui custa R$ 1, já o ‘mói’ de coentro vendemos a partir de R$ 2 reais”, comenta.
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Josefa e Mielson contam com seis funcionários fixos em horta na BR-232. (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)
Basta passar alguns minutos na horta para observar a aproximação dos clientes. A missionária Hercília Bezerra sai do Bairro de Candeias, em Jaboatão dos Guararapes, para fazer a feira na horta de Mielson e Josefa. “Um pé de alface onde moro custa R$ 5 e aqui compro por muito menos e ele ainda dura até 15 dias sem estragar, porque não possui produtos tóxicos”, conta. Com uma cesta repleta de hortaliças, a consumidora comenta que levará boa parte dos produtos para parentes e amigos. “O pessoal fica impressionado com a aparência e o sabor dos vegetais e sempre me pede para comprar alguns para eles. Aqui também tenho a vantagem de comprar direto do produtor e pode negociar o preço com ele quando compro em grande quantidade”, explica.
Hercília Bezerra sai do bairro de Cadeias, em Jaboatão dos Guararapes, para fazer a feira em hortas urbanas da BR-232
O casal de agricultores autônomos já gera seis empregos fixos. Uma notícia animadora diante do quadro de crescente concentração fundiária e de terras inativas do Brasil. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), as grandes propriedades privadas passaram de 238 milhões para 244 milhões de hectares. A área é dividida entre 130 mil grandes imóveis rurais, que possuem 47,23% das terras cadastradas no Incra. Já o Atlas da Terra Brasil 2015, realizado pelo CNPq/USP, aponta 175,9 milhões de hectares.
“O território brasileiro possui 850 milhões de hectares, cerca de 300 milhões de hectares são áreas devolutas. Essa área citada pelo Incra poderia ser utilizada para reforma agrária, mas falta a vontade do governo de construir isso”, lamenta Paulo Mansan, que compõe a diretoria estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). De acordo com o Incra, “o imóvel rural é considerado improdutivo quando, ao aferir sua produtividade, o órgão constatar que imóvel não alcança os graus de exploração exigidos por lei”. Assim, ao não cumprir o que a instituição chama de “função social”, de acordo com a Lei 8.629/03, o imóvel pode ser “desapropriado para fins de reforma agrária”.
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Acompanhamento da Ceasa
De acordo com a coordenadora do projeto integrado das hortas Comunitárias do Centro Estadual de Abastecimento (Ceasa), em parceria com o Sindicato do Comércio de Hortifrutigranjeiros (Sindifrutas), Jaciara Pereira, a Ceasa já possui 90 agricultores cadastrados nos 37 hectares dos nove anéis rodoviários na área de entorno da instituição. “O projeto existe desde 2008 e foi criado com o intuito de organizar os terrenos próximos à Ceasa. Essas áreas são patrimônio da União. Desta forma, os agricultores não podem morar nelas, mas podem utilizá-las para o plantio”, explica.
Francisco Santos é um dos agricultores que já está cadastrado na Ceasa. “Posso cultivar, mas nada é meu. Eles doam adubo orgânico e sempre vem fiscalização da Adagro (Agência Embrapa de Informação Tecnológica, pois não podemos usar agrotóxicos”, coloca. Seu Francisco observa a presença de seguranças na área. “Mesmo assim, acontecem muitos assaltos nessa região”, completa. De acordo com Jaciara Pereira, apenas dois policiais fazem a cobertura da área. “Não tem segurança 24 horas, mas eles passam o dia monitorando toda a área e mantém contato constante com a gente”, afirma.
Agricultor Francisco Santos é cadastrado pela Ceasa e recebe adubo gratuitamente. (Paulo Uchôa/LeiaJá Imagens)
De acordo com a assessoria de imprensa do Ceasa, “no decorrer do programa, houve uma acentuada redução na utilização de agrotóxicos, sendo incentivado o controle de pragas e doenças por meio de técnicas alternativas, que não prejudicam o meio ambiente nem os consumidores desses produtos”. A instituição coloca ainda que as culturas predominantes das hortas urbanas são quiabo, coentro, alface, cebolinha, capim milhã, sendo secundário o plantio de macaxeira, bredo, pepino, maracujá, batata-doce, rabanete, rúcula, plantas ornamentais e paisagísticas.
Para Jaciara Pereira, um dos maiores ganhos das hortas urbanas é o contato com a natureza que elas proporcionam. “Muita gente nunca viu um pé de alface na vida. É uma questão de saúde trazer mais pessoas para perto do campo, afinal dependemos dele”, afirma. Francisco Santos relata receber, além de consumidores, excursões estudantis em sua horta. “Os colégios trazem as crianças para fazer visita. Elas não têm contato com a terra, ficam impressionadas quando veem a plantação. Não troco meu trabalho por nenhum outro”, conclui.
A experiência de Casa Amarela
Há cerca de dois anos, cansada de esperar por soluções do governo para uma praça abandonada na Rua Professor Souto Maior, a população do Bairro de Casa Amarela, Zona Norte do Recife, resolveu se organizar para fundar uma horta comunitária. “O terreno não tinha posse e era repleto de sujeira e rejeito de obras descarregado por algumas construtoras na área e na beira do canal. A terra estava tão comprometida que precisamos bater com marreta para alcançar o chão. Fizemos e limpeza, trouxemos terra de fora e começamos a plantar”, lembra o agronômo Augusto Neto, um dos moradores de Casa Amarela responsáveis por revitalizar a área.
Atualmente com grande diversidade de árvores, ervas e frutas, a horta comunitária é conservada pelos moradores da região, que já consomem os frutos plantados. O aposentado Manoel Guedes, morador da Rua Professor Souto Maior, destaca o poder da horta de integrar a vizinhança. “Passo de uma a duas horas por dia cuidando da plantação. O pessoal aqui colhe os frutos, faz chá, conversa. Cada um cultiva uma coisa. O mundo precisa de mais verde”, coloca o aposentado Manoel Guedes.
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Faça sua horta urbana
A experiência bem-sucedida de Casa Amarela serviu de exemplo para a comunidade do Poço da Panela. “O nome da horta é Jardim Secreto. Houve uma receptividade muito grande dos moradores e fui chamado para ajudar na construção da horta de lá. Já iniciamos o plantio”, comemora Augusto. O agrônomo dá dicas sobre o que é preciso para construir uma horta urbana.
1) Quanto mais longe dos carros melhor. Os gases poluentes prejudicam o desenvolvimento da plantação. Caso a horta esteja perto das vias, uma primeira camada, mais próxima à rua, deve conter espécies mais resistentes, como macaxeira, batata doce e frutas em geral;
2) Crie canteiros nas áreas mais centrais do terreno para acomodar as ervas, que são mais delicadas;
3) Os terrenos urbanos costumam ser bastante desgastados. É importante utilizar adubo e retirar pedras, para que as plantas se enraizem;
4) Por fim, é determinante fazer limpezas constantes do terreno, retirando as ervas daninhas antes que cresçam e regando bastante as plantações.