Biblioteca Jardim do Conhecimento no Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (PJALLB), Complexo do Curado. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Em 2016, aos 57 anos, o auxiliar jurídico Antônio Rodrigues Cruz deu um passo para trás no que considera um dos maiores sonhos que alimentou por toda a vida. Concluir a graduação e se tornar um advogado. Entre algumas tentativas frustradas e outras mais proveitosas de ingressar e permanecer no curso superior de direito, Antônio culpa a falta de estabilidade financeira para bancar uma faculdade até o fim e lamenta as poucas oportunidades para quem não nasceu em berço de ouro no Brasil. Em 2018, dois anos após ser preso e passar a integrar o sistema prisional de Pernambuco, que hoje totaliza 32.335 detentos para apenas 11.812 vagas, o pernambucano encontrou um oásis particular no cárcere. Reeducando do Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (PJALLB), que integra o Complexo Prisional do Curado, no Recife, Antônio procura se desvincular do ambiente da prisão, muitas vezes hostil, através da leitura contínua.
Preso por um crime que preferiu não revelar, o auxiliar jurídico, que também já trabalhou como motorista e gerente de armazém, apenas citou que a pouca estrutura familiar na base de sua educação foi a principal razão que o levou ao cárcere. Antônio Cruz conheceu o livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, na biblioteca Jardim do Conhecimento, dentro do presídio. O clássico da literatura brasileira ocupa o topo do ranking pessoal elaborado pelo detento como a principal obra literária que leu para participar do projeto de remição da pena pela leitura, em que presos podem reduzir o tempo da pena lendo e escrevendo resenhas e resumos literários nas penitenciárias. O detento já participou doze vezes do programa, mas foi nas palavras de Machado de Assis que a mente se viu longe das grades que o separam do externo. Defensor ferrenho de Capitu, personagem da trama literária a quem ele alega ser inocente das acusações de traição feitas pelo marido, o detento demonstra certa identificação com o caso. Também se considera injustiçado por alegações infundadas e garante que não deveria estar preso.
Antônio Cruz conheceu o livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, na biblioteca Jardim do Conhecimento, dentro do presídio. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
“A nossa justiça tem o olho aberto para quem tem dinheiro e pode pagar bons advogados para fazer a defesa. Se qualquer pessoa olhar os meus autos, há muitas contradições processuais. Mas como os nossos gestores trabalham visando o lucro financeiro, não atentam para isso. Me sinto impotente diante dessa situação e a leitura me acalma. É como uma terapia”, reflete Antônio, que deve cumprir sua pena até 2021. A possibilidade de diminuir o tempo preso por meio da leitura surgiu como a oportunidade dos sonhos para o auxiliar jurídico.
Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma portaria que autorizava juízes a diminuir penas dos presidiários que escrevam sobre os livros que leem. De acordo com a Recomendação nº 44 do CNJ, deve ser estimulada a remição pela leitura como forma de atividade complementar. Para isso, há necessidade de elaboração de um projeto por parte da autoridade penitenciária estadual ou federal visando a remição pela leitura, assegurando, entre outros critérios, que a participação do preso seja voluntária e que exista um acervo de livros dentro da unidade penitenciária.
Em Pernambuco, o projeto foi implementado no dia 19 de outubro de 2016, inicialmente nas três unidades prisionais do Complexo do Curado, na zona oeste do Recife: presídios Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (Pjallb), Marcelo Francisco de Araújo (Pamfa) e Frei Damião de Bozzano (PFDB). Diferente do estipulado pela legislação nacional, no estado, a portaria 082 de 10 de outubro de 2017 aumentou os dias de remição de quatro para sete, por obra lida e resenha produzida.
O preso deve ter o prazo de 22 a 30 dias para a leitura de uma obra, apresentando ao final do período uma resenha ou um resumo literário a respeito do assunto. O documento deverá ser avaliado pela comissão da Secretaria Estadual de Educação e pode ser aprovado ou não. Caso o detento seja reprovado, ele ainda pode fazer uma recuperação e ganha uma nova chance. O limite da leitura pelo projeto são de doze obras por ano.
“A nossa justiça tem o olho aberto para quem tem dinheiro e pode pagar bons advogados para fazer a defesa". Foto: Rafael bandeira/LeiaJáImagens
De linguajar mais rebuscado, falas pausadas e vestes formais, Antônio herdou muitas características do ambiente corporativo e jurídico que trabalhou durante anos. “Tenho esse tom mais sério e me preocupo com a minha fala constantemente. Gosto de ler as gramáticas, também”. Fez questão de manter a personalidade dentro do presídio, respeitando os limites estabelecidos pela gestão. Conseguiu um trabalho e atualmente “mora” em um dos pavilhões na igreja do PJALLB, local que ele considera mais tranquilo para dormir por ser mais longe do tumulto das celas superlotadas. Pai de quatro filhos, Antônio se orgulha ao dizer que todos foram bem criados e estão emancipados. “Eu já não tenho muitas responsabilidades lá fora, além dos meus sonhos que pretendo realizar”, conta.
Ao todo, o detento já conseguiu diminuir da sua pena 84 dias com a leitura dos livros e a posterior entrega do material necessário, mas garante não se importar com a quantidade de dias que ganhou para sair da prisão mais rápido. Antônio é um apaixonado pela literatura e participa do projeto pelo prazer do estudo. “Eu tenho aprendido muito desde que cheguei aqui, gosto de analisar as pessoas e entendo que é um lugar que precisa da minha presença aqui. Apoio muitas pessoas aqui, homens que não têm família, não possuem um material de higiene”, detalha Antônio, que faz uma pausa na conversa e chora. Ele relembra o caso de um jovem preso e se emociona. “Um rapaz me contou que não tinha pai e nem mãe, e a última notícia da família recebeu quando a tia veio visitar ele e trouxe o atestado de óbito do genitor. Eu senti o peso nas palavras dele, justamente porque aqui sou conhecido por muitos como um pai. Dou amparo aos que não têm nada”, diz.
Quem observa o Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros do lado de fora pouco entende sobre como é a rotina dentro da unidade prisional. No pátio, os detentos concessionados, que exercem atividades laborais, organizam a horta e trabalham nas obras de forma organizada. Cada pavilhão é separado por muretas e grades. No varal, roupas são estendidas para aproveitar a luz do dia, já que no sistema prisional de Pernambuco os presos não andam fardados.
Nas paredes, versículos da bíblia e mensagens religiosas são pintadas como forma de conforto pela situação em que se encontram. Tudo é muito bem gradeado e protegido pelos agentes penitenciários, exceto pelo local da aposta na ressocialização. É na biblioteca Jardim do Conhecimento que o cenário se transforma. Paredes brancas e limpas, estantes repletas de literatura, cadeiras e mesas em bom estado, janelas e ar fresco. São mais de 3 mil exemplares a disposição dos que tiverem interesse pela leitura. Desses, apenas 428 estão aptos e liberados para o projeto da remição pela leitura. O funcionamento do local tem início às 7h20, pausa para o intervalo do almoço e segue até 16h30.
Responsável por organizar os livros e o cadastro dos detentos para participar do projeto, Moacir Marcelo, 43, é concessionado. Entrou no presídio em abril de 2018 após ser acusado de receptação por desviar medicamentos do SUS. Para ele, sua prisão foi uma aberração jurídica, assim como para muitos outros que negam os motivos que levou a Justiça a encarcerá-los.
Com previsão de deixar a prisão no fim do ano de 2018, após cumprir parte da pena, o detento diz que ociosidade nunca foi seu forte e por isso buscou a oportunidade de trabalhar na biblioteca. “Aqui é muito divertido e dinâmico, as pessoas pensam que as bibliotecas são locais de marasmo, mas no presídio a conotação é diferente. A movimentação é grande porque serve como um escape do ócio dos pavilhões”, comenta. Ele elenca que as obras mais escolhidas pelo presos são romances e ficções por serem mais simples de fazer o resumo ou a resenha. No PJALLB são 2.900 detentos alojados e de acordo com dados da Secretaria de Ressocialização e da Secretaria de Educação de Pernambuco já passaram pelo projeto 998 detentos, mas só 618 foram aprovados.
São mais de 3 mil exemplares a disposição dos que tiverem interesse pela leitura. Desses, apenas 428 estão aptos e liberados para o projeto da remição pela leitura. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
O vendedor ambulante Mauricio Guedes, 25, sempre trabalhou no comércio informal pelas ruas do Centro do Recife. Vendia CDs, DVDs e estava acostumado com a movimentação constante das pessoas. Sentiu bastante a diferença do ambiente no Complexo do Curado. Se viu isolado e gradeado, pela segunda vez, quando foi preso em janeiro de 2016. Ele cometeu assaltos e após ser preso em flagrante, foi condenado a sete anos e nove meses no regime fechado. A primeira passagem de Mauricio pelo sistema prisional foi aos 20 anos e passou um ano e dois meses. Ele conta que a mente fraca e a falta de oportunidades na sociedade o levaram ao mundo do crime.
Da segunda vez, quase três anos no cárcere, ele opta pelas oportunidades da ressocialização. “Diferente da primeira vez que fui preso, não pensava assim”, lamenta. Participou da remição por 14 vezes e reprovou as três primeiras por não estar habituado com a leitura. Cursou até a oitava série e largou os estudos para trabalhar ainda muito novo. Apaixonado pelo centro, ele gostou de ler o livro Marco Zero, que conta a história do ponto turístico do recife, mas dispensa livros de poemas por ser mais difícil para resumir. “Estou procurando a minha melhora, não quero ficar com coisas erradas dentro do sistema, tento sempre ajudar os colegas e motivar os outros detentos. O caminho é esse, não quero mais essa vida do crime não”, avalia. Ele conta que aguarda os momentos de silêncio no pavilhão para fazer a leitura dos livros e é possível anotar em um papel algumas ideias para ajudar no dia da prova. Atualmente, Mauricio está detido no Presídio Marcelo Francisco de Araújo (Pamfa), que dos 1.400 detentos já passaram 307 pela remição da leitura.
Mauricio avalia que apesar do barulho e de alguns tumultos, consegue praticar a leitura diariamente. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Foi na biblioteca do PJALLB que Solon Henrique, 43, descobriu o verdadeiro significado de seu nome, o qual ele acredita ser único no presídio. Durante as leituras do projeto da remição, o detento escolheu o clássico 1808, de Laurentino Gomes, por ter interesse na história do Brasil. Nas últimas páginas da obra, se surpreendeu ao ver pela primeira vez uma árvore genealógica e descobriu seu nome acentuado, Sólon, foi um dos principais legisladores e juristas gregos. Ficou orgulhoso e até escreveu sobre isso. Decidiu participar do projeto de remição porque ele já costumava ler no presídio e quando descobriu que poderia diminuir a pena, ficou interessado no projeto. Já conseguiu livrar cerca de três meses no cárcere a aguarda ansiosamente a liberdade.
Solon foi detido no dia 2 de novembro de 2008 por diversos roubos. Condenado e 38 de prisão, em novembro de 2018 completa uma década atrás das grades e longe da família. Quando jovem, ele ingressou na Marinha e foi militar por alguns anos. Mas, quando deixou a carreira marinheiro, se viciou em drogas e se envolveu em diversos assaltos. Quando estava em Fortaleza, no Ceará, chegou a ser preso uma primeira vez pelos crimes e foi solto pouco tempo depois. Passou por muitas dificuldades para conseguir um trabalho porque como ex-presidiário o preconceito da sociedade ainda é grande e as oportunidades são poucas. “Eu só queria um motivo para voltar a vida do crime e assim o fiz”, conta.
Já no Recife, Solon foi detido pela segunda vez e não consegue explicar porque entrou para o mundo do crime. Filho mãe médica e pai empresário, o ex-militar conta que vivia bem e estudava, mas as drogas e o caminho mais fácil foram tentadores. “Ao seu preso pela segunda vez, a minha vida mudou drasticamente porque eu ficava pensando no meu desvio de conduta o tempo todo, tentando entender o que me levou a estar encarcerado”, relembra. Apesar de ser cético quanto as reais intenções do governo ao aderir projetos de ressocialização dentro do cárcere, Solon se tornou otimista. Acredita no potencial dos presos e de quem deseja mudar de vida. Diferente de muitos, não se considera inocente dos fatos que o levaram presos e assume todos. “Errei e vou me redimir”, afirma o preso. “Escuto muito dos detentos que estão revoltados com a vida que vão sair pior daqui de dentro. O governo até dá oportunidade, mas é preciso correr atrás se não o sistema só prova que você nao vale nada, é mercadoria”, aponta.
No presídio por quase uma década, Solon faz uma avaliação de quem era e de quem se tornou e entende que a melhora depende de cada um. “Sei que o que me colocou aqui foram as minhas atitudes. Uma escolha imbecil que fiz. Sempre me achei melhor do que todo mundo, mas o sistema aqui é muito louco. Se você não se colocar, as pessoas te atropelam. Aprendi que não sou melhor do que ninguém aqui, mas me considero diferente. Eu sou culpado pelas coisas que fiz sim e procuro agora renovar a minha vida e ter um futuro diferente, ir na faculdade e conseguir um trabalho. Tenho minhas metas claras e aproveito todas as oportunidades dentro do cárcere. Quero mudar a minha vida, tenho vergonha do que fiz, mas preciso lidar com isso. Hoje posso dizer que estou no meu melhor momento”, avalia.
Solon participa todos os meses do projeto da remição pela leitura. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Antes da prisão, Orlando, 36, só conheceu a literatura por obrigação. Sempre lia quando tinha alguma prova, mas nunca tinha experimentado um livro pelo simples prazer da leitura. Ele tinha a vida muito corrida e era dono de uma empresa bem sucedida em Pernambuco. Mas, em 2015, a crise bateu na porta do negócio de Orlando e ele alega que sua fonte de renda quebrou. Um sonho antigo, Orlando decidiu apostar na carreira de piloto de avião e começou o curso no ramo da aviação. Tinha uma vida bem estrutura, com família e estabilidade, mas uma oportunidade de ganhar dinheiro fez com que ele optasse por praticar um delito.
Foi preso por tráfico de drogas e condenado a cinco anos e dez meses. "Eu tava iniciando minha carreira como piloto e recebi uma proposta de transportar a droga e ganhar um bom dinheiro. Logo na primeira tentativa tudo deu errado e considero isso um livramento", garantiu o piloto, preso no Pamfa. Agora, habituado a leitura, Orlando diz que abre livros por interesse em reduzir sua pena e também pela necessidade de melhorar a mente.
"Foi um choque muito grande ser preso porque eu estava acostumado com a vida muito boa. Aqui é tudo diferente e é preciso estar de olhos abertos. Ninguém é melhor do que ninguém no cárcere. É preciso aproveitar as oportunidades de ressocialização porque esse é o momento de se recuperar e voltar à sociedade. Leio hoje por mim e pelos meus filhos. Sei que educação é base de tudo e agora me preocupo muito mais com isso do que antes", analisa o piloto de avião. Segundo o Ministério da Justiça, 60% da população carcerária brasileira não concluiu ou não cursou o Ensino Fundamental.
"Leio hoje por mim e pelos meus filhos. Sei que educação é base de tudo e agora me preocupo muito mais com isso do que antes". Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens
Nas mãos, ele segura o livro que tem lido atualmente e diz gostar bastante do desenrolar da história. "A Cabana", de William P. Young, versa sobre um homem que vive atormentado após perder a sua filha mais nova, cujo corpo nunca foi encontrado. Anos depois da tragédia, ele recebe um chamado misterioso para retornar a esse local, onde ele vai receber uma lição de vida. Livros com histórias de superação, auto-ajuda e mais espirituais são as escolhas favoritas dos detentos. A reportagem do LeiaJá tentou ter acesso as resenhas produzidas pelos detentos, mas de acordo com as normas da Seres e da Secretaria de Educação do estado, os documentos são confidenciais e não podem ser acessados por terceiros.
De maneira geral, as penitenciárias apresentam arquitetura de ambiente hostil, cinzento e frio, com trancas, apertadas celas e a sensação de estar sendo punido por toda a sociedade, já que transgrediram as normas de condutas sociais. A ideia de que os presidiários merecem sofrer para se redimir dos delitos já era criticada pelo pensador Michael Foucault, em seu livro Vigiar e Punir. Todos os dias, anônimos tentar reescrever suas histórias, corrigir seus erros e mostrar que a vida do outro lado das grades importa e pode ser ressocializada através da educação. "Eu hoje espero alçar novos voos quando sair daqui e progredir de regime. Todos estamos aptos a errar, mas se arrepender e corrigir os nossos erros depende de nós", concluiu Orlando, que sonha em voar de novo.
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