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A equipe de projetos em tecnologia assistiva do curso de engenharia mecânica do IFPE. (Rafael Bandeira/LeiaJáImagens)
A mágica precisa de apenas sete minutos para acontecer. Dos primeiros desenhos cuidadosos dos estudantes do curso de engenharia mecânica do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), uma impressora 3D é capaz de transformar vidas. Desde o ano de 2014, o professor Ângelo Costa e seus alunos trabalham na concepção e impressão de dispositivos que já auxiliaram 29 pacientes do Hospital das Clínicas (HC), localizado no Recife, acometidos por doenças como artrite, artrose e Parkison, todas responsáveis por causar de rigidez muscular, que dificulta a realização das Atividades da Vida Diária (AVD), isto é, tarefas básicas de autocuidado, como vestir-se, escovar os dentes e até alimentar-se. Viabilizado a partir de um edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto é uma parceria com o Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“Começamos trabalhando apenas com Parkinson, depois fomos expandindo para outras doenças. Percebemos que o terapeuta faz o diagnóstico, mas precisa de certas ferramentas, que chamamos de adaptações, dispositivos que, muitas vezes, nem existem no mercado nacional”, coloca o professor Ângelo. A falta de equipamento faz com que os terapeutas mais habilidosos construam os dispositivos manualmente, com materiais adaptáveis ao corpo, como o espuma vinílica acetinada (EVA). “Nossa ideia foi entrar com a engenharia, para desenvolver produtos melhores e comercializáveis a um preço melhor”, completa.
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Utilizando o ABS como matéria-prima, a primeira grande demanda do grupo foi a produção do “engrossador”, conforme o professor batizou o dispositivo cilíndrico capaz de se acoplar a objetos como agulhas e canetas, devolvendo a capacidade do usuário de executar atividades importantes. “Outro produto criado por nós foi o abridor de zíper. Uma peça pequena, muito simples, que serve para abrir e fechar roupas ou mochilas sem que o usuário precise pedir ajuda o tempo todo”, explica Ângelo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 1% da população mundial com mais de 65 anos sofre de Parkinson e 200 mil brasileiros estão acometidos pela doença. Além da rigidez muscular e dos famosos “tremores”, em estágios mais avançados da enfermidade, os sintomas depressivos são as manifestações não-motoras mais frequentes entre os pacientes.
“Muita gente começa se enclausurar e ter medo de sair de casa para não passar pelo constrangimento de precisar de auxílio de outras pessoas para realizar ações simples, como ir ao banheiro ou pentear o cabelo. Para nós, é muito gratificante desenvolver algo que mudou a vida de alguém”, vibra o professor.
A escada é longa
Um total de 112 degraus, segundo a filha, ou 92 em sua modesta opinião. Dona Maria Amara da Silva sobe rumo ao culto evangélico. Inspira, perna direita, perna esquerda, perna direita, expira. Com os dedos do pé enrijecidos pelo Parkinson, a aposentada de 65 anos considera que “cada degrau é uma vitória” e batalha com o próprio corpo para continuar frequentando um dos poucos espaços de sociabilidade a que ainda tem acesso. Ela canta no coral da Igreja e louva “Jesus há 20 anos”, mas já sente a rebeldia da voz trêmula, imitando a tendência das mãos e das pernas, sobretudo em momentos de nervosismo. “Esse problema de Parkinson é terrível, deixa a pessoa debilitada”, resume. Diagnosticada como acometida pela doença desde o ano de 2010, Dona Maria foi uma das pacientes do HC que tiveram acesso aos dispositivos dos alunos do professor Ângelo durante as atividades fisioterapêuticas.
Dona Maria foi diagnosticada com doença de Parkinson no ano de 2010. (Júlio Gomes/LeiaJá Imagens)
Ex-cabelereira talentosa e desenvolta com o público, Dona Maria se acostuma à timidez. As mãos, antes rápidas e bem entrosadas com todo tipo de cabelo, passaram de motivo de orgulho a causa maior do constrangimento diante dos conhecidos. “Começo a me tremer, o povo olha pra mim e fico com vergonha”, cochicha. Certa vez, ao precisar assinar alguns papéis antes de receber uma determinada quantia em dinheiro, ela precisou explicar o porquê de não conseguir reproduzir a própria assinatura, diante da desconfiança do receptor da documentação. “Ele olhou pra mim e disse: ’você está modificando a assinatura’. Às vezes fica igual, às vezes não. Fiquei toda constrangida”, conta.
A dificuldade de escrever, aliás, é comum entre os doentes de Parkinson. “Os pacientes sempre relatam dificuldades com a escrita. Pelo fato de se tratar de uma doença progressiva, todos acabam adquirindo os tremores e tendo uma piora na movimentação da musculatura”, coloca Andore Asano, neurologista do HC e um dos médicos responsáveis pelo tratamento de Maria Amara.
Dentre os equipamentos usados pelo hospital durante o tratamento de Maria Amara, o “engrossador” foi o responsável pelos exercícios de escrita. A paciente, embora tenha aprovado os procedimentos da fisioterapia, confessa se sentir envergonhada com a possibilidade de utilizar o dispositivo fora do tratamento. “Se eu levasse isso por aí você não acha que o povo ia ficar olhando não? Seria estranho chegar com uma caneta diferente, a não ser que fosse em casa mesmo, para ficar treinando”, comenta.
Formação humanizada
Embora os alunos pioneiros do projeto já tenham se formado, a determinação do professor Ângelo parece contagiar gerações inteiras de seu núcleo de pesquisas em tecnologia assistiva. O estudante Mineu Lins vibra com a oportunidade de, logo no segundo período, participar do desenvolvimento de iniciativas na área. “É muito estimulante. Engenharia não é só tecnologia, desenvolvemos equipamentos que serão utilizados por pessoas, isso é mais importante do que pensar em quanto o produto custará ou no lucro que dará. Isso humaniza nossa formação”, afirma o rapaz.
Um dos primeiros cadeirantes do curso, Mineu trabalha na adaptação do Instituto para pessoas que não podem andar. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
O gosto por montar e desmontar todo tipo de buginganga abriu o apetite do estudante para a engenharia. Um dos primeiros cadeirantes do curso de engenharia mecânica do Instituto, Mineu ganhou atenção especial do professor logo no primeiro período. “Por causa da minha vivência na cadeira de rodas, Ângelo me chamou para compor a equipe. A maioria dos engenheiros se baseia em teoria, eu tenho a prática. Também estamos desenvolvendo um projeto para adaptar a estrutura do curso para cadeirantes”, relata.
De acordo com Mineu, preliminarmente, a equipe acredita que a metodologia ideal é criar um exoesqueleto que permita ao cadeirante acessar toda o equipamento do IFPE. “Tenho muita dificuldade de mexer nas máquinas daqui. No mercado, sabemos que as empresas dificilmente vão trocar tudo para receber os cadeirantes, então acreditamos que o projeto seria mais interessante se adaptasse o estudante às máquinas”, explica Mineu.
Mineu trabalha ainda em um terceiro projeto em parceria com o professor Ângelo, voltado para a correção de postura de cadeirantes. “Não sinto nada abaixo da lesão, então não tenho como monitorar minha coluna. O projeto visa instalar vários sensores no assento, para que quando alguma parte do corpo estiver fazendo mais pressão do que o outro, o usuário seja notificado por um aplicativo de celular”, conta. Almofadas de ar com a finalidade de dividir o peso do corpo já existem, mas nunca com preço inferior a R$ 1 mil. Ao lançar mão de equipamentos nacionais, como o arduíno, a equipe espera baratear o produto. “Muito cadeirantes não estão saindo de casa com medo do que vão encontrar do lado de fora. Se eles souberem que tudo que tem do lado de fora é fácil, eles não ficarão isolados”, acredita.
Interdisciplinaridade
Lídia comemora a possibilidade de poder trabalhar com profissionais de diversas áreas, estando no segundo período. (Rafael Bandeira/LeiaJá Imagens)
Outra integrante do grupo de tecnologia assistiva, a estudante Lídia dos Santos comemora a possibilidade de conviver com profissionais de diversas áreas do conhecimento. “Facilita bastante nosso trabalho, porque cada profissional coloca um olhar diferente no projeto”, afirma ela. De acordo com o professor Ângelo, a oportunidade de atuar em equipes interdisciplinares ainda no segundo período é preciosa. “No mercado, é comum que muitas empresas atuem com esse tipo de dinâmica, que é muito difícil. Além disso, nenhum produto que a gente encontra é desenvolvido por uma única pessoa. Ainda que ele tenha um idealizador, existe uma equipe multidisciplinar envolvida em sua concepção”, conclui.
Reportagem integra a série “Além da técnica: a função social dos Institutos Federais”, que conta história dos dez anos dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, traçando um paralelo entre a contribuição dos projetos de extensão das instituições e o respaldo na sociedade, seja na forma de inclusão de classes mais baixas na educação, como também no benefício direto da população pelas pesquisas realizadas nos institutos. A seguir, confira as demais matérias da série:
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