Foram anos de convivência entre os dois. Entretanto, os dias no zoológico estão diferentes agora. Não há rugido, apenas silêncio no recinto. O animal faleceu no último 16 de janeiro aos 21 anos. Foto: Cortesia
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Um menino na faixa dos cinco anos chorava alto. Impossível passar despercebido. Estava acompanhado da mãe, que tentava consolá-lo. “O que foi que aconteceu?”, questionou o veterinário Dênisson Souza, preocupado. A mãe do garoto contou que chegaram ao local tarde demais, o leão já havia sido recolhido. Eles moravam em Natal-RN e não teriam tempo de fazer nova visita antes da volta. Passava das 17h, horário em que o leão é levado para dormir. O veterinário não hesitou. Chamou o cuidador, responsável pelas chaves, e levou o menino pela parte de trás, onde poderia ver o animal bem de perto, no espaço onde dormia, chamado cambiamento. “Eu não podia deixar ele ir para Natal sem ver o leão”, diz Souza, como se falasse de algo muito grave. “A alegria dele foi muito boa. Essa sensação de ver o leão você não esquece nunca mais.”
A tal sensação alcançou Dênisson assim que ele chegou como estagiário ao Parque Estadual de Dois Irmãos, na Zona Norte do Recife. Ele tinha 20 anos e o felino, Léo, era um filhote de apenas dois, único leão sobrevivente da tragédia do Circo Vostok, em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife (RMR). Em 9 de abril de 2000, o menino José Miguel dos Santos Fonseca Júnior, de seis anos, morreu após ser puxado para dentro da jaula por um dos cinco leões do local. Os bichos estavam esfomeados e eram vítimas de maus-tratos. Tiveram, por exemplo, as garras arrancadas. Naquela noite, quatro deles foram mortos pela polícia e apenas o filhote Léo se safou.
Fascinado por animais silvestres, Dênisson criou um laço com o leãozinho. Mesmo proibido de afagar o filhote, devido ao risco de ser atacado, ele ia escondido dia e noite para conversar e fazer carinho. Após o término do estágio, passaram-se quatro anos até que ele voltasse ao parque, agora como veterinário formado. Foi ver o seu xodó, que estava bem maior e imponente. Léo o reconheceu. Comemorou, buscou afago e se agitou. “Eu fiquei muito emocionado. Nunca imaginei que ele teria essa lembrança. Voltei para casa feliz da vida. Liguei para os meus pais, disse: ‘o leão me reconheceu’”, lembra o veterinário.
Foram anos de convivência entre os dois. Entretanto, os dias no zoológico estão diferentes agora. O trono de pedra em que Léo ficava está vazio. Ele faleceu no último 16 de janeiro aos 21 anos, idade considerada avançada, pois a espécie vive em média 12 anos em seu hábitat.
Em outubro de 2020, o animal apresentou um sangramento na boca. Dênisson supôs que havia algum pedaço de osso de galinha preso entre os dentes. Resolveram fazer um check-up. Foram reunidos cerca de 30 profissionais. “A coisa é séria”, alertou a odontóloga só de olhar a boca do leão. Dênisson sentiu o chão faltar. Enquanto os colegas estavam focados no animal, ele se afastou um pouco para respirar fundo e se recompor. Cerrava os punhos para não chorar. “No meio do povo eu tinha que manter uma posição firme, para poder dar um norte à equipe.”
Léo passou cerca de uma semana para se recuperar da anestesia, tempo muito longo, indicativo de mau funcionamento de órgãos. O resultado dos exames foi devastador: o leão tinha um tumor maligno e sem cura na boca. “(...) continuaremos do lado dele, dia e noite, oferecendo, além do tratamento adequado, uma dose extra de afeto”, dizia publicação do zoológico no Instagram. Ele ainda apresentava problemas no rim e no baço.
Após o diagnóstico, Léo recebeu muitos cuidados. Foram ministrados medicamentos fitoterápicos e homeopáticos. Em reuniões remotas à noite, debatia-se o melhor tratamento para que não sofresse. Os últimos 15 dias de Léo, entretanto, foram de perda de qualidade de vida. O sangramento na boca não parava, o tumor cresceu, dificultando o mastigar, ele empalideceu e ficou fraco. “Pedi muito a Deus que eu não estivesse aqui”, lembra Dênisson. Ele foi responsável por atirar os dardos para que fosse realizada uma nova bateria de exames no leão, que avaliaria quais novas medidas poderiam ser tomadas. Ele não só estava presente, como coordenava a ação. Com base na última vez que o felino havia sido anestesiado, toda a equipe entendia os riscos. O animal sofreu uma parada cardíaca. Os profissionais concordaram em não fazer as manobras de reanimação. Morreu nas mãos do veterinário.
Foto: Cortesia
Dênisson chora tão logo entra na área de cambiamento do leão. Era ali que o animal se deitava e recebia o carinho. O veterinário olha para o trono de pedra com pesar. Aponta o local da grama, na parte mais baixa do recinto, em que o amigo costumava se deitar com a barriga para cima, olhando para o veterinário como se questionasse se não viria afagá-lo. “Ele tinha um urro tão belo”, lembra.
Desde que era estagiário e ia escondido passar os dedos entre os pelos do animal, Dênisson assobiava para Léo uma canção que gostava muito: “Onde Estará o Meu Amor?”, de Maria Bethânia. “Eu queria que ele associasse alguma coisa boa a mim. Eu queria que quando ele ouvisse um assobio, ou alguma coisa que acalmasse, que ele fizesse uma referência a mim. Não sei se fazia efeito. Eu me sentia muito bem em ficar assobiando e coçando e ele baixando a cabeça até encostar na grade. Acho que fazia mais bem a mim”.
Onde Estará o Meu Amor?
(Maria Bethânia)
Como esta noite findará
E o Sol então rebrilhará
Estou pensando em você
Onde estará o meu amor?
Será que vela como eu?
Será que chama como eu?
Será que pergunta por mim?
Onde estará o meu amor?
Se a voz da noite responder
Onde estou eu, onde está você
Estamos cá dentro de nós sós
Onde estará o meu amor?
Se a voz da noite silenciar
Raio de Sol vai me levar
Raio de Sol vai lhe trazer
Como esta noite findará
E o Sol então rebrilhará
Estou pensando em você
Será que vela como eu?
Será que chama como eu?
Será que pergunta por mim?
Se a voz da noite responder
Onde estou eu, onde está você
Estamos cá dentro de nós sós
Onde estará o meu amor?
Se a voz da noite silenciar
Raio de Sol vai me levar
Raio de Sol vai lhe trazer
Será que pergunta por mim?
Onde estará o meu amor?
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Foram muitos carnavais lado a lado. Dênisson não gosta do período carnavalesco e pedia para trabalhar todos os dias. Era seu ‘refúgio’, como define. Com o local fechado e menos trabalho, o veterinário conseguia passar um longo tempo sozinho com o parceiro ao som da natureza que circunda o parque. Quando ia embora, percebia o leão colocar a pata entre suas pernas, puxando para perto, como a pedir que ficasse.
Dia das Crianças, a data mais importante para o zoológico, também é marcante para Dênisson. Era um dia para estar preparado fisicamente, pois ficava em pé encostado na área do leão o dia todo, não saía nem para almoçar. Assim, conseguia impedir as crianças de jogar coisas e estressar o animal.
Foto: Lu Rocha/Semas
O trauma da tragédia do Circo Vostok era perceptível no comportamento do bicho. Ficava alterado quando avistava a farda de bombeiros ou policiais militares ou o giroflex das viaturas. Os bombeiros costumavam trazer animais resgatados, como jiboias e jacarés para o zoológico. Ao notá-los, Léo corria, batia na parede e urrava sem parar. Também urrava quando os policiais passavam fardados em frente ao seu recinto. O veterinário percebeu que muitos militares caminhavam ali de má-fé, com o intuito de deixar o felino alterado. Paravam a viatura em frente ao recinto, abriam os braços encostados na grade, exibindo as fardas. Quando Dênisson estava perto e percebia a aproximação dos policiais, corria para recolher o animal ao cambiamento.
O contato entre Dênisson e Léo sempre foi separado por grades. O veterinário desejou muitas vezes que aquela barreira não existisse. Imaginava-se deitado em uma rede, com uma perna para fora, alisando a barriga do animal. Ele chegou a fazer a proposta de colocar a rede para deitar com o leão, mas o gestor do parque à época negou. “É um risco que, às vezes, não é bom a gente se submeter porque se tiver um acidente prejudica a imagem da instituição”, diz. “Mas acho que ele ia fazer nada não”, imagina. Ele também desejava que o trono fosse bem mais alto, para o leão ser observado de baixo para cima.
Assim como Léo marcou a chegada do veterinário, também está marcando sua saída. Em dezembro de 2020, ele pediu demissão por acreditar que não está sendo devidamente valorizado. Ainda não tem data para largar o posto, mas pretende trabalhar com consultoria. Outro animal com quem tem grande proximidade é o chimpanzé Sena, que tem mais de 60 anos e catarata no olho direito. “Eu não quero estar aqui quando ele morrer”, revela.
Quando Dênisson viu aquela criança chorando por não conseguir ver o leão, ele se enxergou menino outra vez. O pai costumava lhe trazer ao Parque Estadual Dois Irmãos a cada dois, três meses. Ele conhecia cada bicho no parque, saía correndo dizendo o nome de cada um, exibindo-se para as outras crianças. Ele entendia desde pequeno o impacto que o leão, com a fama de rei das selvas, poderia causar nas crianças.
Sua conta no Instagram tem apenas duas publicações. Em uma apresenta seu currículo profissional, na outra se despede do amigo: “Ao seu lado desfrutei dos melhores sentimentos e dos quais muitos humanos carecem: amizade sincera, desprovida de ego, sem guardar rancor. Você não será esquecido nunca e hoje só quero te dizer obrigado, obrigado, obrigado. Obrigado pela confiança em mim, por me deixar te acariciar, por aceitar minha companhia, cuidar de você por tanto tempo. Vai em paz meu querido ‘léo’”.
Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
O corpo de Léo foi destinado para pesquisas científicas. Segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco (Semas-PE), os ossos foram preservados para a osteotecnia, que faz reconstrução do esqueleto, com o objetivo de uso em aulas práticas nas áreas de biologia e medicina veterinária, além de ações de educação ambiental. A pele do mamífero passa por processos de avaliação para possível taxidermia, procedimento popularmente conhecido como empalhar. A tradicional área dos leões deverá ser destinada para outro animal residente do parque e que seja uma espécie nativa brasileira. Não há perspectivas de trazer um novo leão.
O Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) decidiu que a família do menino morto pelos leões do Vostok deveria receber uma indenização de R$ 1 milhão. O valor foi reduzido para R$ 250 mil pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) com base no "princípio da razoabilidade e nos parâmetros geralmente adotados".
Após a tragédia, vários projetos proibindo a presença de animais selvagens em espetáculos surgiram no país. O veterinário Dênisson Souza acredita que o ocorrido acabou salvando outras centenas de animais a partir do endurecimento das leis e fiscalizações.