Com sua construção iniciada no ano de 1833, pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthie, a Avenida Caxangá, quase 200 anos depois, parece ainda não ter sido concluída. Dividida em duas vias de sentidos opostos, a segunda maior avenida em linha reta do Brasil vem sofrendo transformações estruturais que, além de afetar a mobilidade urbana da região, interfere na realidade de quem optou por morar às suas margens. Na contramão da especulação imobiliária e dos efeitos negativos, residências históricas e afetivas da avenida ainda resistem.
Originalmente formada por um corredor enfileirado de residências, a avenida encontra-se tomada por dezenas de estabelecimentos comerciais, casas funerárias, farmácias e agências de veículos, além de edifícios tão altos que se perdem no horizonte. Tornou-se uma avenida quase sem vizinhos. Apesar dos 6,2 quilômetros de extensão, restaram na Caxangá aproximadamente dez casas habitadas.
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Principal eixo de ligação do Recife com a Zona Oeste e alguns municípios do interior pernambucano, a via não é considerada uma região de alto custo de vida. Mesmo assim, segue o padrão de outras regiões do Recife e já denota uma crescente na construção de grandes edificações. "A avenida espelha a cidade como um todo. Os problemas que ela está começando a viver são uma realidade em outras áreas da capital pernambucana", explicou o arquiteto José Luiz Mota Menezes, presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
Memória e afeição
Contrastando com o ambiente cinzento e urbano da via, a casa herdada pela aposentada Eliane Holanda, 59 anos, é sinônimo de resistência. Com a pintura amarela forte nas paredes do lado de fora, muros baixos e bem arborizada, a residência fica localizada na parte central da avenida. Eliane herdou o imóvel da avó e conta que até o casamento da mãe foi realizado nas dependências da casa.
Além da afeição pelas memórias vividas durante toda sua infância e adolescência no local, a aposentada diz não haver comparação com a vida dentro de um apartamento, em que mal se conhece o vizinho de porta. "As vezes eu tô lavando os pratos na minha cozinha, aí eu olho pra o meu pé de pitanga, ouço um sabiá. Pra mim, isso é agradável. Eu nunca vou ter isso em um prédio. Gosto desse contato com a natureza que essa casa me proporciona".
Atualmente, Eliane mora com as duas filhas, mas faz questão de dizer que as galinhas, os patos e o seu pé de manga também são parte da família. A filha mais nova, Taciana Holanda, 24, segue o pensamento da mãe e também não deseja se mudar. "Eu cresci aqui e o normal pra mim é isso. O som dos carros passando, a movimentação intensa e os mesmos vizinhos desde sempre", contou. Ao lado da casa de Eliane, restaram apenas duas residências.
Vizinho de Eliane, o aposentado Humberto Veiga, morador na Caxangá desde 1972, diz ter acompanhado as mudanças na avenida e o desaparecimento das residências o entristece. "Eu acho que a chegada dos prédios e do comércio são fatores importantes para o sumiço das casas. Não só por tomarem o lugar delas, mas sim porque a avenida não comporta tanta gente e a qualidade de vida da gente se perdeu um pouco".
Corrida imobiliária e legislação defasada
Construções avessas à realidade da paisagem atual da Caxangá, as casas preservam a arquitetura mais antiga e causam até curiosidade de como é viver às margens da via. Na corrida imobiliária, Humberto e Eliane também não escaparam das ofertas tentadoras.
A aposentada relembra que já recebeu uma proposta para se aliar aos vizinhos e ceder a área dos três imóveis para uma construtora. "Eu nem fiquei balançada, eu me recuso a sair daqui. Eu tenho um apartamento na praia de Boa Viagem e não troco a minha casa. Talvez com a idade eu possa me mudar para um prédio pela segurança, mas não sei", disse.
De acordo com o arquiteto José Luiz Mota Menezes, a situação atual da avenida é preocupante, principalmente pela chegada dos grandes prédios e a falta de estrutura na via para comportar todos os veículos que por lá passam diariamente.
"Em um prédio com mais de doze andares, com vários apartamentos por piso, são muitas famílias e, consequentemente, mais carros disputando espaço na via todos os dias". Para ele, o problema é quando as construtoras planejam as edificações e não levam em conta a área em que serão implantados. "Não há planejamento do empreendedor sobre os impactos da construção na região e isso é um fenômeno nacional", lamentou.
No Recife, a Lei de Ocupação e Uso do Solo (Luos), sancionada em 1996, e o Plano Diretor, revisto em 2008, são os instrumentos utilizados no planejamento urbano da cidade. "Essas duas legislações estão ultrapassadas e defasadas. Elas não levam em conta o bem-estar de toda uma região e a logística da construção", argumentou Mota. Ele denuncia ainda que quase não existe interferência das gestões municipal e estadual no que se refere a construções na capital pernambucana.
"O recife está todo feito segundo leis absurdas, sem planejamento. A Caxangá já está sendo vítima disso também. Não há solução para essa problemática se não houver uma separação entre a política e os interesses dos empreendedores", pontuou.
Por outro lado, enquanto tiver saúde, Eliane pretende resistir ao apelo da construção civil e preservar as boas memórias afetivas de sua casa. "A minha liberdade e o contato com a natureza não têm preço".
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