Um cearense nascido em uma casa de taipa em 1946, na beira do rio Jaguaribe, em Aracati, veio ao Recife, em Pernambuco, com menos de 17 anos buscando trabalho. Sem nenhum sonho, Francisco Ferreira Lima Filho não imaginava que um dia iria se tornar o Seu Passarinho, o fotógrafo oficial da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) durante quatro décadas.
O tempo antes da câmera
##RECOMENDA##
Francisco Ferreira Lima Filho. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Francisco Ferreira conta que veio ao Recife ainda adolescente junto com um colega, este que tinha uma esposa e filhos no Ceará, à procura de um emprego e uma forma de viver. Assim que chegou, os trabalhos não apareceram logo. Os dois amigos começaram a viver de pensão em um quartinho na rua de frente à uma praia.
Certo momento, o dinheiro guardado para sobreviver no Recife acabou. Ainda desempregado, o colega de Francisco decide que é melhor voltar para o Ceará e desistir de ganhar a vida em Pernambuco. Francisco, por outro lado, decide ficar.
“Ele disse ‘vamo simbora, vamo voltar. Não tem jeito não’. E eu disse ‘eu não vou’. Ele chorou, esse cidadão, chorou para me levar de volta e eu não fui. Tirei meu relógio, ele tirou o dele e a gente vendeu ali, na Rua do Imperador, para comprar a passagem dele para ele ir embora. E eu fiquei, na calçada do Jornal (do Commercio) com a minha maletinha”, conta Seu Chico.
Sozinho em uma cidade que não conhecia, o cearense morou, por quase dois meses, na calçada do jornal. Ferreira conta que conseguia se alimentar porque pedia comida em alguns estabelecimentos por perto ou a algum funcionário do jornal.
“Depois de quase dois meses, eu já não aguentava mais não. À noite eu dormia ali sentado na calçada, encostado na parede do Jornal. Eu não podia nem entrar por causa da ditadura. Quando foi um dia, eu me desesperei e disse, vou embora”, relembra.
Francisco Ferreira Lima Filho. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Caminhando pelas ruas de Recife, Francisco resolveu procurar pela estação ferroviária para poder voltar para o Ceará. Nessa procura, ele esbarrou com um rapaz que soube do seu desejo de arrumar um emprego e ofereceu uma vaga, na cidade de Camaragibe, em Aldeia, como funcionário de uma indústria de fubá de milho e colorau. Chico aceitou, mas seu emprego só durou dois meses.
“Sabe o que aconteceu? Eu arrumei uma namorada lá, filha de um cidadão brabo, valente que só a gota. Ele pensava que ela tinha que acabar esse namoro comigo, que eu era um forasteiro. Aí ela disse que não acabava e ele puxou uma faca e jogou atrás dela. O dono da granja lá disse ‘seu cearense, você vai ter que ir embora daqui, se não você vai morrer’”, crelembra Ferreira.
Dessa forma, ele teve que voltar para o Recife e retornou à calçada do jornal, onde morou mais dois meses, quando conseguiu uma quartinho cedido dentro de uma barbearia, na Madalena. Depois de um tempo, Francisco conseguiu uma vaga como ajudante de pedreiro para construção do prédio da Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFPE. O que ele não sabia é que aquele era o início de uma longa vivência no campus.
Ferreira Filho e o prédio da CFCH, na UFPE. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Memórias de uma lente
Eventualmente, no final dos anos 1960, Francisco Ferreira encontrou um jornal que anunciava: ‘Precisa-se emendador no Diario de Pernambuco’, Então, decidiu começar a trabalhar nas oficinas do estabelecmento. Foi nesse emprego, que o cearense conheceu o que era uma máquina fotográfica. Ao ver os fotógrafos saindo para trabalhar na rua com os repórteres, foi amor à primeira vista.
“De perto, a primeira vez que eu vi uma máquina fotográfica, foi quando eu estava no Diario. Parece que era uma coisa que eu tinha que ser fotógrafo, né? Eu comecei a gostar de fotografia, gostar da máquina fotográfica, e querer ser fotógrafo. E fui, e sou. Não sou bom, mas sou”, se declara humildemente.
“Eu fiquei morrendo de vontade de ser fotógrafo. Aí consegui, com o chefe de departamento fotográfico da época, me levar lá pra cima para fazer o teste de laboratorista. Eu passei no teste e fui ser laboratorista, e comecei a fotografar. Se faltava um fotógrafo no jornal, eu tava lá e mandavam eu fazer uma foto”, lembra Ferreira.
Francisco Ferreira Lima Filho e sua câmera fotográfica. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Toda sua técnica e conhecimento da máquina foram adquiridas de forma autodidata, com sua experiência e interesse pela fotografia. O recém-fotógrafo passou oito anos trabalhando no Diario e experimentou a vida de fotojornalista ao extremo. Chegou a fotografar conflitos, a se infiltrar em lugares para tirar a melhor foto e até correr riscos pelo amor à câmera.
“Na Guararapes, existia uma greve de ônibus, aquelas coisas. Eu pulei por cima de um capô de carro e fotografei a cena do cara brigando na frente da Caixa Econômica. Os policiais vieram com cassetete batendo na gente, eu me pendurei naquele grade da Caixa e o cassetete passou por debaixo dos meus pés. Foi uma loucura…”, diz Francisco, aos risos.
Com as cinco horas de jornada de trabalho, Ferreira conseguiu uma indicação com um colega para trabalhar como auxiliar de serviços gerais na Universidade Federal de Pernambuco, onde passou boa parte da sua carreira. Apesar do cargo ser de auxiliar, sua função foi, também, como fotógrafo na universidade. Durante anos, ele conciliou os dois empregos.
Já acostumado com a câmera no campus e na rua, Francisco começou a ser solicitado para tirar fotos particulares e foi ficando conhecido. Quando ia fotografar alguém, sempre ouvia o grito: ‘Olha o passarinho!’. Esse foi o gancho para que ele fizesse seu cartão de visita com o apelido que se tornaria parte de seu nome: Francisco Ferreira Passarinho.
Seu Passarinho segurando seu antigo cartão de visitas. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
No governo de José Sarney, Ferreira foi contemplado por uma reformulação em que as pessoas que trabalhavam nos órgãos públicos se tornaram servidores. Assim, ele passou a ser o fotógrafo oficial da UFPE, fotografando e vivendo muitos momentos importantes.
“Aqui (na UFPE) eu fotografava muitas visitas de pessoas. Eu fotografei o presidente Lula, ministros, Fernando Henrique Cardoso com a esposa, aqui no gabinete. Tive o prazer de ir a Brasília entregar uma encomenda do reitor ao grande Nelson Mandela. (...) Outra solenidade importante que eu entreguei um álbum de fotografia, fui levar lá em Abreu e Lima, entreguei na mão dele, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez”, conta o fotógrafo.
“Na área de política, eu já vi os maiores políticos aqui de Pernambuco, Marcos Freire, Miguel Arraes, Fernando Lira, Cristina Tavares, os deputados federais, esse povo todinho eu conheço. Conheci, pode-se dizer assim, muita gente importante. Muitas pessoas de outros países”, continua Passarinho.
Seu Passarinho e sua câmera fotográfica. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Com muito tempo de profissão, o fotógrafo oficial da UFPE passou por 12 diferentes reitores da universidade. Desde Marcionilo de Barros Lins (agosto de 1971 até agosto de 1975), até a reitoria de Alfredo Macedo Gomes, em 2019. Nessa bagagem, ele viajou por 43 anos pelos vários campi, prédios e histórias que a universidade possui.
O sentimento de saudades
Em 2020, ano auge da pandemia, Seu Passarinho se aposentou. Pela idade, quase aos 75 anos, teve que sair de forma compulsória, mas não deixou de amar a fotografia. Aos seus quase 77 anos, ele afirma que ainda visita a UFPE por lazer e, por onde passa, colaboradores da universidade param para cumprimentá-lo.
“Às vezes dá saudades (de fotografar), né? Às vezes a gente fica pensando, eu viajava, ia para Caruaru, Vitória (de Santo Antão)... Em Caruaru, eu fotografei aquele cidadão ali (ex-reitor Amaro Henrique Pessoa Lins) olhando o terreno onde ia ser construída a universidade lá de Caruaru”, relembra o cearense.
Seu Passarinho e quadros dos ex-reitores com quem ele trabalhou. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Passarinho conta que, depois da aposentadoria, tem fotografado mais sua família ou a natureza pelo quintal de sua casa. Mas a saudade da rua está sempre presente. Chico é uma pessoa de lembranças e guarda grandes álbuns de fotografia com partes da sua história eternizadas em papel fotográfico.
“Para mim, a fotografia foi tudo na minha vida. Eu comecei a viver, mesmo, foi com a fotografia. (...) Eu digo a todo mundo, a universidade é a extensão da minha casa. Minha vida foi aqui dentro, começou tudo aqui. (...) Uma das melhores experiências da minha vida foi aqui dentro da universidade. De outras empresas que eu trabalhei, nenhuma deixa saudades. E a universidade… Foi tudo. Tudo na minha vida”, desabafa Ferreira.
Casado duas vezes, seu Francisco tem cinco filhos e cinco netos. Hoje em dia continua fotografando por prazer, mas sonha em fazer um trabalho especial com um livro fotográfico apenas de fauna e flora da UFPE, algo que ele tem de sobra guardado. Segundo ele, foram vários domingos passando o dia no campus para capturar esse momentos. Ele chegou a plantar pés de manga que, hoje em dia, anos depois, aparecem grandes e altos enfeitando a universidade.
Seu Passarinho e o pé de manga que ele platou anos atrás. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
“Eu gosto de fotografar, às vezes eu fico lá no quintal de casa, tem lá uns pé de manga, uns passarinhos. Se Deus quiser, no final deste ano, no começo do outro, eu vou terminar de fazer meu trabalho, que eu tô fazendo um livro sobre fauna e flora aqui do campus da universidade. Eu tenho muita coisa, eu passava o domingo aqui no campus, trazia uma cadeira, uma comida. Aqui tem tanta coisa, você não consegue imaginar”, compartilha Franscisco.
O aposentado conta que admira suas fotos. Quando tem um tempo em casa, gosta de revê-las. São tantas lembranças que dava para preencher uma sala de material fotográfico. Passarinho conta, com humor, que ainda tem umas trinta máquinas fotográficas dentro de casa e um dia será inaugurada no Museu Passarinho.
Seu Passarinho e sua câmera fotográfica. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá
Admirado por muitas pessoas, pelo seu trabalho e pelo seu carisma como pessoa, Francisco carrega histórias de fotos e viagens que entretêm qualquer um. Quando perguntado como Francisco Ferreira gostaria que Seu Passarinho seja lembrado pela Universidade Federal de Pernambuco, o mesmo responde: “Como um grande fotógrafo!”
[@#galeria#@]