Localizada no bairro do Recife Antigo, a sede da Receita Federal parecia ser palco de mais um dia comum e rotineiro na resolução dos procedimentos burocráticos brasileiros, no último dia 17 de novembro. Sentada na primeira fila das poltronas e com os olhos atentos às senhas que apareciam na televisão da repartição, a transexual Christiane Falcão aguardava sua vez na fila para tirar o seu primeiro CPF com a identificação de seu nome social. A manhã era sinônimo da concretização de um sonho para Cris. Entre uma lágrima de emoção e um suspiro de ansiedade até ser chamada pela atendente, ela explica que ser identificada socialmente em documentos oficiais pelo nome escolhido não foi uma conquista fácil.
Aos 44 anos, a auxiliar administrativa e também cantora Christiane conta que durante 32 anos sofreu inúmeros constrangimentos por precisar utilizar em seu registro de civil o nome masculino de batismo. "Desde os 12 anos eu sei que sou uma mulher transexual e nunca me identifiquei com o gênero masculino, apesar de ter nascido biologicamente no corpo de um homem". Buscando ser reconhecida oficialmente, acabar com situações vexatórias e atitudes transfóbicas (quando há tratamento negativo às pessoas travestis e transexuais), Cris decidiu, em 2014, dar entrada judicialmente para mudar seu nome na certidão de nascimento.
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Só três anos depois, no último dia 31 de outubro, conseguiu receber o novo documento para poder retiticar todos os outros. No Brasil, não existe uma lei específica, regulamentada, de orientação para um cidadão alterar o nome e o gênero da certidão de nascimento. As causas são encaminhadas ao Judiciário e as decisões são tomadas com base na Vara e no juíz destinado a avaliar o pedido, podendo ser aceito ou negado. Um dos impasses na legislação nacional é ainda não haver, no Superior Tribunal de Justiça, uma resolução que anule a “obrigatoriedade” da cirurgia de redesignação para, como consequência, o transexual estar apto a mudar o nome no registro civil.
Considerado um dos piores momentos da vida de Christiane, uma viagem a trabalho para o exterior ganhou conotações assustadores. "Eu fui detida no aeroporto porque o meu documento era diferente da minha aparência física e eles achavam que eu estava praticando o crime de falsidade ideológica", contou. Ela relembra que teve de aguardar por doze horas seguidas em uma sala trancada, até um ginecologista a atender para comprovar o órgão masculino. "Acho que falta muita sensibilidade na nossa legislação, ainda tão dura com as pessoas transgêneras", lamentou a ativita da causa LGBT.
Segundo a advogada Laura Kerstenetzky, especialista há três anos em causas do tipo, apesar das dificuldades na legislação brasileira, a retificação do registro civil é um direito de todos. "A gente entende que essas pessoas sofrem uma série de constrangimentos por, psicologicamente, se identificarem com aquele gênero masculino ou feminino e ter uma informação diferente no documento. Esse é o principal argumento que utilizamos nos processos", acrescentou.
Como dar entrada no processo de mudança de nome
Publicado no Diário Oficial da União, em abril de 2016, um decreto autoriza o uso do nome social por travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal. O regulamento permite que as pessoas tenham sua identidade de gênero reconhecida em crachás, formulários e outros documentos federais. Apesar de ser recebida pela comunidade LGBT como uma medida importante, ainda é vista apenas como um passo inicial. Os documentos oficiais, como o RG e o CPF, só podem ser alterados após a certidão de nascimento, e os processos para a alteração neste último documento têm durado de seis meses a três anos, em média.
Para realizar o procedimento, os interessados devem buscar um advogado particular ou a Defensoria Pública. Em Pernambuco, dois locais de referência prestam serviços públicos à comunidade LGBT. Atendendo a nível estadual, o Centro de Combate à Homofobia (CECH) conta com uma equipe de psicólogos, advogados, assistentes sociais e coordenadores. De acordo com Natália Kajya, advogada do centro, a principal atividade do local é prestar esclarecimentos e encaminhar os processos de mudança de nome para a Defensoria Pública de Pernambuco.
A lista dos documentos solicitados para dar entrada no trâmite é extensa. É preciso levar originais e cópias da certidão de nascimento, CPF, carteira de identidade (RG), título de eleitor e comprovante de votação, certidões negativas na Justiça, entre outros documentos. Dados do Centro de Combate à Homofobia revelam, que desde 2013, já foram encaminhados 54 processos e, desses, apenas seis já conseguiram êxito da mudança do nome e do sexo.
No Recife, o Centro Municipal de Cidadania LGBT, criado em 2014, realiza três mutirões ao longo do ano para atender ao público interessado na retificação do registro. Desde o surgimento do local, a agente de Direitos Humanos, Poliny Aguiar, já contabiliza 35 processos encaminhados à Defensoria. Do total, nove já foram concluídos com resultados positivos.
“Uma das nossas dificuldades foi conseguir a confiança desse público e dizer que o processo funciona. Muitos já estavam desacreditados. Quando começamos a conseguir êxito na troca efetiva, nosso atendimento nessa área se tornou referência”, disse Poliny. Ela detalha que o interessado conta com acompanhamento psicológico e, no fim, o centro emite um laudo médico favorável para a pessoa ter um documento a mais no processo.
Transfobia como mote para retificação
No final de 2013, o técnico em edificações Társio Benício de Assis, 34, atual coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat), também resolveu dar início ao processo da mudança do nome e sexo na certidão de nascimento. De início, a idade e a necessidade de mudar muitos documentos, como um diploma universitário, deixaram Assis em dúvida sobre a mudança. Mas o peso do preconceito e da transfobia foi maior e, no fim de 2014, ele deu entrada na Justiça.
Társio, um homem trans, foi protagonista de cenas que preferia esquecer. Durante o processo judicial, ele chegou a registrar um boletim de ocorrência contra o gerente de um banco da capital pernambucana. "Eu fui abrir uma conta e ele não queria me deixar ter acesso ao meu próprio dinheiro porque meu RG não era representado pela minha aparência atual. Eu levei os documentos de que estava na Justiça tentando trocar o meu nome, mas não adiantou de nada", lamentou.
A solução foi ir à delegacia e prestar queixa por danos morais. "Eu fiz o procedimento que achava ser o correto, mas acho que no fim, até na delegacia fui tratado de forma displicente. O gerente deveria ter sido chamado para esclarecer a situação em até seis meses e já passou muito mais que isso e nada".
Henrique da Fonte, defensor público e membro da recém-inaugurada Comissão dos Direitos Humanos da Defensoria em Pernambuco, pontua que a alteração da certidão de nascimento utiliza uma série de dispositivos e princípios. Ele conta que a própria Constituição Federal e várias convenções internacionais assinadas pelo Brasil promovem a desburocratização do procedimento e sua realização de forma mais ágil e menos vexatória para a dignidade humana.
Na prática, a realidade de quem deseja adequar seu nome a sua identidade de gênero é mais difícil. Laura Kerstenetzky argumenta que não é o preconceito do Judiciário o fator dificultador da realização do procedimento em si. A advogada explica que o próprio acesso a informações sobre o procedimento é um dos grandes impasses. “Muitos deles têm baixa escolaridade, são marginalizados pela sociedade e não conseguem ter acesso ao mais básico da nossa legislação".
Cenário lento, mas favorável em Pernambuco
Atualmente, em Pernambuco, não há registros de processos com resposta negativa. Maxwell Vignoli, promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, informou que a quantidade de pedidos da retificação aumentou nos últimos dois anos. Para o membro da Comissão dos Direitos Homoafetivos, o crescimento impacta diretamente na atuação do MPPE em cada caso. “Nossa orientação aos promotores é que sejam sempre favoráveis às transições, independentemente se o transexual tenha feito a cirurgia ou não”, contou Vignoli. Ele comenta ainda que a comissão já busca alternativas para o parecer médico (criticado, em algumas situações, pela questão do constrangimento).
A regulamentação da alteração do registro civil é tema do Projeto de Lei 5.002/2013, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT-DF), em tramitação na Câmara dos Deputados. A proposta visa a viabilização e desburocratização do direito do individuo de ser tratado conforme o gênero escolhido por ele. “A negação daquela identidade causa prejuízo e sofrimento a essas pessoas. Nosso trabalho na Defensoria é mostrar ao Judiciário como isso é importante, além de ser um Direito legítimo”, argumentou Henrique da Fonte, defensor público.
Assim como para Cris Falcão, o dia 17 de novembro também foi representativo para a memória de outra transexual brasileira. Ativista pelos direitos LGBT, Andréa de Mayo, que morreu no ano de 2000, teve a placa de sua lápide no Cemitério da Consolação trocada para o seu nome social.
Antes, estava registrado seu nome de registro civil, Ernani dos Santos Moreira Filho. Andréa de Mayo vivia como empresária de sua casa noturna, a Prohibidu’s, uma boate no Centro de São Paulo, já desativada. Após 16 anos de sua morte, ela teve seu nome social representado em uma cerimônia promovida pelo Serviço Funerário Municipal de São Paulo.
"Tem juiz que acha que queremos mudar de nome para escapar de algum processo judicial por cometer algum crime. Na verdade, a gente só quer mais respeito e passar por menos transfobia e constrangimento”, concluiu Társio.
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