RIO DE JANEIRO - O ano letivo na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) começou agitado com uma atividade que atraiu um grande público para o auditório 111, no bloco F, do Campus Maracanã. Com capacidade para 250 pessoas, o espaço ficou lotado na aula inaugural da disciplina "Golpe de Estado de 2016 e o futuro da democracia no Brasil", disciplina eletiva oferecida no programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH).
A apresentação ministrada pelo advogado e diretor da Faculdade de Direito da Uerj, Ricardo Lodi, e pelo coordenador do Laboratório de Políticas Públicas, também recebeu um grande público externo. Segundo a coordenação do programa, a disciplina optativa já conta com 27 inscritos, quase o dobro de alunos que esse tipo de matéria costuma receber. O corpo docente é formando por 18 acadêmicos, entre cientistas políticos, filósofos, sociólogos e demais pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas, ligados à Fiocruz, UFRJ, UFF, a própria Uerj e outras instituições.
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Na primeira aula, cujo tema foi "Lawfare e o Estado de exceção", Ricardo Lodi começou fazendo um resgate conjuntural de embates complexos entre o direito e a política, que influenciaram em processos históricos vivenciados por países, como a Alemanha sob o domínio nazista, Chile, Itália e os Estados Unidos. O advogado ainda explicou que a 'guerra jurídica' (significado de Lawfare) foi utilizada para justificar mudanças estruturais em governos, com o objetivo de atender a interesses econômicos.
"É interessante convidarem um professor de direito para tratar de um tema que é a negação do direito", ironizou Lodi, acrescentando que o lawfare é utlizado para a destruição de adversários - especialmente, políticos - e que este só é possível em um estado de exceção, tal qual ocorreu em outros países da América Latina e também da Europa, em décadas passadas.
Lodi seguiu detalhando o surgimento do neoliberalismo e como este modelo econômico passou a influenciar a governança e a democracia global. Segundo o advogado, as políticas sociais adotadas por países latinos, tanto os governados por partidos de centro-esquerda (a exemplo do Brasil, Chile e Argentina) e centro-direita (como Colômbia e México), resultando na diminuição de desigualdades sociais, vão de encontro aos interesses de grandes grupos econômicos globais, que seriam os financiadores da derrubada de governos eleitos democraticamente contrários a esses projetos.
"Em 2014, ocorreu um fato no Brasil que é difícil explicar. Pela primeira vez, numa eleição presidencial, toda a elite econômica nacional se juntou contra uma candidatura oficial e escolheu o seu candidato à presidência da república", afirmou Lodi, em relação à chapa da ex-presidenta Dilma Roussef. Para o advogado, essas forças econômicas teriam iniciado as articulações contra o governo Dilma antes mesmo dela tomar posse do segundo mandato. "Esse movimento começa nas elites empresariais, na grande imprensa e toma as ruas", enfatiza.
Ainda de acordo com o professor, o documento "Uma ponte para o futuro", lançado pelo hoje MDB poucos meses antes do impeachment, é uma prova de que a destituição de Dilma atendia a interesses econômicos, como a reforma da Previdência, a reforma trabalhista e a PEC do congelamento de gastos.
"Nem Aécio Neves (PSDB) teve coragem de propor o que foi implementado e escrito na Ponte para o Futuro. Nenhum candidato que possa concorrer a eleições pode propor uma plataforma como essa. Michel Temer fez porque não precisou de voto popular para chegar ao poder", garantiu o palestrante, ao acrescentar que o processo recebeu uma "roupagem jurídica" para que fosse legitimado. "A presidenta Dilma jamais foi acusada de corrupção. O impeachment não tem nenhuma relação com a Lava Jato", completou.
De maneira sarcástica, Lodi classificou a prisão do ex-presidente Lula como um "impeachment preventivo", em um dos diversos momentos em cativou o público. "Carlos Lacerda dizia que o senhor Getúlio Vargas não pode ser candidato a presidente. Se for candidato, não pode ser eleito. Se for eleito, não pode tomar posse, e se tomar posse, não pode governar. Tem que ser derrubado por um golpe", citou.
Em uma apresentação mais curta que os cerca de 40 minutos de explanação do colega de universidade, Emir Sader endossou o argumento de Lodi sobre a implantação de uma política econômica impopular de ajuste fiscal ter sido o principal motivo do impeachment de Dilma, o que consolida a existência de "um golpe de Estado" no país. "Não reconheceram a vitória da Dilma, começaram aquele processo de articulação, que levaram aos dois resultados brutais: o golpe contra a Dilma e a prisão do Lula", cravou.
Ao longo da aula, não houve represálias ou manifestações contrárias às explicações, dentro ou fora do auditório, que esteve aberto ao público sem restrições. Devido à demanda, a coordenação do curso resolveu manter aberta as inscrições na disciplina para os alunos ouvintes. As aulas ocorrerão às quartas-feiras, das 17h às 10h, no Campus Maracanã. As informações estão disponíveis na página do programa.
Reação acadêmica
A Uerj é mais uma dentre as dezenas de universidade que decidiu apoiar e oferecer a disciplina "Golpe de Estado de 2016 e o futuro da democracia no Brasil", idealizada pelo cientista político Luís Felipe Miguel e oferecida inicialmente da Universidade de Brasília (UNB).
A decisão foi uma resposta ao posicionamento do então ministro da Educação, Mendonça Filho, que contestou a legalidade do curso e acionou a Advocacia-Geral da União, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal para questionar a oferta da disciplina.
A medida foi recebida como um ataque à autonomia universitária, prevista no artigo 207 da Constituição Federal, o qual diz que a "autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial", e também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que assegura às universidades o direito de "decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre criação, expansão, modificação e extinção de cursos".
No Rio de Janeiro, a temática também foi oferecida em um curso promovido pelo Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), iniciado no dia 23 de março. Já na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a abordagem do conteúdo será feita a partir seminários homônimos, promovidos pela pós-graduação em Economia Política Internacional (PEPI).
Na Uerj, a ementa traz a seguinte definição: "A disciplina tem como objetivos analisar a conjuntura política que levou ao impeachment da presidenta Dilma Roussef e ampliar o debate sobre o golpe de 2016 e suas múltiplas consequências para a frágil democracia no Brasil. Também realizará um estudo sobre as principais políticas propostas pelo governo de Michel Temer e suas implicações no campo da garantia de direitos".