A crescente demanda por água potável, em virtude do aumento da população mundial, escassez de recursos hídricos e das mudanças climáticas, tem se intensificado em nível global. Em atividades como agricultura, o reúso da água tem sido apontado como uma forma de minimizar o problema da escassez desse recurso natural.
Chove pouco no Sertão nordestino e isso não é novidade. O índice médio fica entre 500 e 800 milímetros por ano – em comparação, uma cidade como Recife costuma ter 2400 milímetros de chuva por ano. Apesar da pouca chuva ao longo do ano, novas práticas socioambientais, econômicas, educacionais e comunicacionais frente aos efeitos e impactos da mudança do clima dentro da Caatinga ganham espaço.
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Em Pernambuco, no Sertão do Moxotó, região do bioma Caatinga, um protótipo de um sistema de tratamento comunitário com o intuito de reaproveitar a água de esgoto e utilizá-la na irrigação do cultivo de umbu, fruta nativa da região, começou a ser implementado em 2019.
Sistema de Tratamento comunitário de água de esgoto para reúso instalado em Ibimirim. Foto: Felipe Lavorato/Insa
O local escolhido para receber o projeto foi a unidade educacional do Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) baseada na cidade de Ibimirim, a 336 quilômetros do Recife. O município localizado no semiárido do Nordeste sofre com os gargalos hídricos e possui um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, 0.552, de acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
A iniciativa que pode elevar viabilidade bioeconômica do umbu com uso de água de esgoto é da Rede Nacional de Pesquisadores (Ecolume), financiada pelo CNPq e liderada pela coordenadora do Laboratório de Mudança do Clima do Instituto Agronômico de Pernambuco, Francis Lacerda. De acordo com a pesquisadora, a ideia é potencializar a criação de novas cadeias produtivas bioeconômicas através do reflorestamento de plantas nativas da região com o reaproveitamento da água.
“Queríamos trabalhar com um grupo que já estudasse a questão da produção agrícola no Sertão. Justamente porque é um desafio produzir alimento no semiárido sem irrigação dentro do ambiente natural da Caatinga. Encontramos a escola Serta que faz a formação de jovens filhos de agricultores e inicialmente vamos reaproveitar a água usada na cozinha da instituição em nosso processo de tratamento com as mudas de umbu”, explicou Francis.
O projeto visa potencializar a criação de novas cadeias produtivas bioeconômicas através do reflorestamento de plantas nativas da região com o reaproveitamento da água. Foto: Assessoria de Comunicação/Ecolume
Em maio deste ano, mais de 700 mudas de umbu, planta nativa do semiárido do Nordeste, resistente a altas temperaturas e pouca água, foram entregues aos agricultores em um evento realizado na cidade de Ibimirim.
O Ecolume também enviou outras 700 mudas de umbu para a cidade de Afogados da Ingazeira, no Sertão pernambucano. "Esse município também foi escolhida porque a gestão apostou em nosso projeto. O objetivo é fazer nascer uma floresta de umbu no município, na Serra do Giz, uma Área de Proteção Ambiental e de Refúgio da Vida Silvestre. E, neste local, ainda há comunidades tradicionais”, detalhou Francis. Além dessas mudas, o Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA) já semeou mais 1,8 mil para novas doações em outros cidades e já há outras 2 mil sendo semeadas.
A professora da Universidade Federal de Pernambuco Márcia Vanusa alerta que o umbu será de poder efetivamente quando a gestão estadual estimular bioeconomicamente os usos medicinais e nutricionais de sua casca, folha e seu fruto, usadas secularmente por comunidades quilombolas e indígenas na alimentação e como remédio para cura de várias doenças.
Sistema integrado de segurança hídrica, energética e alimentar adequado para ambientes semiáridos
O Ecolume busca em três eixos as potencialidades diante dos efeitos do novo comportamento do clima sobre esta região já muito semiárida: energético, hídrico e alimentar. "O projeto é um tripé e visa garantir três pilares. Nossa solução é garantir a segurança energética limpa, a produção de alimentos orgânicos e a segurança hídrica de forma inteligente. Seria um sistema circular que dá autonomia às populações em termos de oferta de água", analisou Francis Lacerda.
O Ecolume busca quebrar o paradigma da imagem de um Sertão pobre e mostrar que o semiárido é rico em diversidade. "É uma região onde chove pouco, de fato. Mas é possível utilizar essa água de forma inteligente. E também cuidar do reflorestamento da caatinga ao olhar para o meio ambiente", complementou a coordenadora do Ecolume.
Francis Lacerda explica que o protótipo visa reaproveitar a água usada principalmente na cozinha da instituição no processo de tratamento com as mudas de umbu. Foto: Júlio Gomes/LeiaJáImagens
O diretor do Serta e coordenador do campus Ibimirim, Sebastião Alves, destaca a importância desse primeiro protótipo em Pernambuco e aponta para os benefícios dessa tecnologia no Sertão pernambucano. “Já temos experiência na área de agroecologia e ter um projeto para reforçar a sustentabilidade ambiental foi algo muito bom. Esse reúso da água é muito significativo porque podemos utilizar duas vezes ou mais a mesma água que consumimos e seria descartada”.
A expectativa de Tião, como é conhecido entre os alunos do Serta, é que os estudantes tenham mais contato com a técnica para replicar em outras regiões e até em suas casas. “A nossa preocupação é grande no sentido de criar condições de enfrentar esse novo desafio que a humanidade vai precisar se adaptar. É preciso fazer algo para reduzir esse aquecimento global”, comentou o professor.
Para ele, a escolha da atenção especial ao umbu se deu porque a fruta nativa é muito rica e já não é tão fácil de ser encontrada. “Percebemos que ao longo dos anos já não temos mais umbuzeiros jovens na região toda. A planta vive em média entre 80 e 120 anos. Observamos que não há reposição natural dessas plantas. Estamos preocupados e por isso queremos utilizar essa tecnologia de reúso para poder repensar o recaatingamento do umbu”, alertou Sebastião.
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Irrigar o solo com água reaproveitada aumenta a matéria orgânica, contribuindo para a recuperação de áreas degradadas destinadas ao plantio. É o que revela pesquisa realizada no Instituto Nacional do Semiárido (Insa), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, com enfoque no semiárido brasileiro.
A instituição também integra as ações são desenvolvidas em Ibimirim. Mateus Mayer, um dos engenheiros do Insa e responsável pelo sistema hídrico de tratamento comunitário para reúso agrícola a ser instalado no Serta, antecipa que ele terá capacidade de tratar até 5 mil litros da água do esgoto da escola por dia, deixando-a qualificada para fins de irrigação nas proximidades.
“A tecnologia usada é um sistema combinado de tanque séptico, reator UASB e de lagoas de polímeros. Com ele, preservamos os nutrientes da água para as plantas e eliminamos os patógenos e uma grande quantidade de matérias orgânicas que as prejudicariam”, detalhou o pesquisador do Insa.
A iniciativa evidencia todo o ciclo virtuoso do uso da água e a relevância de um modelo pertinente para o saneamento básico rural adaptado com as condições semiáridas. Francis menciona que essa etapa do tratamento da água é realizada pelo Insa porque eles já desenvolvem há décadas essa tecnologia. "Um reator é instalado no solo e recebe a água do esgoto. As bactérias filtram essa água e são destinadas às piscinas de polimento. Em seguida, são liberadas para as mangueiras de irrigação que levam essa água até as mudas no pomar”, narrou a estudiosa.
Francis esclarece que a qualidade das águas cinzas e negras reaproveitadas passa por monitoramento mensal. A primeira é o efluente que tem origem nas máquinas de lavar, chuveiros e pias de banheiro; já a segunda é aquela proveniente de vasos sanitários. No caso do reúso em Ibimirim ambas são utilizadas no sistema de tratamento do Ecolume.
Mudas de Umbu plantadas em Ibimirim, no Sertão de Pernambuco. Foto: Assessoria de Comunicação/Ecolume
Pesquisadores envolvidos no projeto Ecolume. Foto: Assessoria de Comunicação/Ecolume
O diretor do Insa, Salomão de Sousa Medeiros, assegura que a parceria com o Ecolume e o Serta consiste em desenvolvimento de tecnologias de tratamento objetivando o reúso agrícola. “Nós enxergamos que não adianta falar em gerenciamento de recursos hídricos e redução dessa vulnerabilidade no semiárido brasileiro sem considerar o reaproveitamento como uma ferramenta essencial para alcançar os objetivos necessários", avaliou Medeiros.
Ele destacou ainda que dentre os principais objetivos estão dar uma opção de saneamento básico para as comunidades rurais e tornar a prática do reúso do sistema de esgoto como algo comum em Pernambuco. “Em nossa trajetória, o principal desafio é como produzir um efluente para fins agrícolas que seja seguro do ponto de vista sanitário, seja rico em nutrientes e nem obstrua os sistemas de irrigação”, descreveu Salomão.
Cenário climático não é ideal no futuro
Em 2007, as projeções de clima divulgadas pelo Quarto Relatório do IPCC (IPCC AR4) mostraram um futuro com cenários de secas e eventos extremos de chuva em grandes áreas do planeta. De acordo com o documento, no Brasil, de clima, seria o interior de Nordeste, conhecida como semiárido. O órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou quatro capítulos que, juntos, formam um relatório completo sobre o aquecimento global.
O Nordeste brasileiro poderá assistir até 75% de suas fontes de água desaparecerem até 2050. Os manguezais também seriam afetados pela elevação do nível da água.Um outro ponto citado pelos especialistas é que o alto potencial para evaporação do Nordeste, combinado com o aumento de temperatura pode diminuir a água de lagos, açudes e reservatórios.
Francis Lacerda aponta que o semiárido nordestino pode ficar ainda mais vulnerável a chuvas concentradas em curto espaço de tempo. "Pesquisas já apontam um aumento significativo da temperatura média, o que deixaria a região ainda mais seca com maior déficit hídrico", disse.
Salomão Medeiros aposta na solução do reúso da água para diminuir esses impactos, mas ele lamenta a prática ainda não ser uma prioridade no Brasil. "É preciso institucionalizar essa ação no país. Ainda não temos isso. Esse reaproveitamento tem que ganhar espaço numa escala mais ampla, desde a indústria, no meio urbano e rural. No semiárido, é fundamental porque além de ser uma fonte de água, podemos fazer uma agricultura agroecológica porque quando utilizamos a água do reúso na irrigação estamos fertilizando os nossos solos também", opinou.
Francis indica que o projeto do Ecolume e das instituições parceiras busca além de capacitar a população local nas tecnologias utilizadas no projeto, estudar os impactos das mudanças climáticas globais na disponibilidade hídrica, eólica e solar futuras para o Nordeste. "Queremos a integração de conhecimentos da produção de alimentos consorciados com a vegetação nativa da Caatinga, com métodos adaptados às condições de solo e clima para preservação dos recursos hídricos e a geração de energia fotovoltaica. Vamos plantar água", garatiu.