A pandemia do novo coronavírus fez mudar a rotina de trabalho de milhares de pessoas. As medidas restritivas de distanciamento impostas como forma de proteção ao vírus tornaram as casas dos trabalhadores em escritórios e ambientes de trabalho. Segundo a pesquisa 'Gestão de Pessoas na Crise Covid-19', feita pela Fundação Instituto de Administração (FIA), em abril de 2020 já havia sido registrado que 46% das pequenas, médias e grandes empresas no País adotaram o formato de trabalho remoto.
Com a mudança de ambiente, e o trabalhador diante de diferentes situações exercendo suas funções de casa, surgem dúvidas quanto ao que pode ser configurado acidente de trabalho. Para compreender os diferentes conceitos de trabalho remoto, e entender o que pode ser considerado acidente de trabalho, o LeiaJá conversou com a advogada Anna Carolina Cabral, advogada especialista em direito do trabalho.
##RECOMENDA##Anna Cabral apresenta, a princípio, o conceito de trabalho remoto, que é um termo que engloba tanto o ‘home office’ quanto o teletrabalho, todos dentro da “atuação por meio telemático”, nomenclatura utilizada na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). “O teletrabalho é uma expressão mais generalista, que é prevista pela CLT. Inclusive, o teletrabalho foi uma inovação oriunda da reforma trabalhista de 2017, que, numa tentativa de adequação às novas rotinas de trabalho, trouxe uma previsão com normas que se referiram à essa forma de trabalhar. E o home office, numa tradução literal, é o trabalho prestado em sua casa”, ela explica.
A advogada diferencia o teletrabalho do home office pela possibilidade de fiscalização das jornadas de expediente. O teletrabalho foi compreendido em lei a partir de 2017, com a reforma trabalhista. Nela, o empregado não tem como ser fiscalizado por meio da batida de ponto, visto que ele pode exercer sua função em ambiente externo, como um vendedor visitando um possível cliente. Quando a gente fala home office, não é necessariamente teletrabalho, porque ele pode ser fiscalizado. O empregado que trabalha da sua casa pode logar e fazer a batida de ponto remotamente. Isso não descaracteriza o trabalho em home office, mas não é teletrabalho para os fins da lei”.
Acidente de trabalho
Segundo Anna Carolina Cabral, a lei trabalhista destaca como acidente de trabalho aquele que ocorreu em virtude do labor. “Se o empregado estava prestando atividade ao seu empregador, e isso causou um acidente em virtude dessa atividade, ela pode ser considerada como acidente de trabalho. E outra coisa, é importante também ser verificado que exista uma culpa do empregador por aquela atividade, aquele acidente especificamente”, ela ressalta. No entanto, com a configuração do trabalho em home office, isso pode ser discutido e interpretado de outra forma, como exemplifica a advogada. “O empregado está trabalhando de home office, aí ele vai na cozinha, por exemplo, escorrega no chão molhado, e naquele momento ele está atendendo uma ligação ou respondendo um e-mail, e sofreu o acidente. Isso seria considerado acidente de trabalho? Logicamente que não, porque não foi um acidente ocorrido em virtude da atividade. O descuido é um acidente doméstico, ele estava em casa, e sofreu o acidente. Não pode ficar atribuindo ao empregador a culpa por aquele acidente”, esclarece.
Por outro lado, a advogada trabalhista faz uma ressalva quanto às novas compreensões do que pode ser considerado acidente de trabalho, visto que “as pessoas desenvolveram doenças que impactaram diretamente a ergonomia”. “Na medida que o patrão manda um empregado trabalhar em casa, e prestar um serviço para ele, para fazer com que aquela produtividade, dentro da sua casa, seja destinada para o empregador, o mesmo tem a obrigação também de conscientizar o empregado sobre as normas de medicina de segurança do trabalho. Ou seja, é importante que o empregador faça treinamento, envie material e faça com que o empregado assine um termo de responsabilidade, fazendo com que aquele empregado se responsabilize e cumpra as normas de segurança do trabalho”, destaca Cabral.
Além dos cuidados individuais com a saúde e da preservação do conforto do empregado trabalhando de sua casa, a advogada alerta que é preciso atentar a outros tipos de acometimentos que podem ser considerados como acidentes de trabalho, como transtornos e crises que atingem a saúde mental do profissional. “Vimos casos de patrão cobrando de forma exacerbada a entrega de resultados, em cima do empregado o tempo todo, ‘cadê você, que eu não estou vendo on-line?’. Esse tipo de postura que, se houver uma configuração de certo assédio moral, que possa prejudicar a saúde mental do empregado, em virtude do trabalho home office, sim, ele pode ser considerado como acidente de trabalho. Porque um acidente de trabalho não é somente aquele acidente que você cai e machuca. É também a doença laboral, a doença em virtude do trabalho pode ser caracterizada em acidente de trabalho por ter havido prejuízo à saúde do empregado”, ela alerta.
Acidente de percurso
A advogada ainda faz uma ressalva sobre a mudança que ocorreu após a reforma trabalhista de 2017, que mudou a compreensão da lei quanto ao acidente de percurso. “O que a gente chama de acidente de percurso e horas ‘in itinere’ é o período que o empregado está à disposição no percurso de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Era o que a legislação chamava de horas ‘in itinere’. Com a reforma trabalhista em 2017, esse percurso do trabalho como tempo de disposição ao empregador deixou de ser configurado dessa forma. Então, não é mais considerado como tempo de disposição ao empregador, nesse intervalo aí, trabalho em casa, para o trabalho”, ela esclarece. No entanto, a advogada ressalta que a lei trabalhista entra em conflito com a Lei Previdenciária nº 8.213/91, que discorre acerca do acidente de trabalho, visto que ela não retirou o acidente de percurso como acidente de trabalho.
“Então, vamos supor que ocorreu um acidente de trabalho no percurso de casa para o trabalho. Em virtude da própria legislação trabalhista, que não reconhece mais esse tempo à disposição, não seria configurado como acidente de trabalho. Mas aí o empregado deu entrada com o pedido de benefício no INSS e lá no dispositivo, e no campo de identificação do tipo de acidente, pela própria lei de 8.213/91, é identificado como acidente de percurso. Então, como se resolve isso? Para fins de responsabilização do empregador, eu diria que não se aplica. Mas para fins da legislação previdenciária, inclusive porque ainda há previsão, eu diria que caberia uma boa discussão em virtude da configuração do acidente de trabalho”, reforça.
Por fim, a advogada reflete sobre a importância de compreender os limites que podem ser aceitos nessa nova forma de trabalho, assim como é fundamental que o trabalhador e o patrão conheçam seus direitos e deveres. “Ambos precisam ter em mente que sem saúde, não há trabalho. Ser empregado doente pode trazer uma repercussão para o resto da vida dele, pela redução da capacidade laborativa, e para o empregador, ter um empregado doente significa que não vai ter produtividade. Então, eu acho que há um interesse em comum entre as duas partes envolvidas na relação do trabalho”, ela finaliza.