O produtor musical paraibano Iverson Sousa de Araújo, ou DJ Ivis, como ficou conhecido após alcançar o sucesso na carreira fonográfica, foi preso em Fortaleza (CE) após ser flagrado por câmeras de segurança agredindo sua ex-esposa, Pamella Holanda. O caso ganhou os noticiários no último dia 11, quando Holanda resolveu romper com o silêncio e divulgar, em suas redes sociais, as imagens nas quais era cruelmente espancada na frente da filha de nove meses do casal. As cenas de violência, no entanto, não são raridade no Brasil.
17 milhões de mulheres vítimas de violência física, psicológica ou sexual
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Só no último ano, de acordo com uma pesquisa encomendada pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, 17 milhões de mulheres (24%) foram vítimas de violência física, psicológica ou sexual. Mesmo que agravada pela situação de crise sanitária, a porcentagem apresenta estabilidade em relação à pesquisa de 2019, quando 27,4% afirmaram ter sofrido alguma agressão.
Para Maria Júlia Leonel, advogada criminal, doutoranda em Direito Penal e coordenadora da graduação de Direito da Uninassau Boa Viagem, o caso protagonizado pelo DJ escancara também a falta de percepção dos agressores, que sentem-se “legitimados” para praticarem os atos de violência.
“A gente percebe que ele se sente legitimado a fazer aquelas agressões, e depois vir a público e justificar. Não à toa ele tem um aumento de seguidores. Ou seja, ele faz aquilo, mas na cabeça dele existe uma justificativa para os atos, como é o caso de muitos homens que agridem mulheres nas mais diversas formas”, explicou Leonel, se referindo às declarações dadas por Araújo algumas horas depois das imagens serem divulgadas.
Em suas redes sociais, o DJ Ivis confirmou as agressões e afirmou que o relacionamento estava conturbado, além de ressaltar que havia se separado de Holanda há uma semana. Ademais, ele relatou ter sido ameaçado pela ex-esposa. O artista chegou a processar a vítima por calúnia, pedindo que ela removesse os vídeos de sua rede social e que não falasse sobre o caso à imprensa. A Justiça do Ceará, contudo, negou o recurso.
Cinco em cada dez brasileiros presenciou cenas de violência contra a mulher no último ano
As cenas de horror divulgadas pela vítima chamam atenção para a falta de interferência de terceiros em sua defesa. No primeiro momento, uma mulher, identificada como mãe de Pamella Holanda, está presente enquanto ela é atingida por socos. Na sequência, a gravidade das agressões é acompanhada por um homem do mesmo porte físico que o DJ. Ninguém interfere.
Novamente, a situação exposta no vídeo parece refletir aspectos da sociedade brasileira. O estudo conduzido pelo Fórum Nacional de Segurança Pública exemplifica: cinco em cada dez pessoas relataram ter visto uma mulher sofrer algum tipo de violência no seu bairro ou comunidade ao longo dos últimos 12 meses. Ou seja, quase metade dos brasileiros sabe identificar uma cena de agressão contra a mulher, mas nem sempre presta socorro.
“É difícil julgar a falta de reação da mãe [de Pamella Holanda]. Até que ponto aquela mãe também não teme aquele homem? Ela é mais uma vítima daquilo tudo. O amigo dele é de quem se esperava uma postura enfática”, afirmou Leonel. Segundo a advogada, os casos onde fica comprovada a omissão do socorro são passíveis de punição legal.
Para a especialista, esse tipo de comportamento isento de responsabilidade coletiva parte do pressuposto de que “não se deve interferir em briga de casal”.
“Nós normalizamos a violência e entendemos que a violência faz parte de um contexto conjugal porque essa foi a sociedade na qual fomos educados. É preciso desfazer, por meio de uma educação que promova os debates sobre gênero, essa percepção de contexto familiar”, enfatizou.
E embora a maior parte dos crimes relacionados à violência contra a mulher ocorra dentro dos lares, onde a incidência de testemunhas é muito baixa, o senso comum tende a duvidar da palavra das vítimas, desencorajando as denúncias.
“Do mesmo jeito que existe esse estereótipo de quem pratica o crime, também existe o perfil esperado da vítima. No caso de Pamella Holanda, nós vemos uma mulher independente financeiramente e isso acaba fomentando o surgimento de questionamentos: Por que ela não saiu dessa situação?”, questiona Maria Júlia Leonel.
A complexidade e as diferentes nuances das agressões, contudo, não dão conta de responder esse tipo de questionamento.
“Se não existisse um vídeo e as pessoas tivessem ouvido a palavra desse DJ, que tem certa popularidade, boa parte tenderia a acreditar nele. A palavra da vítima, que é tão importante, passa a ser confrontada a todo momento para saber se ela é vítima de verdade”, finaliza a advogada.
Lei Maria da Penha
A ocorrência de lesão corporal no âmbito da violência doméstica contra o DJ Ivis aconteceu no dia 3 de julho. No dia seguinte, 4 de julho, a Justiça do Ceará determinou medidas protetivas em favor de Holanda, mas o agressor não foi preso naquele momento, já que a última agressão acontecera mais de 24 horas antes do registro da ocorrência. Na prática, isso significa que não existia mais “flagrante”.
O caso, no entanto, teve uma reviravolta após as imagens ganharem notoriedade pública. A partir disso, o produtor foi preso preventivamente na última quarta-feira (14), com base no fundamento de risco à ordem pública. A medida não retira a investigação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), mas é uma forma da Justiça garantir a detenção do DJ antes da conclusão do inquérito policial.
“Muita gente acha que a Lei Maria da Penha criou os crimes contra a mulher, mas na verdade não é isso. O que a lei faz é agravar algumas situações e criar procedimentos com relação a violências que acontecem em contexto familiar, o que não necessariamente precisa ter a mulher como vítima”, explica Maria Júlia Leonel.
Em vigor há 15 anos, a Lei Maria da Penha passou por diversas modificações. Todas elas representam o aprimoramento do mecanismo, consequência direta do debate contínuo sobre o assunto. As medidas protetivas, que têm como objetivo proteger um indivíduo em situação de risco, são um exemplo disso.
Redes de apoio e prevenção
No Recife (PE), capital pernambucana, a violência contra a mulher é um dos assuntos centrais a serem debatidos pela Secretaria da Mulher. Conforme explica a secretária da pasta, Glauce Medeiros, a prevenção e assistência ocorrem por meio de diferentes frentes.
“Orientamos que, em caso de perigo iminente ou no momento em que esteja acontecendo uma agressão, a mulher - caso seja possível -, ou mesmo pessoas próximas, devem acionar o 190 da Polícia Militar para que seja garantida intervenção imediata. Não havendo risco imediato, a mulher deve procurar o Centro de Referência Clarice Lispector, o Centro da Mulher Metropolitana Júlia Santiago ou as Salas da Mulher, localizadas nos Compaz Ariano Suassuna, Eduardo Campos e Dom Helder Câmara, para receber atendimento de uma equipe multidisciplinar especializada e garantir acompanhamento socioassistencial, jurídico e psicológico”, disse Medeiros.
Ela explica ainda que as ações da pasta são divididas em dois eixos temáticos: “No Eixo da Prevenção, nós temos o Programa Maria da Penha vai à Escola que visa contribuir com a educação não-sexista e a promoção da cultura da não violência contra a mulher através de oficinas lúdicas e rodas de diálogos realizadas nas escolas da rede municipal de ensino a partir das turmas do 3º ao 9º ano do ensino fundamental e do EJA”.
“No Eixo do Enfrentamento, temos o Centro de Referência Clarice Lispector e salas da mulher instaladas nos Centros Comunitários da Paz COMPAZ Ariano Suassuna, Eduardo Campos e Dom Helder Câmara e o Centro da Mulher Metropolitana Júlia Santiago onde são ofertados os seguintes serviços: atendimento social, jurídico e psicológico às mulheres em situação de violência doméstica e sexista através de equipe multidisciplinar formada por assistentes sociais, advogadas, psicólogas, educadoras sociais e arte-educadoras”.
COMO DENUNCIAR
Situações de violência contra a mulher podem ser denunciadas em distritos policiais e delegacias especializadas. Existe também uma rede assistencial:
DISQUE 180
Exclusivo de atendimento à mulher, o número presta apoio e escuta mulheres em situação de qualquer tipo de violação ou violência de gênero.
LIGA MULHER
Serviço de orientação sobre o atendimento a mulheres em situação de violência através do 0800.281.0107, instalado no Centro Clarice Lispector, localizado no Centro do Recife.
ATENDIMENTO À DISTÂNCIA
Este serviço recebe mensagens e presta o acolhimento e apoio às mulheres emocionalmente abaladas 24 horas por dia. Através do número (81) 9488-6138, no WhatsApp, são repassadas orientações sobre o que fazer quanto às agressões e também são repassados direcionamentos às mulheres que se encontram em uma delegacia de polícia prestando queixa da violência sofrida.