“Aqui existia muita solidariedade", tudo que existia na sociedade existia aqui também.”
Nos anos de 1940 a 1960, isolados dentro dos muros da colônia de Marituba, os doentes precisavam encontrar forças e esperança para conseguir ver graça na vida. Com os laços familiares cada vez mais desgastados, precisavam suprir o vazio com os seus companheiros e irmãos de dor e sofrimento. Criavam várias maneiras de se divertir e esquecer a saudade do mundo lá fora.
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Dentro da colônia de Marituba existiam times de futebol, blocos carnavalescos, festas juninas, grupo de teatro, cinema. Umas das rivalidades mais acirradas que existia era a dos blocos carnavalescos chamados Casadinho e Traz Aqui. Tudo era preparado com bastante dedicação e entusiasmo. Todos ali queriam mostrar que estavam cheios de vidas e poderiam dar o seu melhor.
Geraldo Cascaes, formado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), chegou na colônia em 1954 aos 10 anos de idade e afirma que as pessoas procuravam reproduzir um pouco do mundo lá fora, como se fosse uma encenação da vida social.
Cascaes, como é conhecido dentro e fora do abrigo João Paulo II, explica que começou a sentir os primeiros sintomas da doença aos 7 anos. O tempo foi passando e as manchas e dores ficaram cada vez mais acentuadas. Quando completou 10 anos de idade, sua família desconfiou que ele estava com a doença e o levou ao médico. Ele contou que chegou a tomar alguns medicamentos, mas sem sucesso, e o jeito foi ser internado na colônia.
“A minha sorte foi que a minha família nunca me abandonou. No meu pavilhão tinham uns 15 meninos; desses 15, só uns sete tinham visitas, outros vez ou outra, e alguns nem tinham”, disse.
Logo nos primeiros dias na nova morada, Cascaes estranhou bastante, mas logo se enturmou nas brincadeiras com os amigos do pavilhão. Sempre muito esforçado e inteligente, ele queria estudar. A dúvida, na época, era escolher entre o Direito e a Pedagogia, mas optou seguir pelos caminhos da justiça. Terminou o segundo grau e se preparou para prestar vestibular, ele e mais um amigo da colônia.
Em 1977, os dois ouviram no rádio a notícia que mudaria os seus destinos: foram aprovados na Universidade Federal do Pará (UFPA). “Foi uma alegria enorme comemorar esse dia”, recordou Cascaes.
Passado o entusiasmo da aprovação, o sentimento que tomou conta foi o medo de encarar uma universidade. As sequelas da doença já eram visíveis em suas mãos. “Fui frequentar a universidade, a gente ficou temeroso. Eu já tinha defeitos nas mãos, e meu amigo que passou, também. Aí tinha que fazer um exame pra entrar na UFPA, mas falamos com o Dr. Chaves, diretor da colônia, ele mandou a gente levar um documento, passamos pela inspetoria e nossa entrada foi liberada. Durante as aulas eu não tive problema nenhum. Eu não falava que morava aqui, mas o pessoal sabia que eu tinha a doença. Eu nunca passei vexame. Eu usava perna mecânica, porque a doença tinha afetado meus nervos e eu tive que amputa”, explicou.
Geraldo também se casou na colônia e teve dois filhos que foram levados para o educandário, mas isso não impediu que lutasse pelos seus objetivos. Quando se formou, em 1982, retirou os seus filhos do internato compulsório. A menina tinha 11 e o rapaz, 9 anos.
Dentro de todos os hospitais-colônias do Brasil existia uma participação muito grande da igreja católica. Em Marituba, não foi diferente. Padres e freiras foram responsáveis pelas grandes mudanças e perspectivas melhores aos doentes.
Embora o decreto nacional de desativação das colônias tivesse sido instituído em 1970, a colônia de Marituba realizou internações até fevereiro de 1982, e no decorrer do mesmo ano internos da colônia receberam a visita do papa João Paulo II, que proferiu palavras de esperança e fé aos internos que estavam preocupados com o que iria acontecer com seu futuro.
Geraldo explica que a visita foi um dia único na vida de todos que estavam ali. “O papa veio aqui quando a gente estava com aquele pensamento: o que vai acontecer com a gente, porque não se interna mais ninguém. O papa veio em boa hora, e dirigiu umas palavras muito fortes para gente. Foi um dia esplendoroso”, recordou.
Após essa visita, as coisas mudaram significativamente na colônia. Lembram do Jorge da Silva, do início da reportagem? Ele escreveu um poema que retratou em palavras o quanto a segregação foi devastadora na vida de quem foi acometido pela hanseníase, e também falou sobre a mudança da colônia para o abrigo.
DO INFERNO AO PARAISO
Outrora, um cárcere privado,
Que da sociedade escondia seres humanos,
Acometidos de um mal quase sem cura.
Crianças, jovens, adultos aqui chegavam,
Sem esperanças de sobreviverem, a uma vida difícil e tão dura.
Intensa mata virgem de frondosas árvores,
Circundavam aquele exílio, transformando-se
Em poderosas muralhas,
Que isolavam do resto do mundo,
Aquele povo, já marcado e escravizado,
Pela tão temida desgraça.
Um presídio onde pessoas
Fingiam sorrir, para suas tristezas esconder,
Fingiam cantar, enquanto as dores dos sofrimentos
Por dentro os faziam chorar
Pareciam eternos, os dias de angústia e solidão,
Para que alguém ali pudesse se acostumar.
Mas dos altos céus, um poderoso Deus tudo via.
E traçou em suas mãos um destino novo,
Para aquele povo que ali sofria.
Ungiu quatro amigos, uniu quatro vidas,
E entrelaçou-as em um só coração,
Para lutarem por um só ideal,
Transformar vidas sofridas,
Em calmaria real [...]
Lembrá-los hoje não é tudo,
Tudo é viver as lições de vida,
Que hoje aqui estamos a desfrutar.
Dom Aristides, João Calábria,
Marcello Cândia e João de Deus,
Servos do senhor, que por aqui
Passaram, queremos aqui homenageá-los
E agradecer-vos em espírito,
Por este paraíso abençoado,
Que por vós foi reformado,
Libertando do cativeiro,
Um povo sofrido, mas por vocês tão amado,
Salve o dia 14 de novembro, dia em que o abrigo João Paulo ll foi por Deus abençoado.
(Jorge Silva, morador da colônia de Marituba)
Reportagem e texto: Adrielly Araújo.
Edição: Antonio Carlos Pimentel.